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Matéria poética - Ensaios de literatura portuguesa

"Matéria Poética de Maria João Reynaud apresenta-nos três ensaios e quatro estudos.

Os ensaios refletem sobre 'a dificuldade do ensino da poesia', num tempo que, segundo a ensaísta, é de 'crise generalizada de valores – culturais, sociais, éticos, políticos'. O desafio que aqui se lança é, pois, abrir o acesso à linguagem poetológica, quebrar a resistência do leitor àquela que é a 'mais condensada forma de expressão verbal'.

Dos estudos, que se seguem aos Ensaios, três focalizam autores - «Sophia: Na luz Branca da Escrita», «Miguel Torga Poeta / Profeta» e «Albano Martins: Três breves Estudos» sobre os livros «Rodomel Rododentro», de 1989, «Uma Colina para os Lábios», escrito em 1993 e «O Mesmo Nome», datado de 1996. Lança-se ainda um «olhar transversal» sobre o programa da revista Árvore que teve na sua direção, durante os anos cinquenta António Ramos Rosa e Egito Gonçalves, entre outros. (Teresa Sá Couto)."

A palavra à autora, a partir da Introdução:

"Neste livro, que vem no prolongamento de outro imediatamente anterior (Sentido Literal, Porto, 2004), reúno alguns estudos que, embora produzidos em circunstâncias e momentos diversos, têm a poesia como objeto comum de reflexão. Todos eles aceitam, como premissa maior, que o trabalho do poeta consiste fundamentalmente em vencer a resistência da linguagem, sua matéria-prima, para que ela devenha pura ressonância do ser-no-mundo e instrumento dúctil de uma imaginação confrontada com a sua própria ilimitação, face à opacidade do sentido último. Paul Valéry, que define a poesia como «uma arte da linguagem», considera que «é ofício do poeta dar-nos a sensação da união íntima entre a palavra e o espírito» (1). Na sua ótica, torna-se necessário que a linguagem se desvie do seu uso prático para que o sentido seja investido pela forma e se comunique na modulação do ritmo e na harmonia do verso.

Tal desvio não elimina porém a possibilidade de um embate violento entre a linguagem e a realidade – e o risco do estilhaçamento de ambas. O poema torna-se então signo de rutura e mal-estar existencial, lugar precário onde se revela a trágica insuficiência da linguagem perante o que a excede ou a violenta. A lacuna, a falha textual, o inacabamento – o «vazio da fala» perante a brutalidade do mundo – são sinais de declínio do poder fundador da poesia. Ou, talvez melhor, do esgotamento da fé na poesia, pelo súbito obscurecimento da luz que dela advém. Mas a poesia é um fazer contínuo, que atravessa extensas regiões de sombra e de silêncio – o silêncio onde pode ser resgatado, ainda que por breves instantes, o sentido da existência. Daí que o termo «matéria» possa designar, genericamente, tudo aquilo de que a poesia é feita.

Só a poesia é capaz de revelar todas as potencialidades da língua, transgredindo – de modo intuitivo ou programado – as normas que regulam o seu uso prático. Cabe ao poema, nos seus diferentes níveis de formalização, forçar as fronteiras conhecidas da língua em que é escrito. Escrever é experimentar o peso matérico das palavras, como nos diz Carlos de Oliveira na admirável arte poética intitulada “Soneto”: «Rudes e breves as palavras pesam / mais do que as lajes ou a vida, tanto, / que levantar a torre do meu canto / é recriar o mundo pedra a pedra;[...]» (Cantata). O que aqui se enuncia é a própria dificuldade do trabalho poético, metaforicamente associado à resistência da pedra e do ferro, que importa vencer, e o sentido ascensional (e ético) que o poeta-artífice lhe confere. A fé no poder performativo da linguagem faz com que fulgure, no auge deste canto dolorosamente lapidado, o sonho de libertar as palavras da condição puramente terrena, de modo a que elas possam encontrar a sua oculta plenitude na apoteose do voo: «ó palavras de ferro, ainda sonho / dar-vos a leve têmpera do vento».

Mas o que é a palavra poética? Diz-nos Heidegger, numa das suas meditações sobre a linguagem, que «a pedra do caminho é uma coisa». Contudo, através do ato de nomeação, ela é trazida à palavra e ao aparecer. A linguagem é, pois, muito mais do que «expressão oral e escrita do que importa comunicar»: aquém ou além da sua função instrumental, ela conserva o poder originário de trazer à plenitude do ser as coisas que nomeia, sendo por isso «Poesia em sentido essencial» (2). Esse poder de nomeação faz com que a palavra fundadora – «das Wort» – esteja nos antípodas do «signo linguístico» («das Zeichen») (3). Lampejo gnosiológico, o dizer poético preserva a me­mória de uma língua mítica, integralmente performativa – o divino poiein de que fala Platão no Crátilo, a Ursprache que arrancou o homem das trevas do mundo.

