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Entrevista

Cristianismo e utopia

Num dia de denso calor, no fresco jardim da York House, em Lisboa, o madeirense José Tolentino Mendonça, 43 anos, padre e poeta, mas sobretudo, um pensador livre, parou o tempo para falar de utopia. Um homem que admira os místicos, escreve sobre sensualidade e sabores na Bíblia e gosta de cidades. Em Nova Iorque, observa a multidão "numa coreografia de Pina Bausch". Nos mosteiros, escuta a profundidade do silêncio. Esta entrevista é atravessada por essa luminosidade.

Quando o desafiámos para esta conversa disse que o tema da utopia o interessava muito.
Em tempo de crise, o nosso défice de esperança obriga-nos a relativizar o presente e a sondar o futuro. Para os cristãos, o presente é resgatado pelo futuro. Nenhum presente, individual ou colectivo, é capaz de dar todas as respostas. Todos os homens morrem sedentos. Utopia, literalmente, é o não-lugar. É também indutora do caminho e da expectativa. Induz à viragem e à inquietação em relação aos paradigmas, que se apresentam como fatalidades. Os utopistas nunca são muito bem olhados pelo seu presente. São provocadores e contagiadores.

Fala em esperanças. Não foi uma palavra banida no nosso tempo?
Em termos de tecnologia e da ciência, em relação ao homem de há dois mil anos, construímos um abismo. Mas, em relação ao que é o sentido da vida, estamos atrás. Não podemos adoptar a ideia de progresso porque não sabemos mais sobre o Homem do que um sábio de há vinte mil anos. Há textos milenares que têm um conhecimento sobre a profundidade do ser humano que hoje raramente encontramos.

Só ganhámos em conhecimento científico?
Conseguimos mapear a biologia humana mas não o nosso coração. O homem continua a ser um mistério para si mesmo.

E não foi sempre?
A dificuldade é vivermos num tempo de proliferação de saberes, mas falta-nos uma sabedoria que nos ensine a enfrentar os grandes embates. As dimensões fundamentais da vida, como a relação com a morte, tornaram-se num tabu. À maneira das sociedades mitológicas, o que não queremos ver ou não sabemos explicar, mantemos sob grande ocultação.

Nas sociedades mitológicas atribuía-se ao desconhecido valores simbólicos.
E hoje há uma miséria simbólica. À força de sermos consumidores, telespectadores, utentes, esquecemos a nossa condição de criadores de símbolos. Por esse processo de acumulação, o mundo fala menos ao homem.

É um falhanço do homem ou da Igreja, que abriu mão de fornecer as interpretações?
A Igreja não abriu mão de fazer uma reflexão sobre o homem e muitas vezes aparece solitária nesta missão, como uma anomalia, precisamente porque não desistiu de pensar o destino humano, da concepção até à sua morte.

Os homens não querem ouvir ou a Igreja já não tem voz?
A Igreja dialoga com a cultura mas não determina os modelos dominantes.

A Igreja não ganha com esse diálogo?
Ganha. Mas a utopia já não é a "cidade ideal" do Renascimento. É um discurso de coragem e de desadequação. Semeia outro tipo de visões. Há dias, Manoel de Oliveira disse que queria fazer um filme sobre uma sociedade sem dinheiro. Pensar radicalmente a sociedade do dom e da colaboração, é utópico. Precisamos que a arte redescubra esta tensão.

Por que um padre reivindica este espaço para a Arte e não para a Igreja?
Reivindico para todos aqueles com liberdade suficiente para o fazer. Um crente tem de viver em liberdade para testemunhar a utopia e ser uma espécie de pergunta na paisagem do mundo.

Que pergunta?
O que é o homem? Para onde caminhamos? Como é que esta relação com o divino pode ter uma forma de encontro e tornar o mundo melhor?

Está a colocar a utopia no campo da espiritualidade, quando, no século XX, foi o lugar do social e do colectivo. O que move os homens agora?
A utopia irrompe no silêncio. É sempre seminal. A utopia cristã começa de forma insólita, quando um homem se anuncia como filho de Deus. Quando o cristianismo começa, é absolutamente irrelevante. Jesus era um galileu, o sítio mais obscuro daquela civilização. Mas sem que os grandes observadores desse tempo se dessem conta, estava ali a surgir um movimento capaz de deslocar os referentes do mundo. Hoje é preciso ir ouvir o silêncio do mundo. O que está a crepitar? Provavelmente, as grandes utopias do momento não são aquelas que se conseguem detectar. É o que está a acontecer nos pequenos grupos. É uma forma de consciência.

