Vemos, ouvimos e lemos
Projeto cultural
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosLigaçõesBreves Arquivo

Entrevista a Cláudio Pastro (II)

A comunhão é uma das funções da arte sacra

Segunda parte da entrevista ao artista brasileiro Cláudio Pastro, que projectaconstrói igrejas e capelas, fazendo painéis em azulejos, mosaicos, frescos, pinturas em vitrais e esculturas.

Qual é a sua grande preocupação quando prepara um projecto para uma igreja? Como nasce um projecto seu?
A grande preocupação da arte sacra, quando se trata de um projecto, para mim é uma só, e fico triste quando para a maior parte do clero não o é: a grande preocupação num projecto de arte sacra é a liturgia. É a liturgia que determina o espaço sagrado; ela determina todo o resto. Porque a liturgia é o único memorial, é a única razão de ser do Cristianismo, da qual todas as demais actividades decorrem. Ela é "ponto x", ela é o princípio, e não há outro princípio, nem que eu queira... Por exemplo, uma paróquia que seja dedicada a S. José, onde tudo gira em torno de S. José... mas este santo não é essência do cristianismo. Se S. José faltar, não vai fazer falta.
Para mim, o grande ponto de partida e de chegada é a liturgia. Quando eu faço um projecto, evidentemente preciso fazer certas adaptações culturais, etc., mas a liturgia é universal, quer dizer, ela é católica.
Hoje discute-se muito, por exemplo, e está na moda, para aqueles que desconhecem, dizer que a liturgia do passado, a renascentista tridentina, chamada de liturgia de Pio V, era melhor que a de Paulo VI, a actual. Isso não é verdade. Isso é um desconhecimento total. Agora, é pena que na liturgia de Paulo VI "cada padre inventou a sua liturgia". Então, não é a liturgia de Paulo VI, do Vaticano II.
A minha preocupação é esta: transparecer nos objectos que se fazem, no espaço, a celebração litúrgica. Ela é indiscutível; e eu sei que trabalhando em cima dela eu vou falar uma linguagem universal. O espaço sagrado aqui e no Japão é o mesmo. O espaço sagrado, quanto à matéria, aqui ou no Japão, é o mesmo: quando eu pego uma pedra para trabalhar, ela tem o mesmo valor para o homem brasileiro, japonês, africano, europeu. O mesmo com a madeira, etc. Por exemplo, eu vi, numa paróquia de São Paulo, um altar de vidro; o vidro é frágil aqui, no Japão e na África. Ele fala para o homem de todos esses lugares igualmente. Para mim esta questão da universalidade na liturgia é tudo. Por isso, você vê que, durante o meu trabalho, que já faço há quase 35 anos, eu raramente pintei um santo. Eu estou atrelado à Palavra de Deus na liturgia, que é Palavra viva.

Levando em conta a sensibilidade dos nossos contemporâneos, o que é que um templo precisa de oferecer àquele que nele entra, no sentido de ajudá-lo a ter uma experiência de Deus, de se sentir convidado à oração?
Continuamos a nossa conversa: a sinceridade, a objectividade do facto, e não a subjectividade, como o que eu quero, o que o padre quer, ou o que um doador quer, ou o que os paroquianos desejam... tudo isto não interessa. Dizem-me, então, "ah, você é radical demais". Sou. Porque este espaço, nós sabemos que é espaço do Mistério, e o espaço do Mistério é o mesmo espaço do homem do século IV, V... ou do século XXI; isso não muda. Por isso nós nunca podemos fazer um projecto falando do homem contemporâneo". Para o homem contemporâneo linguagem sacral não existe e, aliás, seria até uma aberração. É a tal coisa: quando o padre começa a missa dizendo "bom dia!", isso é uma asneira. Nesse momento, eu entrei já na eternidade, então não tem bom dia nem boa noite.
Eu acredito que quando somos universais, cósmicos, e buscamos estar ao serviço da liturgia, já que a liturgia é um serviço para nós, quando buscamos a objectividade do Mistério celebrado, não temos que estar preocupados com o homem contemporâneo, mesmo porque o homem contemporâneo já passou nesses cinco minutos, não existe mais. Então, o homem contemporâneo nunca existe. Por exemplo, a água: ela tem o mesmo valor de fertilidade, de fecundação e de purificação tanto mil anos atrás como hoje. A luz tem o mesmo valor, para qualquer povo, em qualquer lugar e tempo. Se nos preocuparmos com a essência das coisas, estamos falando a qualquer homem contemporâneo. A objectividade do Mistério, esta atenção, é importantíssima. É lógico que tudo isso exige atitudes, posturas muito claras, como de despojamento... Alguns dizem-me: “ah, a sua arte às vezes é muito seca, um altar de pedra, que não admite toalha nem adorno nem nada"... não é que não admite; se a essência é isto, é isto. Não quer dizer que seja mau que alguém, de repente, com muito amor vá lá, leve um ramo de flores e o ponha ali. Isso é uma expressão da pessoa, mas não é da essência da liturgia. A essência é aquilo que nos une. Veja que uma das funções da arte sacra é a comunhão. Ela une-nos numa única linguagem. Por exemplo: as mãos postas significam uma atitude de servo. O homem de hoje, na Igreja Católica, não usa mais as mãos postas; ele já se sente senhor, ele não é servo coisa nenhuma. Mas todos nós somos servos de Nosso Senhor! Então as mãos postas têm um significado: quando eu posto as mãos, eu perco as minhas atitudes; eu passo a pertencer ao Outro, porque eu não tenho mais atitudes, pois minhas mãos estão presas. Isso é um acto de louvor e de reverência muito forte. Aos poucos, os sinais sacrais desaparecem e nós temos um discurso extremamente laicista, actualmente. E por demais laicista. Um outro aspecto da religiosidade actual é o sentimentalismo, que se opõe frontalmente ao sacral.
Se ficarmos em função do homem contemporâneo, que é a sociedade, é melhor não ir pelo lado religioso, porque isso não interessa: Deus não entra em nada do que fazemos na sociedade de hoje. Aliás, muitos pensam que Ele só atrapalha.