A acutilância destas observações leva-nos a aceitar, como uma evidência, que poesia e linguagem não podem ser pensadas separadamente na dinâmica do processo criativo. O acesso à palavra poética não se faz, porém, sem um ato de violência regeneradora contra a linguagem quotidiana, de modo a que a poesia devenha um lugar de «resistência», o reverso de uma linguagem em indefinida expansão degenerescente em virtude da «sua tagarelice constitutiva» (Jean-Luc Nancy) (4). Lugar de preservação de um segredo ancestral, «o poema não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para renascer das suas cinzas e para infinitamente se tornar naquilo que sempre terá sido» (Valéry (5)).

Na obra de arte verbal, «a pedra no caminho» é trazida ao ser num duplo movimento de abertura e retraimento, como acon­tece neste poema de Eugénio de Andrade: «[...]as palavras, da pedra não guardam o peso, herdam apenas a cor. As minhas, têm às vezes a brancura lisa dos seixos, mas outras, a noite parecia ter nelas encontrado refúgio. São as mais secretas, com elas poderia fazer-se uma coroa de relâmpagos[...]» (“Pedras”, Vertentes do Olhar) (6). A intuição da unidade profunda entre a matéria cósmica e a palavra poética faz com esta recupere, inesperadamente, a sua força genesíaca.

Uma das questões que volta a estar na ordem do dia é o apagamento das fronteiras entre os géneros e um significativo abandono das formas poéticas fixas e da versificação tradicional, em favor da invenção de novos caminhos para a poesia. O que pode indiciar uma mudança de gosto ou um deliberado afastamento das regras convencionais que preservam a tradição e a perpetuam. São muitos e diversos os caminhos que conduzem ao poema. Mesmo aqueles que parecem alamedas iluminadas acabam às vezes por conduzir a um lugar incerto ou a um sentido proibido. Em poesia não há vias de sentido único e proliferam os becos pedregosos, sem saída. Contudo, é no ponto exato onde o poeta enfrenta esta dificuldade – e pára – que os caminhos se podem reabrir e multiplicar: só um deles levará ao ponto secreto onde a solidão é estrada. No seu termo, espera-o um lugar desconhecido, à margem da lei.

A obra literária não é apenas o lugar simbólico onde a linguagem resgata o poder de nomear o mundo, mas um campo de experiência inesgotável onde a língua age em todos os sentidos, tornando-se o instrumento privilegiado de um processo espiritual redentor.

Os ensaios e estudos aqui reunidos incidem sobre temas e obras relevantes da literatura portuguesa contemporânea. A organização do volume respeita a natureza dos textos e, tanto quanto possível, a cronologia da sua escrita ou publicação. São exercícios de compreensão literária que procuram dar conta das condições intelectuais e artísticas em que algumas das obras abordadas foram produzidas e dos processos estilísticos que as singularizam. Por representarem direções distintas da nossa poesia na segunda metade do século XX, todas elas abrem possibilidades ilimitadas à reflexão estética mais atual.

A tarefa crítica oscila, ciclicamente, entre os pólos da construção e da desconstrução. A via mais fecunda talvez seja a que é aberta pelo «aprendiz secreto» de que fala António Ramos Rosa num dos seus livros mais recentes: «às afirmações dogmáticas, à imposição dos conceitos», por que não «opor a simplicidade primeira de uma energia que nunca é figurada mas cintila e estremece nas formas subtis da construção»? (7)"

 

(1) Paul Valéry, Discurso sobre a estética. Poesia e pensamento abstrato, Lisboa, Vega, 1995, pp. 68 e 82.

(2) Cf. Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, Lisboa, Edições 70, 1991, p. 59.

(3) Martin Heidegger, Acheminement vers la parole [Unterwegs zur Sprach, 1959], Pa­ris, Gallimard, 1976, pp. 203 e 231. Daí a importância do último verso de um poema de Stefan George, longamente comentado: «Aucune chose ne soit, là où le mot faillit» (pp. 206-207).

(4) Jean-Luc Nancy, Resistência da Poesia, Viseu, Vendaval, 2005, p. 42.

(5) Cf. ob. cit., p. 79.

(6) Eugénio de Andrade, Poesia, 2.ª ed. revista e acrescentada, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2000, p. 401.

(7) António Ramos Rosa, O Aprendiz Secreto, Vila Nova de Famalicão, Edições Quasi, 2001, p. 21.

 

Maria João Reynaud
In Matéria Poética - Ensaios de Literatura Portuguesa, ed. Campo das Letras
14.04.09

Capa

Matéria Poética
Ensaios de literatura portuguesa

Autora
Maria João Reynaud

Editora
Campo das Letras

Páginas
192

Ano
2008

Preço
€ 11,34

ISBN
978-989-625-343-1





















































































 

 

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