Este silêncio o que lhe diz?
O movimento que se expressa no voluntariado e na deslocação de pessoas de uma terra para outra, para viverem em condições muito precárias mas onde a dimensão ideal, carismática se sobrepõe à condição económica e da realização pessoal. É aqui que se sublinha o encontro. É um laboratório de mundo novo.

Os voluntários praticam a caridade, reivindicada pela Igreja, mas questionam esta palavra e a maneira da Igreja a fazer.
Na tradição cristã, o amor desinteressado foi sempre uma dimensão essencial da fé. A palavra caridade é belíssima mas desgastou-se, foi desvirtuada. Praticá-la era uma descarga de consciência. Na sua primeira encíclica, Bento XVI lança o desafio de reabilitar a caridade. João Paulo II dizia que os cristãos são chamados à fantasia da caridade. É uma expressão fantástica, porque é necessário ser criativo. Hoje, o voluntariado é outro nome da caridade. A luta pela justiça, assim como a promoção da condição da mulher também.

São discursos de fora da Igreja.
Não concordo. Se olharmos para o papel histórico que as congregações religiosas femininas cumpriram em relação à afirmação da mulher, percebemos o grande contributo da Igreja.

Não é esse o discurso do poder.
O discurso mais importante da Igreja não é o do poder. Há entendimentos da Igreja que a reduzem a uma determinada imagem social. Será estranho ouvir um padre sobre a utopia? Penso que é natural porque o cristianismo é uma experiência utópica.

Seria surpreendente escutar este Papa sobre utopia.
Seria interessante. Teria muito a dizer.

Diz isso como padre?
Digo como intelectual.

Quando o mundo quer ouvir um discurso libertário, foge da Igreja.
A utopia não é um discurso libertário.

O discurso de Cristo foi libertário.
Prefiro dizer libertador, o termo libertário também tem a sua história, é político. A palavra "libertador" é mais humanista, teológica. É preciso dizer que em relação à Igreja há muitos clichés, como associá-la ao conservadorismo.

Por que as mulheres não têm um papel mais activo?
Quem acompanha a história da Igreja já viu muita coisa.

Não está a responder...
Pelo contrário, a Igreja é predominantemente feminina. Todos os padres falam da Igreja como mãe. Tem essa dimensão de maternidade. Além disso, a maioria dos cristãos são mulheres. Necessariamente têm um impacto profundíssimo em toda a realidade da Igreja. Não quero fugir ao ministério ordenado, mas essa não é a única questão. Tem-se ideias muito superficiais sobre a mulher. Há outros ministérios.

Não é um assunto que está a "crepitar''?
Nas faculdades de teologia a produção do discurso religioso começa a ser feito no feminino. Isto não pode não ter consequências. Mas não podemos esbater com a configuração histórica e teológica da comunidade cristã.

Então os anseios da comunidade cristã podem ser preenchidos por uma mulher a pensar o discurso religioso, mas não a professar o ministério da eucaristia?
Pensar é fundamental e os contributos são muito diferentes. Há uma religiosidade feminina, que é específica. Quando as mulheres são protagonistas da experiência cristã, dão um timbre muito próprio. Um exemplo recente é madre Teresa de Calcutá, onde a dimensão do feminino está presente com grande liberdade.

Porque está fora do poder?
A dimensão utópica está muito mais perto do mundo feminino do que do masculino. Na sua aparente marginalidade é muito mais transformador.

Sempre foi assim, precisamente porque a mulher ocupou o espaço doméstico.
Pensem em Teresa de Calcutá: é da Albânia, foi para a Índia, onde começa uma realidade entre os mais excluídos dos excluídos. Uma figurinha mínima e começa uma experiência internacional. Em Chelas [Lisboa], temos estas mulheres. Não sei se um homem seria capaz disso.

A sua comunidade partilha deste respeito pelo discurso feminino?
A Igreja é uma realidade muito colegial.

Não é o que vem para fora: cada vez mais se fala do isolamento de Bento XVI.
Este Papa é um exemplo desta dimensão utópica. É um inconformista em termos culturais.

Não é um reaccionário?
No tempo do politicamente correcto, é muito fácil que um utópico seja considerado reaccionário.

É utópico, em quê?
Não coincide com o seu tempo. Não é um objecto da cultura dominante. Ao mesmo tempo não desiste do ser humano. Nunca poria o Papa Ratzinger na categoria de reaccionário e basta.

