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Haiti

Porquê, meu Deus?

(…) Há quem pense saber porque é que a tragédia atingiu o Haiti. Um dos tele-evangelistas mais populares da América declarou publicamente que foi porque os haitianos ainda praticam vudu ou outras formas de religiosidade pagã. A seu ver, o terramoto é uma punição de Deus, levada a cabo contra infiéis. Presumivelmente, inclui-se neste raciocínio a fúria divina lançada contra multidões de crianças soterradas debaixo dos escombros, e um número assustador de pequenos órfãos.

Muitos haitianos chegaram à mesma conclusão. Um artigo no New York Times (14-1-2010), intitulado “Haiti’s Angry God”, cita uma mulher que diz que Deus está zangado com todos os pecadores, mas em particular com os Haitianos. Para ela o sismo é um castigo divino. Contudo, também afirmou que o evento fortaleceu a sua fé. Respostas semelhantes foram dadas por muitos que, ao longo de noites de total escuridão, com o cheiro a morte no ar, se confortaram cantando hinos de louvor a Deus.

FotoGetty Images

Porquê, meu Deus? Estamos de facto diante de retribuição divina pelos pecados destes desgraçados? Então porque não eu? Porque não nós?

Para muitos de nós, este tipo de desastre traz de volta o problema da “teodiceia”: se Deus é simultaneamente todo-poderoso e inteiramente bom, como pode permitir a existência do mal? Por outras palavras, como podemos explicar o fenómeno, sempre presente, do sofrimento dos inocentes? (...)

FotoAP

Deus julga-nos certamente, à luz do nosso pecado e das nossas boas obras e actos de amor. Esse juízo, porém, não se traduz em Deus infligir sofrimento físico ou emocional sobre nações ou povos inteiros. Nem no Haiti, nem na Indonésia, nem em parte alguma do mundo. Até ao dia do Juízo Final, o “castigo” divino limita-se a Deus deixar-nos colher as tempestades dos ventos que semeamos. Podemos descobrir, inquestionavelmente, uma pedagogia divina em vários momentos de sofrimento. Não podemos, contudo, acreditar que Deus, cuja essência é o amor, que se entregou ao sofrimento e à morte para nos resgatar das consequências do pecado e da morte, é um Deus vingativo, cuja “justiça” ultrapassa a misericórdia e a compaixão.

FotoReuters

A maioria das pessoas, incluindo muitos cristãos ortodoxos, têm uma visão de Deus formada por uma teologia ocidental que parte de abstracções filosóficas. A sua noção de Deus começa com a imagem de alguém que é omnisciente e omnipotente, um Deus de Justiça que exige de nós justiça sob pena de castigos se não nos conformarmos à sua vontade, à sua lei.

De uma perspectiva Ortodoxa, contudo, devemos partir não de uma imagem de “Deus nas alturas”, mas com a imagem mais poderosa e pungente da Cruz. Esta imagem não explica em termos racionais o mistério do sofrimento dos inocentes; nada nesta vida o faz, nem pode (daí que seja “sofrimento” e não só dor). (...)

FotoReuters

Tudo o que podemos dizer sobre as tragédias como a do Haiti, ou do tsunami de há alguns anos, ou a morte de uma criança na auto-estrada, é que Cristo está presente connosco, para compartilhar totalmente a nossa tristeza e dor. Tal como se vê de forma tão dramática e bela no ícone da Páscoa, Cristo desce repetidamente às profundezas do nosso inferno, para tomar as nossas mãos e levar-nos da escuridão para a sua luz radiosa. Para todos os que estão presos debaixo dos escombros, Cristo está lá, a partilhar a sua agonia até ao fim terrível. Está com todos os que choram a morte dos seus queridos, carrega as suas tristezas e as suas angústias. Como se declara nas Grandes Completas, Ele é “Deus connosco!”. Não, em primeiro lugar, como o Deus da justiça e do juízo, mas como o Deus de amor infinito que permanece, segundo Pascal, “em agonia até ao final dos tempos.”

FotoGetty Images

Se partirmos da Cruz, e não de uma noção abstracta de omnipotência divina, então podemos ver que tanto Deus como nós mesmos, estamos envolvidos numa enorme luta cósmica. A Cruz e a Ressurreição puseram fim à soberania de Satanás sobre o mundo e sobre os nossos destinos individuais. Mas a luta continua, tal como o pecado continua, como os desastres naturais continuam, e continuarão até que Cristo regresse na sua glória. Mais uma vez devemo-nos recordar: há um profundo significado no facto de que, perante o sepulcro vazio, o anjo refere-se a Cristo não como “o Ressuscitado”, mas como “o Crucificado” (Mateus e Marcos). Cristo ressuscitado e glorificado continua a ser “o Crucificado” na vida e na experiência de cada um que o procura, em primeiro lugar, talvez, na vida dos que clamam por Ele debaixo dos escombros.

FotoAP

Se Deus é o mestre vingativo que castiga os pecadores com estas tragédias, então, francamente, não estou interessado. Se, por outro lado, ele é o Servo Sofredor, que caminha connosco e por nós, carregando os nossos pecados e a consequente mortalidade, bem como a nossa dor e angústia, então é de facto aquilo que as Escrituras dizem ser: o Deus de Amor que se esvazia, que se dá, totalmente e sem reservas, para a vida do seu mundo.

 

P. John Breck
Teólogo ortodoxo
Trad.: Filipe d'Avillez
© SNPC | 02.09.09

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AP

 

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