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Religiões e culturas

Mesquita é onde um homem quiser

Passam poucos minutos das duas da tarde de quarta-feira. De uma discreta porta verde, num recanto de uma calçada junto ao Martim Moniz, em Lisboa, saem vários homens, a ajeitar os sapatos. A mesquita criada pela comunidade do Bangladesh mudou-se há cerca de quatro anos de um prédio estreitinho e em mau estado ali perto, na Rua do Benformoso, para este espaço maior, e todos os dias recebe algumas dezenas de muçulmanos para a oração das duas.

Cinco horas e 18 minutos da mesma tarde. Reboleira, na Amadora. O professor Bubacar Balde e um outro homem iniciam as orações no Centro Português de Estudos Árabe-Pulaar e Cultura Islâmica. As cadeiras usadas para os cursos no centro estão afastadas para um lado, junto a uma parede estão várias pilhas de livros escolares, e num canto tapetes delimitam o espaço da oração. Os dois homens rezam virados para Meca - e para um quadro na parede com uma imagem da cidade sagrada.

Quinta-feira. Duas da tarde novamente. Antiga Quinta do Mocho, em Sacavém, entretanto rebaptizada como Urbanização dos Terraços da Ponte. Não é fácil encontrar a mesquita no meio dos prédios baixos, todos iguais, onde foi realojada a população do antigo bairro de barracas. Por fora não há nenhum sinal que a identifique. Encontramos por fim uma montra de vidro por trás da qual há um pequeno hall de entrada com uma mesa de pedra. Do lado direito um móvel alto de madeira com pequenos cubículos. E uma imagem de Meca.

FotoRodes, Grécia (Delpierra/ANDA)

Os homens, na grande maioria negros, vão chegando e colocando os sapatos nos cubículos. Entram para rezar. Ouve-se o som de água a correr para as abluções (a lavagem das mãos, pés e rosto, necessária antes das orações). Passados poucos minutos saem, calçam-se, despedem-se e partem.

Há dezenas de espaços como estes em Portugal - cerca de 30, segundo a Mesquita Central, de norte a sul, e no Funchal. Alguns chamam-se mesquitas, outros espaços de culto. Nenhum tem minarete. O único minarete em Portugal é o da Mesquita Central de Lisboa. Vem isto a propósito do recente referendo na Suíça que proibiu a construção dos minaretes nas mesquitas daquele país. Fomos saber o que pensavam os muçulmanos portugueses.

FotoLondres, Grã-Bretanha (Melville/Reuters)

Um dos homens que vêm a sair da mesquita da Quinta do Mocho diz que não, não ouviu as notícias sobre o que se passou na Suíça. "Está a falar daquelas torres que constroem nas mesquitas?", pergunta. Depois abana novamente a cabeça. Gostava de ajudar, mas não ouviu falar do assunto. Em seguida troca alguns cumprimentos com outros dois guineenses que se sentaram no banco corrido de madeira na entrada da mesquita. Também estes, por entre sorrisos e cumprimentos, dizem que não ouviram as notícias.

FotoCos, Grécia (Ingolf/HEMIS)

 

"Limpo e virado para Meca"

O número de sapatos vai diminuindo à medida que os homens saem. O último é o xeque, lenço palestiniano vermelho na cabeça, túnica branca, casaco por cima por causa do frio. Demora-se em cumprimentos e volta para casa, no prédio por cima da mesquita.

FotoNicósia, Chipre (Mouton/Globepix)

"Para fazermos a oração há algumas condições obrigatórias: o espaço tem de estar limpo e temos de estar virados para Meca", explica o xeque Munir, da Mesquita Central. Reunidas essas duas condições, o muçulmano não precisa de mais nada, nem de mesquita, nem de cúpula, nem de minarete. Talvez isso explique que, ao contrário do que se passou com os cartoons que ofendiam o profeta Maomé, com livros como os Versículos Satânicos de Salman Rushdie ou com casos ligados à proibição do uso de véu pelas mulheres, desta vez não tenha havido grandes manifestações de protesto contra o voto suíço.

FotoBerlim, Alemanha (Rostamkhani/AFP)

Houve textos indignados nos jornais, houve intelectuais (muçulmanos e não muçulmanos) a insurgir-se contra o que consideram ser um sinal de uma crescente islamofobia na Europa, mas o caso não incendiou a opinião pública. Porquê?