Não será o intelectual a admirar o Papa intelectual?
Não. É a sua capacidade de dialogar que me causa admiração. Não se pode acusar Bento XVI de temer afirmar o seu pensamento. Mesmo algumas polémicas, como o discurso de Ratisbona, mostram a sua coragem. Para nós, é uma referência.

Esses "nós" refere-se aos padres?
Nós civilização, homens de cultura.

O discurso contra o preservativo em África foi desadequado ao nosso tempo.
(Pausa)... Sabe, tenho uma simpatia grande pelos falhanços da comunicação. Quando corre oleada 100 por cento pela máquina, que sabemos ser muito bem montada, sem atrito, fico arrepiado. Mesmo quando não concordo, o atrito faz-me pensar.

Num momento de crise porque é tão difícil "partilharmos a mesma refeição"?
Uma mesa onde todos comem do mesmo pão teve um preço, que foi a morte de Jesus. Não conseguimos mudar o mundo sem ir até ao extremo da dádiva. Isto é um discurso ao arrepio das nossas utopias muito domésticas.

Acredita nessa utopia?
Sim, as grandes transformações implicam uma dádiva radical.

Somos capazes desse extremo?
Individualmente chegamos lá: os pais sentem que dão a vida pelos filhos, as pessoas que dão a vida pelo que fazem, pelo que sonham. Mas comunitariamente temos mais dificuldade.

Escreveu sobre a palavra que Deus disse a Caim, "timshel" (tu podes), Lembra o "we can" de Obama. É um discurso messiânico?
Para mim, o messiânico tem de ter uma dimensão total. A política é apenas uma parte. Um dos problemas da nossa sociedade é ser contraditória: há uma alergia e, simultaneamente, uma obsessão pelo político.

Interessa-lhe mais o individual do que o colectivo?
Interessam-me aqueles que têm a liberdade para pensar. Por exemplo, a mim interessa-me muito o que um escritor pensa.

Que escritor?
Corman McCarthy, por exemplo. Interessam-me as palavras que nos chegam de um grande silêncio... Mas, quero voltar à mesa. Porque é que a refeição é tão importante? Porque é à volta da mesa que partilhamos os códigos simbólicos fundamentais. E transversais às culturas e aos tempos. A mesa é tão importante numa comunidade de aborígenes como num liceu em Nova Iorque.

Cada vez nos sentamos menos à mesa. Esvaziou-se.
É verdade. Mas há sempre essa nostalgia. E esse esvaziamento reflecte também as feridas de uma desestruturação profunda e de uma crise antropológica, mas continua a ser uma utopia fortíssima.

Qual a mesa mais extraordinária que partilhou?
A da eucaristia. É a mais extraordinária. Nenhuma outra é aberta a todos. Temos fronteiras em relação à mesa. É o lugar onde protegemos o nosso mundo. Mas ali não é assim. Todos os interditos caem.

Não é bem assim...
Pode-se sempre dizer: "Ah, mas não são consequentes até ao fim, nem concretizam aquilo que ali vivem." Absolutamente de acordo. Mas eu sei que aquela mesa é a porção utópica do mundo.

Sente isso todos os domingos?
Todos. Tenho essa consciência de uma forma profunda. Já me aconteceu celebrar uma missa em Roma, numa garagem de um bairro periférico, com sem-abrigo ou imigrantes romenos. O facto de sermos estranhos e estarmos ali reunidos naquela mesa, ajuda-me a viver. É o meu alimento utópico.

Fala também numa outra grande utopia, ainda mais metafórica: o sepulcro vazio.
Não é metafórica. É uma realidade histórica.

A única certeza que temos é de que morremos.
É verdade... a mortalidade. Mas houve na história, um sepulcro que ficou aberto. Essa é a utopia cristã. O encontro daquelas mulheres num amanhecer da história determina a nossa visão da vida. A explicação desse vazio enche a nossa vida de presença.

Com tudo o que já descobrimos, a mensagem da ressurreição é a mais difícil de passar?
Sempre foi. É um absurdo, um contra-senso Ao arrepio de tudo aquilo que nós vemos. Mas a fé é um salto no escuro.

Como seduz as pessoas para esse salto?
Uma pessoa que se dedica aos deficientes mentais - que o mundo não considera, não são produtivos, não têm os cânones de beleza e de inteligência adequados à nossa sociedade - dizia-me que via, todos os dias, nos pequenos gestos, a ressurreição. Ressuscitar em grego quer dizer pôr-se de pé.

