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Entrevista a Cláudio Pastro

A experiência religiosa é, desde a primeira página da Bíblia, a experiência do belo

Conhecido mundialmente pelos seus inúmeros trabalhos, o artista plástico Cláudio Pastro (S. Paulo), dedica-se há quase trinta e cinco anos à arte sacra, ministério ao qual consagra sua vida. Pastro constrói igrejas e capelas no Brasil e no exterior, fazendo painéis em azulejos, mosaicos, frescos, pinturas em vitrais e esculturas. É o actual responsável pela arte na basílica nacional de Nossa Senhora Aparecida. Nesta entrevista o artista partilha um pouco de sua visão sobre a arte e também um pouco de sua vida, intimamente ligada à arte sacra.

Cláudio, O que é arte sagrada?
Bem, a arte por natureza é a dimensão sacral do homem, quer dizer, ela é um elemento gratuito da vida. A arte não tem nada a ver com o comércio; ela é uma expressão humana de felicidade, de alegria, de louvor, de prazer. “Arte sagrada" seria a mesma coisa, pois está completamente em consonância com este significado do que é arte. Acontece que o homem sempre corrompe aquilo que faz. Então, hoje, a arte sagrada quase não se vê, não há expressões de arte sacra, assim como a arte por natureza já não é mais sagrada, ou pelo menos não segue mais o princípio inicial de um elemento de louvor, de gratuidade, de celebração.
Arte sagrada não tem nada a ver com o tema. Por exemplo, uma imagem do Cristo ou de Santa Teresinha é um tema que necessariamente não tem nada a ver com o sagrado. A arte indígena é arte sagrada; a arte numa tribo africana, ou aborígene, na Austrália, por natureza são artes sagradas. A questão é, para responder o que seja “arte sacra", o que é arte e o que é sacro?

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A arte tem como linguagem a forma. Enquanto nós sempre pensamos racionalmente as coisas, este não é o discurso da arte. A arte está ligada à forma, à cor... tanto na música quanto na plástica, em qualquer situação de arte. A linguagem da arte, repito, é a forma. Não é, por exemplo, o "b-a-ba", Uma poesia passa pelo "b-a-a", mas ela tem uma forma. Uma música pode ter uma expressão, através do "b-a-ba" também, mas ela tem a sua forma. Logo, é a forma que interessa, e não o racional, a letra, ou coisas do tipo. Isso nós esquecemos no mundo actual. A linguagem da arte é a forma, e a linguagem do sagrado também não pode ser o racional, não pode ser a letra simplesmente: a linguagem do sagrado é o símbolo. Nós nunca temos o sagrado expresso naturalmente pela linguagem do nosso mundo, mas por um subterfúgio, através de algo que está apenas indicando, que é o símbolo, ou o sinal, pois no sinal está o símbolo.

Existe, Cláudio, uma beleza sagrada?
Uma coisa vai completando a outra... Em princípio, a beleza é sagrada. Voltando à pergunta anterior, porque o homem corrompe o que faz, agora a beleza serve a Deus e ao diabo. Existe uma beleza que é a glória, na língua hebraica o shekiná, que é o esplendor de uma verdade em nosso meio, mas existe também a beleza pela corrupção, aquela beleza fantasia, imaginação, fantástica; é a beleza (e eu gosto de usar este termo) "purpurina". É Gogol, o literato russo do final do século XIX, quem diz: "a beleza serve a Deus e ao diabo". Por isso notemos o perigo: na palavra beleza há também hoje uma ambiguidade.

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Qual seria, ou qual é, a função do belo na experiência religiosa?
Se nós voltarmos à primeira página do Génesis, portanto no começo de toda a Bíblia, de toda a Palavra, veremos que necessariamente a experiência religiosa é uma experiência do belo. Não dá para ser diferente. É por isso que os artistas, em todas as grandes religiões, em nosso caso, no Cristianismo, sempre se expressaram buscando a beleza, sempre dentro de sua época, é evidente, mas com expressões de beleza. A própria liturgia, o próprio rito, não é uma reunião seca, racional. Ele não se baseia tanto na letra, mas se baseia mais, por causa da forma, na postura, Palavra encarnada. Então, no mundo religioso, a função do belo está intimamente ligada à expressão religiosa. Na primeira página do Génesis temos "Deus viu que tudo era belo", porque o belo e o bom são a mesma coisa - é impossível algo ser bom e não ser belo (é lógico que podemos discutir aqui o que seja bom e o que seja belo). Quando falamos do belo e do bom estamos falando de verdade. É a famosa trilogia do belo, bom e verdadeiro, do kalós, do grego. A experiência religiosa não pode não ser bela, e a beleza, abraçada na experiência religiosa, eu diria que ela é uma expressão religiosa em plenitude, em totalidade. Aliás, não pode ser diferente.