Pastro, qual a teologia ou a mística que está por detrás do artista Cláudio Pastro, que a expressa em suas obras?
A oração é o princípio de tudo. Eu percebo que quando eu fraquejo na oração, eu fraquejo na arte, consequentemente. O meu grande momento de inspiração é a missa. Na missa eu recebo um balde de criatividade. Pode chamar-se de abstracção, não me interessa, mas eu sinto como parte da graça, que é meu dom, a arte, os momentos nos quais eu mais sou purificado, clareado em termos de ideias, e também recebo este balde de inspiração, que vem da própria Palavra, do próprio momento do Mistério, que nos transfigura. Para mim, é por detrás disso. Não vejo outra mística. Quando a mística é muito devocional, subjectiva, ela já não é mais mística, porque a palavra mística vem de Mistério. Por isso, quando ela é muito subjectiva, é mais um problema psicológico, pessoal. Os grandes místicos da Igreja, no primeiro milénio, sobretudo, mas acredito que também os de sempre, eles são eclesiológicos, são homens da Igreja. O Mistério de Deus, no mundo, chama-se Igreja. Então, pertencer à Igreja, estar atento aos seus documentos, às suas questões, seja da Igreja local ou universal, enfim, pertencer à Igreja é importante. Levar uma vida de cristão normal.

Você é influenciado por algum artista moderno?
Dos mais modernos já citei alguns. De Matisse eu gosto muito da limpeza de seus traços; gostei muito do Pennacchi e mais ainda do Galileu Emendabile, que foi um grande escultor aqui em São Paulo. Gosto muito, também, de tudo o que é primitivo, porque nele está o moderno, a coisa de sempre.

Pastro, para terminar, gostaria de fazer uma pergunta bastante ampla: o que é beleza?
Beleza é saber-se pertencer a Deus. Deus é a beleza. O homem tem que chegar a este ponto. Não adianta parar em pequenas belezas, supérfluas e ilusórias. Beleza é estar em Deus, e quando se está em Deus transparece a beleza: ela aflora, sem nenhum moralismo, sem nenhuma crítica, sem nenhuma preocupação se assim é melhor do que assado, se é melhor usar órgão que tambor, etc. Isso tudo é um disparate. Esta é a grande questão do cristianismo: ele não pode ir na onda da moda. A moda, no mundo actual em termos de arte moderna ou contemporânea, em termos de suas expressões, sempre vai existir. Mas, justamente o homem cristão é aquele que, vivendo no mundo, sabe não ser do mundo. Então, ele tem que passar por este crivo, por esta purificação. E se ele busca em Deus, e Deus é o único que é belo, ele tem que ficar atento a isso, e o subjectivo tem que desaparecer. No começo do meu trabalho, eu não assinava as obras, como todos os artistas do passado. Ainda hoje, no caso dos ícones, não assinam; ainda sobre os ícones, no caso de Rublev ou de Teófono o grego, sabemos que eles ficaram famosos, não porque deixaram de assinar, mas porque as obras eram tão bonitas que o nome foi ficando. No começo eu não assinava, mas na Europa começaram a exigir que eu assinasse, porque é importante que o artista assine, etc., e aí pegou.
Gostaria de referir que o trabalho como artista sacro é um ministério eclesial. Gosto de entender o artista sacro como um fóssore [pessoa que preparava as sepulturas nas catacumbas]. Há nas catacumbas de Roma a imagem do fóssore, pintada. Ele era o responsável por preparar e ornar os túmulos cristãos. O artista sagrado é aquele que, como o fóssore, conduz a Deus. Nas catacumbas, como disse, é possível apreciar esta imagem, de um homem com um balde de tinta nas mãos.
A arte sacra, juntamente com os sagrados ministérios, os ministros e o povo de Deus, faz parte da celebração. Uma missa sem algum elemento de arte sacra é uma missa manca. A missa não é só uma questão de padre, mas de todo um conjunto, das pessoas, do espaço, daquele pequeno microcosmo que celebra. A arte é uma expressão disso. É lógico que eu preciso estar atento à Igreja local, àquela comunidade, mas quando a oração é objectiva, a arte também é objectiva e também se preocupa com o Mistério. Quando a oração é subjectiva, a arte é quebrada.

 

Autor
Qualidade do autor
In Revista Dominicana de Teologia - Centro de Estudos Superiores da Ordem dos Pregadores no Brasil, Janeiro/Junho 2009

© SNPC | 30.06.09

Interior de uma igreja










































































































































 

Ligações e contactos

 

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Subscreva

 


 

Mais artigos

Imagem/Vídeo
Mais vistos

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página