Pôr os excluídos de pé é um discurso político.
Mas o discurso religioso tem uma dimenssão política. Jesus realizava actos performativos, mas também políticos.

Fala dos milagres?
Do milagre da multiplicação dos pães. Muitas vezes concentram só no maravilhoso, mas o fundamental é Jesus sentar uma multidão indistinta, impura à volta de uma mesa. É um acto político.

Acredita nos milagres de Fátima?
Há dimensões do maravilhoso que são uma linguagem ao serviço de outra coisa. São sinais que servem para revelar. Todos nós podemos dizer: "A nossa vida é uma sucessão de milagres”.

Para uma sociedade como a nossa esse curso é acolhedor, mas vemos as igrejas mais vazias e as mesquitas mais cheias.
Num tempo de recomposição, talvez neste esvaziamento se veja um mal-estar, mas também a procura de outras palavras.

Não o assustam as igrejas vazias?
Não. O silêncio não me assusta. Há nas igrejas um dramatismo purificatório.

Porque só ficam os bons crentes?
Ficam os que ficam. E quem parte não quer dizer que parta. É preciso entender nesta modernidade tardia, ou pós modernidade, que o que vemos não são rupturas afirmadas, mas um contemporizar de coisas aparentemente paradoxais. Evidentemente que olho para a diminuição de uma prática religiosa como um empobrecimento. É como se este fosse um tempo da teologia negativa. Há a teologia positiva que afirma os dogmas, a verdade da fé, e a teologia negativa, dos místicos, do silêncio, da purificação das imagens, da relativização daquilo que construímos. Que diz: "Deus está além das representações que fazemos."

Como explica a fé'? Quando o procuram, o que diz?
Tenho muita paciência (risos)...

Sempre teve fé?
Sim, embora sempre questionada. Há uma romancista americana, Flanery O'Connor, de quem gosto muito, que diz que ter fé é mais difícil do que não ter. A fé é uma luta, um espinho na carne, uma tensão e uma permanente atenção. Tem essa dimensão utópica, que não nos deixa fechar, mas é peregrinação e nomadismo interior.

Porquê?
Porque é uma gramática, obriga a buscar e a viver mais do desejo. Não se encontra. Quer-se sempre mais.

Como não se encontra, se está presente?
Está presente como um mapa que nos é dado, mas não pode ser só isto. Como dizia Mário de Sá Carneiro: "Um pouco mais de azul, eu era além, um pouco mais fogo e eu era brasa." Sentimos que o mundo, e aquilo que conseguimos fazer, ainda é um lugar intermédio. Ainda é um momento. É provisório.

Vamos falar de si. O que é ser padre? É uma profissão?
É uma paixão, um enamoramento, uma forma radical e marginal de vida. E também é paixão porque é o assumir de uma configuração da vida no que ela tem de empenho, trabalho, compromisso, acção.

Porque diz que é radical?
Não se é padre das nove da manhã às seis da tarde. É-se sempre. É uma coisa que, tendo uma dimensão de função, de ministério, compromete a vida toda. Estrutura o nosso ser.

Considerou a hipótese de desistir?
Não, esta questão nunca se me pôs.

Como foi feita a escolha?
É uma vocação, um chamamento, porque não é apenas uma escolha pessoal. Somos também escolhidos.

Foi incentivado pela sua família?
Não só, pela comunidade. O grupo tem para mim um significado muito grande.

Antes de ser padre, queria ser o quê?
Sei lá, já foi há tanto tempo, mas gostava de ter sido jornalista. A escrita esteve sempre lá.

Aprendeu a rezar com os seus pais? Qual a sua memória mais antiga da oração?
São as memórias que formam o que somos. O mais submerso. Lembro-me de atravessar o corredor, a porta do quarto dos meus pais estar aberta e o meu pai ler a Bíblia. Vi que estava a ler um texto que depois percebi ser de São Paulo. Um homem simples, um pescador. Uns foram os passos que dei até aquela porta, depois foram outros. Mas, no fundo, era tudo o mesmo. A fé é relação. É confiança. Aquele viver confiado dos meus pais foi uma marca. Mas temos muitos pais e muitas mães. Recebi de pessoas muito diferentes.

Quem o marcou?
Não só os grandes mestres católicos mas também Bernanos, Grahan Green, Robert Bresson. Interessa-me uma certa insubmissão e um discurso contra-corrente, culturalmente novo. Por exemplo, Pasolini foi a certa altura muito importante. Neste sentido sou um libertário.