Os minaretes tornaram-se um símbolo da presença muçulmana, identificam um local de culto islâmico, mas não são em si mesmo um símbolo religioso, explica o xeque Munir. "Só surgiram 80 anos depois da morte do profeta. São apenas uma construção, algo que, tal como as cúpulas, os arquitectos muçulmanos acrescentaram [aos espaços de oração], inspirando-se até noutras civilizações." Surgiram por razões práticas. "É um sítio alto de onde se pode chamar para a oração."

FotoPlovdiv, Bulgária. Antiga igreja convertida em mesquita pelos Otomanos em 1364. É a mais antiga fora de Espanha (Harding/Cuboimages/Leemage)

Ao princípio, quando Maomé estava em Meca, "as orações eram feitas às escondidas", mas quando chegou a Medina "uma das primeiras coisas que fez foi construir uma mesquita". A partir daí, e porque o número de seguidores do islão estava a aumentar, era preciso chamá-los à hora das cinco orações diárias. "Não havia relógios e alguém tinha de estar atento e dizer ao profeta "Já está a nascer o sol, agora o sol está a pôr-se"", para que as orações fossem feitas nos momentos certos. E era preciso chamar os fiéis. Daí a necessidade de um ponto alto para fazer o chamamento.

FotoRoma, Itália (Liverani/ANDIA)

Alguns dos seguidores de Maomé terão, conta o xeque Munir, sugerido que se utilizassem sinos, como faziam os cristãos, ou mesmo tambores. Mas o profeta acabou por seguir a sugestão do que lhe dizia: "Por que é que não se louva a Deus e isso será o sinal de que está na hora da oração?"" Surgiu então a figura do muezzin, aquele que faz o chamamento - o primeiro foi Bilal, um escravo negro libertado, que cumpria essa função em Medina.

Mas, obviamente, não é o aspecto funcional, nem sequer arquitectónico, das torres das mesquitas que incomoda os suíços que votaram no referendo e deram ouvidos à campanha antiminaretes lançada pelo ultraconservador Partido do Povo Suíço (num dos cartazes da campanha os minaretes aparecem como mísseis na bandeira helvética). O que perturba os suíços é o facto de o minarete tornar visível a presença de muçulmanos nas suas cidades. E isso é um sinal que preocupa os muçulmanos por toda a Europa, incluindo Portugal.

FotoParis, França (Richer/Photononstop)

Nas cidades europeias dos nossos dias, em que os muçulmanos têm relógios e toda a espécie de gadgets com o chamamento gravado que lhes lembram que é a hora da oração, o minarete não tem a mesma função que no passado. Youssuf Adamgy, editor da revista Al-Furqan e autor de vários livros sobre o islão, é um exemplo disso. Está sentado no pátio interior da Mesquita Central de Lisboa numa sexta-feira, pouco antes da oração das duas da tarde - a mais importante da semana e que deve ser feita em congregação. "Tenho um relógio que faz o chamamento automático", explica. Mas não deixa de se mostrar indignado com o voto suíço. "Quase não acredito", desabafa. "É grave estar a pôr-se em causa a liberdade de expressão num país como a Suíça, das liberdades, da Convenção de Genebra, da Cruz Vermelha."

FotoCréteil, França (Razzo/CIRIC)

Adamgy acha bem que a reacção tenha sido de contenção. "É importante levar isto de uma forma civilizada e dentro dos parâmetros da lei." Mas mostra-se satisfeito com o facto de ter havido protestos "de todos os países, muçulmanos ou não, e até do Vaticano e da comunidade católica". E considera que "mais grave é não deixar uma advogada entrar de véu no tribunal, como aconteceu recentemente em Espanha".

Há sinais preocupantes de "racismo e xenofobia" em alguns países europeus, diz, no momento em que começa a soar o chamamento para a oração no pátio da mesquita. "O que é que aconteceu na Suíça? Um partido ou dois conseguiram mobilizar as pessoas. Hoje assiste-se a este fenómeno: os racistas e os corruptos são eleitos."

FotoAmiens, França (Libert/ASA Pictures)

No seu centro de estudos na Reboleira, o professor Bubacar Balde também se indigna. "O minarete é um símbolo identificador de um lugar de culto. Não sei se esse referendo vai proibir [as torres] para todas as religiões. Os cristãos e os judeus também já não podem construir locais de culto que tenham minaretes? Se for para todos, menos mal. É uma escolha de um povo independente e soberano. Mas se for só para os muçulmanos, então é xenofobia e discriminação e deve ser combatido."