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Este foi o grande... não sei se chamo de erro, mas foi o grande descuido, nos últimos anos, particularmente na Igreja Católica, quando se fizeram grandes discursos sobre justiça e outras coisas, descontando a expressão do belo. Percebemos que não se arraigou, que não tomou pé, na vida humana, mas ficou num discurso, apenas. Podemos perceber que grandes momentos do Cristianismo, assim como de outras religiões (porque para mim não há diferença na arte em termos de religiões), são sempre marcados pelo belo. O belo é aquela conotação que vai além do corriqueiro, do dia-a-dia, colocando você acima de, para melhor ver a realidade. O homem que busca o religioso é aquele que não está contente com a realidade, buscando algo maior; busca o divino, o shekiná. É por isso que beleza e sagrado, eu diria, são sinónimos.

Existem outros caminhos para a experiência de Deus que não o da beleza?
Impossível.

Por que é que, quando falamos de arte sagrada pensamos mais facilmente no bizantino, no românico, no gótico?
Bem, sei, com toda certeza, que o gótico nem tanto. O gótico é uma expressão que começa no século XIII, mas o bizantino e o românico são expressões mais do primeiro milénio do Cristianismo. Neste primeiro milénio, os cristãos tinham que formatar a vida cristã. Além disso, eles tinham que revelar ao mundo esta grande verdade. Então, as expressões do primeiro milénio cristão foram, como eu dizia no começo, como a dos nossos índios. As expressões não separavam o dia-a-dia da beleza, porque viviam unicamente da celebração do Mistério neste dia-a-dia. Vejamos o fundador do monaquismo ocidental, que se baseou nos Santos Padres, São Bento, no século V, que diz para os monges cuidarem de tudo na vida, de qualquer instrumento, até de uma pá ou uma enxada, como vasos sagrados do altar.

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Mais tarde, ainda no começo do segundo milénio, Fra Angélico vai dizer que "para se fazer as coisas do Cristo é preciso pertencer ao Cristo". O que percebemos é que, dentro destes princípios do primeiro milénio, as expressões não eram separadas da vida. Mas, por exemplo, o românico, que eu amo muito, e o bizantino, porque o românico é o popular do bizantino - quando pegou o povo na Europa toda, pois quando este continente foi unificado, o bizantino saiu dos palácios e o povo queria copiar os palácios; copiavam-se (pintavam-se), então, as pedras preciosas na parede, quando nos palácios havia mesmo pedras preciosas. O que é importante são as formas, o círculo, a abside, o oval, o arco romano (que é o arco perfeito, de 180 graus), que tanto no bizantino quanto no românico são formas que levam à harmonia. Também o mundo antigo, egípcio e grego, não só o romano, estava imbuído destes elementos, que geraram a arte bizantina e românica. Portanto, são aquilo que ficou de mais forte como linguagem da forma. Estão ligados ao círculo. (...)

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Basílica de Nossa Senhora Aparecida (e fotos seguintes)


É interessante notar: a beleza, quando é sagrada, faz-nos perguntar que relação existe entre aquilo que eu faço e o cosmos, sem quebrar a harmonia. Para um índio, como para um cristão da arte bizantino-românica, havia esta mesma questão: que relação tem o que eu faço com o cosmos. No passado, o que valia não era quem "produzia" a obra de arte, mas todos, do menor ao maior, sabiam-se girar em torno do centro. A linguagem aí é objectiva: fazemos parte de algo maior. É algo completamente diferente da cabeça do segundo milénio, e deste começo do terceiro milénio, sobretudo depois do Iluminismo, quando se pensa só subjectivamente; mesmo o pensamento europeu, ocidental, é uma subjectividade colectiva, até hoje, quando predomina o culto do eu.