Pasolini não seria muito aconselhável...
Ou seria muito aconselhável.

Disse que a sua vocação foi "inconsequente e imprudente, uma coisa de juventude".
A figura do padre tornou-se marginal. É uma figura da imprudência. Um padre é um impertinente. É um caminho difícil, de uma certa solidão. Depois descobrimos que não, que se torna um elo, um eixo para muitas redes.

Como intelectual, precisa de ser consensual?
Acredito na hospitalidade e no acolhimento. O homem é a coisa sagrada sobre a Terra. É a imagem e semelhança de Deus.

Amar a Deus ou ao homem é diferente?
É um mesmo amor. Simone Weil dizia que não é por Deus nos amar que devemos amá-lo. Porque Deus nos ama é que devemos amar-nos.

Não sente falta do matrimónio, da paternidade?
Evidentemente que sim. O caminho de um padre é uma via pobre. A minha vida é mais pobre que a de outros. A realização da dimensão afectiva é essencial. É uma resposta à possibilidade da construção de si. Mas nesta pobreza há utopia. Há uma fecundidade muito grande. Paternidade espiritual.

Como se foge das tentações?
É um caminho de decisão. Quando escolhemos, não negamos. Ampliamos.

E a comunhão física com o outro?
O amor tem muitas dimensões. Somos herdeiros de um longo património, cheio de histórias de vida e amor onde percebemos que a dedicação ao outro dá sentido à vida.

É uma transferência?
Não. É descobrir possibilidades em nós. Podemos amar sempre de formas tão diferentes... Há uma grande proximidade entre o amor místico, o amor de doação e o amor sensual.

Os seus grandes exemplos são S. João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. É o que busca como caminho de santidade?
Tenho-os por companheiros. Seria uma presunção tomá-los como exemplos. Sou um Zé-Ninguém. Não tenho interesse nenhum. Tenho por companheiros esta geografia de rebeldes e intensos. O amor deles é total. Na escrita dos místicos percebemos sensualidade porque é da intensificação da própria procura.

É possível amar Deus fisicamente?
É possível amar a Deus. Não segmento. O amor místico compromete a vida inteira, mobiliza o corpo. Torna ardente a experiência.

Entregou-se a Deus ou à Igreja'?
A Deus, claramente.

Não tem ambição na hierarquia da Igreja? É um intelectual.
Nenhuma. Primeiro, na Igreja não se tem essa noção do serviço. Pelo menos, na Igreja onde eu me inscrevo e vivo, não sinto esta competitividade. Exerço um ministério, ensino a Bíblia. O trabalho que faço no meio intelectual é um serviço à Igreja e é tudo o que desejo. É poder servir.

Entrou na Igreja pelo Cântico dos Cânticos.
E gostava de sair. Este Verão quero reunir várias versões de escritores portugueses do Cântico dos Cânticos, escrever um ensaio e publicar. Tenho muita inveja da morte de São Tomás de Aquino - um intelectual impenitente, que trocava toda a riqueza do mundo por um tratado de Aristóteles. Ao morrer, pediu que lhe lessem o Cântico dos Cânticos. Era assim que eu gostava de morrer.

Não tem medo da morte?
Não. Tenho medo e respeito pelo sofrimento. Mas sinto que posso partir a qualquer momento. Tenho essa liberdade.

Sente que vai ter um encontro?
Sinto. São Paulo diz que agora vemos como num espelho e de forma confusa, o que depois veremos face a face. Acredito nesse face a face. Gosto muito de um poema do Fernando Pessoa, que para mim é uma oração. É um bocado heterodoxo, mas eu rezo muito: "Ave, passa, e ensina-me a passar." Essa passagem silenciosa ensina-me a não deixar rasto.

No entanto, escreve. Vai deixar rasto.
Tudo isso vai ser esquecido.

Então, porque publica?
Porque falamos uns com os outros, acompanhamo-nos. Ser companheiro, é partilhar o mesmo pão, a mesma palavra, que é a palavra poética. Interessa-me a poesia como forma de resistência. Não acredito na poesia como forma de imortalidade. A Divina Comédia ainda é um manual de resistência. Não é uma estátua a Dante Alighieri.

 

Entrevista de Ana Soromenho, Christiana Martins
In Expresso (Única), 27.06.2009
28.06.09

Foto
José Tolentino Mendonça
Foto: Tiago Miranda























































































































































































































































































































































































 

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