Vemos, ouvimos e lemos
Projeto cultural
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosLigaçõesBreves Arquivo

Leitura

No Dia Mundial do Livro, um Livro sempre por ler

Erasmo dizia que o texto bíblico não nos remete para uma língua unicamente, mas está repleto delas: “a língua dos homens e a dos anjos, a língua da terra e a do céu, a língua dos ínfimos e a língua de Deus”. A Bíblia é, em relação ao infinito, um observatório e um reservatório. A sua palavra aspira impacientemente à categoria de não-palavra, ou não-apenas-palavra. Busca o vislumbre. Não quer ser porta, quer transportar. Quer o contínuo do sentido como disseminação acessível e sem fim. A Bíblia foi escrita com palavras que sonham.

E, quem sabe, se foi esse sonho, se foi por fim esse sonho, e não simplesmente as inúmeras marcas e fracturas de uma complexa construção, a determinar que a Bíblia se organizasse infinitamente. Como infinito de linguagens, máquina de proliferação de ritmos, câmara de ecos, montanha santa de paradoxos, palimpsesto, sobreposição experimental de signos, súmula, vibração polifónica, work in progress e Revelação.

Scriptura cum legentibus crescit, «A Escritura cresce com os que a lêem». Gregório Magno, o último dos Padres da Igreja do Ocidente, como habitualmente é chamado, conduz-nos a outra prática de infinito: a leitura.

Já a Bíblia fora, na origem, Miqra (termo hebraico para leitura comunitária e em alta voz). A Bíblia foi leitura antes de ser livro. E nela persistem marcas dessa gestação oral, puramente sonora; dessa recitação ininterrupta, por gerações. Foi a partir duma tradução, realizada na Alexandria helenística dos III e II séculos a. C. (denominada como tradução grega dos LXX ou Septuaginta), que o corpus bíblico passou a ser chamado ta biblia («os livros»), Antes disso, não tinha propriamente um nome. Diz o Talmud que os anjos choraram nesse dia. Porém, a escrita conferiu à Palavra um carácter radicalmente histórico que ela antes não tinha.

Tanto a hermenêutica judia como a cristã construíram itinerários minuciosos para a leitura, que, repentinamente, prolifera, ganha sentidos, vias ínvias, desdobramentos. Os mestres judeus falam da leitura do sentido simples (pchat), mas também daquele alusivo (rémez), do interpretativo (drach), e ainda do secreto (sod). As quatro consoantes iniciais destas palavras formam pardès, termo que significa paraíso: o endereço perene da leitura.

Por sua vez, os leitores cristãos dividiam-se: uns, para seguir Orígenes e Jerónimo, retinham a tricotomia (leitura histórica ou literal; tropológica ou moral; mística ou alegórica), outros assentiam nas quatro distinções de Cassiano e Agostinho (o sentido histórico da leitura; o alegórico; o tropológico e o dito anagógico ou escatológico). Esta última doutrina seria fixada no famoso dístico: Littera gesta docet; quid credas allegoria; moralis quid agas; quo tendas anagogia (a letra ensina os acontecimentos passados; a alegoria desvela o conteúdo do que crês; o sentido moral ilumina o modo como convém agir; a anagogia esclarece o objecto da esperança). Caminhos de acesso ao infinito da leitura.

Scriptura cum legentibus crescit. O texto permanece em aberto não por insuficiência, mas por excesso. Ler a Bíblia, aproximar-se dela na pluralidade das traduções, das tradições, até mesmo das traições, é outra coisa, porventura, que observação de um infinito? Ler será, por isso, ampliar ainda os arquivos do espanto.

 

José Tolentino Mendonça
In A Leitura Infinita, Ed. Assírio & Alvim
23.04.09

Bíblia
























 

Ligações e contactos

 

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Subscreva

 


 

Mais artigos

Mais vistos

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página