Quando Pio XII proclamou a abertura da Igreja para a arte moderna apresentou como modelo para o artista o Beato Angélico, um artista do passado, entre o gótico e o renascimento. Há algum artista moderno que faça boa arte sagrada moderna?
Penso que Pio XII, e depois Paulo VI, que foi um grande homem da arte (porém, as coisas começaram com Pio XII porque era época do movimento litúrgico, no início do século XX), teve como referência o grande Beato Angélico justamente por aquilo que eu falava há pouco. Ele é um grande modelo, e note que é um homem do pré-renascimento.

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Eu posso também citar aqui o grande pintor, que de alguma maneira está ligado à vida dominicana, que foi Henri Matisse. Nos anos 50, ele fez a capela das Irmãs Dominicanas em Vence. Aquela capela, por exemplo, é altamente uma beleza sagrada e, no entanto, São Domingos e a Mãe de Deus não têm rosto. É bonito o que diz Henri Matisse quando alguém perguntou: "Mas, perante as grandes riquezas das igrejas católicas do passado, você faz uma capela extremamente despojada e simples?" Então ele responde: "Eu quero que aqueles que aqui entrarem se sintam livres dos seus pesos". Por isso ela é uma igreja límpida, as cores são limpas, os poucos vitrais que ali existem são com poucos traços. Ele quis, um pouco ainda subjectivamente, já entrar na linguagem do sagrado, ou seja, ele já sabia que aquilo era simplesmente parte de um todo. Mostrou o que ele e o próprio dominicanismo buscam: a vida dominicana busca uma verdade acima dela mesma, uma verdade em essência. E é bom não esquecermos que atrás de Matisse havia um grande dominicano, o Pére Couturier.
(...) Hoje, podemos falar de artistas, como um famoso, que está na moda agora, que faz mosaicos, (Marko Ivan) Rupnik, que fez os mosaicos da Capela Redemptoris Mater, do Papa João Paulo II, no Vaticano, um presente dos bispos para o papa, por ocasião do Jubileu do ano 2000. Agora, pintor de arte sacra, ou um escultor, ou seja, um artista de arte sacra, hoje, não acredito que haja muitos. São raros. Os pintores de ícones (orientais, bizantinos) sem dúvida são artistas sacros, mas mesmo eles caem no perigo, às vezes, de seguirem algumas escolas com tendências, como se sabe, barroca ou outra, não tendo mais força mais objectiva, caindo no subjectivismo da cultura local e da época.

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Até que ponto esta referência preferencial às experiências artísticas do passado correspondem a mecanismos de fixação de modelos no imaginário colectivo?
Bem, essa coisa de imaginário colectivo é uma conversa muito racional... A arte temos que entendê-la, bem como a beleza e a experiência religiosa, não como algo social, mas como algo que nos ultrapassa e que vem do Mistério para nós e não simplesmente de nós para o Mistério. Quando é de nós para o Mistério incidimos em erros e repetições, como o caso do imaginário colectivo; pode ser, não acredito. Mas, acredito, por exemplo, que se tomarmos as vestes, ou melhor, os paramentos da Igreja Católica romana latina, percebemos, quando se usam as casulas, que fica claro que houve uma inculturação no início do Cristianismo, onde pegamos, neste caso, vestes romanas com tendências gregas e egípcias, pois era o mundo helénico presente à época. Só que, com o passar destes dois mil anos, já se tornaram parte da cultura, do vestiário católico romano. Então, não é uma coisa simplesmente de imaginário colectivo; algo a mais se fixou. Nenhum de nós, no século XX ou XXI, conheceu os romanos, os gregos nem os egípcios. No entanto, adoptamos trajes deles, como adoptamos o hábito, e também as expressões de oração, as músicas, etc. Algo nos transcende. O Cristo, que é o Mistério, o sagrado por excelência, por exemplo, nasceu no mundo helénico, no contexto do Império romano, grego e do mundo egípcio, com as suas influências na bacia do Mediterrâneo. Ele não nasceu na China. O que tinha de assimilar eram aqueles costumes de lá. Se Cristo tivesse nascido na China, não iríamos tomar nem pão nem vinho, mas já que ele viveu sob influência do Mediterrâneo, era o trigo e a uva que imperavam.