FotoLeeds, Grã-Bretanha (Smith/Panos-REA)

 

E as igrejas?

Sentado à mesa do seu escritório numa das três salas do centro - onde há aulas de português para adultos, informática básica "para jovens e senhoras", língua árabe e cultura islâmica, e língua pulaar (falada pelos fula da África Ocidental), que funciona também como espaço de culto para quem estiver ali à hora das orações, e local para casamentos ou baptizados, o professor Balde explica que tem andado ocupado a organizar uma conferência intitulada Definição do Islão, que se realizará dia 20 na Amadora.

FotoManningham, Grã-Bretanha (Smith/Panos-REA)

Prossegue: "É verdade que o profeta Maomé não conheceu os minaretes. Mas por que é que os cristãos têm os sinos e podem tocar a toda a hora e os muçulmanos não podem? É discriminação e isso causa problemas." Julga, no entanto, que "isto [a proibição] não vai a lado nenhum": "Ninguém vai aceitar uma lei contra muçulmanos num país europeu democrático no século XXI. É inadmissível."

FotoMorden, Grã-Bretanha (Bebber/Reuters)

No fórum online Comunidade Islâmica na Web o assunto também é discutido, embora o debate envolva apenas meia dúzia de participantes. Há quem cite um blogue que ironiza sobre a questão, colocando lado a lado duas fotografias, uma de um minarete, outra de uma igreja: "Um minarete é uma estrutura alta que se ergue ao lado das mesquitas e que serve para chamar os fiéis muçulmanos para rezar. Onde é que eu já ouvi esta descrição? Tenho a certeza de que na religião cristã também existe algo parecido. Já me recordo, são as torres das igrejas!"

FotoLondres, Grã-Bretanha (Katib/AFP)

E há quem fale em "sinal preocupante de intolerância". Escreve um dos participantes: "Acho que o que está em causa é serem os minaretes vistos como um símbolo de algo que se rejeita/desconhece/teme. Um medo irracional, mais do que outra coisa. Mas um símbolo que é visto de forma diferente de outros símbolos, parece-me. Dá ideia que na cabeça dos suíços os minaretes são mais perturbantes por serem muito afirmativos, mais do que as mesquitas propriamente ditas, ou os véus e burqas por exemplo. [...] Um minarete [...] é, como dizia, mais afirmativo, fala mais para fora, interpela os outros, é impossível ser ignorado, reivindica inequivocamente: "Estamos cá.""

FotoDuisburgo, Alemanha (Tueremis/LAIF-REA)

Em Portugal não parece haver problemas. "Aqui não há muçulmanos fundamentalistas. É uma coisa diferente [de outros países], mais franca, mais aberta, mais à vontade", diz Rana Taslim Uddin, da comunidade do Bangladesh, à saída da oração na mesquita do Martim Moniz. "Não estamos preocupados, aqui em Portugal estamos em paz." O xeque Munir reforça: "Não notei nenhum tipo de discriminação. Não há aumento de mal-estar na comunidade."

FotoManheim, Alemanha (Klammer/LAIF-REA)

O guineense José Queta, responsável da comunidade islâmica da Quinta do Mocho, "ouviu alguma coisa na rádio" sobre a questão dos minaretes na Suíça, mas não prestou muita atenção. "Há casos no mundo que acontecem noutras zonas e noutros países, mas as realidades são diferentes." E em Portugal a única coisa que sente é "a boa mão que tem sido dada à [sua] religião". Ali mesmo, na antiga Quinta do Mocho, o espaço de culto foi cedido pela Câmara de Loures. "Temos aqui a mesquita e ao lado a igreja católica, ambas dadas pela câmara." Nenhuma tem torre ou minarete.

Os homens calçam os sapatos e vão saindo. O imã fecha a porta.

Foto

Mesquita Central de Lisboa. A construção começou em 1979, terminando em 1985. Foi projectada pelos arquitectos António Braga e João Paulo Conceição. O minarete inspira-se nos zigurates da Babilónia (Testelin/CIT Images)

"A nossa preocupação é cumprir as ordens de Alá", conclui José Queta. "Às leis de Alá não se pode mudar nem um átomo. Agora, o que foi pensado pelos homens, isso já é discutível."

 

Alexandra Prado Coelho
In Público, 12.12.2009
12.12.09

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