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A arte moderna desistiu da proposta tradicional de "belo" para propor outras mensagens? A arte moderna não serviria, então, para expressar o sagrado e veicular uma experiência do sagrado?
É difícil responder. Afinal, o que é arte moderna? O que é uma arte contemporânea? Aí voltamos à primeira pergunta: o que é uma arte sacra? Não dá para responder assim. O que a gente pode perceber é para os índios, os negros em suas tribos (não falo do negro hoje, nem do índio que mora na cidade, que já assimilou outras coisas), na sua expressão natural, onde tudo era sagrado, a arte não era um negócio, mas expressão da vida celebrada naquela hora, ou por um rito de iniciação, ou por um funeral, etc.... A arte indígena, a arte românica, a arte budista, onde aparecem figuras desajeitadas, com olhos arregalados, etc., que não são artes académicas, como o renascimento, nós as chamamos de arte sacra, e elas têm uma beleza que cativam o homem contemporâneo. As cores, simplesmente, o grafismo, a beleza de um traço, que existe nos povos primitivos, na música, na extrema simplicidade das monotipias musicais, que são apenas sons, beleza de sons, já aí, o moderno bate com isso. Precisaríamos entrar em mais detalhes em relação sobre o que seja arte moderna.

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Por que é que a maioria das pessoas não aprecia uma igreja moderna?
Porque aí entra novamente o imaginário colectivo, agora de verdade, numa Igreja que nos últimos séculos, podemos dizer nos últimos cinco ou seis séculos, impôs uma religiosidade mais que uma sacralidade. Aí vem aquilo que eu coloco, e não fui eu quem fez esta colocação em primeiro lugar, mas Romano Guardini: nós temos que diferenciar arte sacra de arte religiosa. Então, o povo católico comum, ou o povo simples comum, está educado, para não dizermos deseducado, dentro de uma religiosidade subjectiva: eu e Deus, eu e meu santinho, eu e meu mundinho. Está acostumado com as suas festinhas: "ah que saudades que eu tenho disso ou daquilo". Então, não há aqui o sentido cristão pleno, abrangente, cósmico, como eu falava. É lógico que estas pessoas têm dificuldades de entender o moderno quando o moderno é uma expressão real, por exemplo, de que pedra é pedra, de que é vermelho é vermelho, de que um som é um som... quer dizer, eles não estão preparados para entender que no mundo hebraico a raiz de "pedra" é a mesma de "espírito", e psicologicamente, perante uma pedra eu sou completamente absorvido, e tenho uma atitude que me leva à comunhão, atitude diferente daquela do "meu santinho", onde não comungo nada: ficamos eu e ele. É mais a religiosidade católica popular dos últimos séculos, que foi altamente subjectiva e devocional.

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Uberlândia, Minas Gerais

Ela é mais religiosa que sacral; nisso precisamos separar as coisas. Hoje, a grande preocupação dos movimentos litúrgico, religioso e do Concilio Vaticano II, quando ele fala de uma "volta às fontes", que é o grande lema do Vaticano II, quer dizer ir às raízes do que é ser cristão, ir além do devocional e regional.
Trabalhando há quase quarenta anos, eu percebo que há cidadezinhas onde uma Nossa Senhora é mais importante que Jesus Cristo. "Nossa Senhora da Penha é minha santa preferida e eu já não gosto de Nossa Senhora Aparecida nem de Nossa Senhora de Fátima". São expressões confusas.
As pessoas têm uma dificuldade de entender o que seja moderno neste sentido; faltou uma educação religiosa mais profunda. É justamente isso que está se procurando hoje. No mundo sagrado, busca-se muito a limpeza, no sentido de se estar frente ao essencial, daquilo que é a essência da vida. Os adornos, muitas vezes, mascaram a verdade. É um problema de educação. (Continua)

 

Autor
Qualidade do autor
In Revista Dominicana de Teologia - Centro de Estudos Superiores da Ordem dos Pregadores no Brasil, Janeiro/Junho 2009
29.06.09

Imagem
Painel de Cláudio Pastro na igreja
de Nossa Senhora da Assunção
Cabo Frio, Rio de Janeiro

 

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