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Parâmetros para uma definição da situação cultural da contemporaneidade

Um primeiro sintoma parece ser o da generalização ou globalização de certos modelos, com destaque para a “americanização" (de que, aliás, já se fala nós anos trinta europeus) ou, como hoje se diz, da "Macdonaldização" da cultura, que vem impondo, a partir de um centro "forte" (que se revê naquilo que faz e é, e não naquilo que fez e foi), padrões culturais e de vida, de produção e consumo, a países ou regiões ditos "fracos" ou periféricos. Apesar da evidente expansão deste modelo, há quem defenda a tese de que a globalização não conseguirá vingar no campo cultural e de que as divisões culturais persistirão. É o caso, por exemplo, do antropólogo Clifford Geertz (em Mundo Global Mundos Locais. Cultura e Política no Fim do Século XX) e do seu argumento de que, de facto, não sabemos bem como enfrentar um mundo "global", mas mal articulado: "Somos confrontados com um campo de diferenças e ligações tão grande que o não podemos abarcar com o olhar." Geertz considera o efeito da globalização enganador e a sua afirmação "inverosímil", e conclui: "A multiplicidade das culturas é um dado adquirido, e até em crescimento (...) Quanto mais as coisas se aproximam, tanto mais continuam separadas." (Geertz, 1999: 59).

Um dos traços dominantes desta globalização parece ser o da viragem, a que estamos a assistir, de uma cultura da palavra (...) para uma cultura do espectáculo (ou do enactment) Em O Castelo do Barba Azul, George Steiner lamenta (tal como Harold Bloom em O Cânone Ocidental) aquilo a que chama a passagem de um estado de cultura triunfante a uma pós-cultura (para ele o equivalente de sub-cultura) que se caracterizaria pela "retirada da palavra". É indisfarçável, nestes autores de perfil conservador, uma nostalgia por uma "alta cultura" perdida em favor de uma relação mais desliterarizada com os textos, como a praticam os "estudos culturais" (a que Bloom chama "a escola do ressentimento"). Compreende-se a actualidade de uma orientação tendencialmente democratizadora do nosso convívio com os objectos de cultura, como são os cultural studies, numa época pós-colonial. Mas também não é difícil reconhecer que, nos casos mais extremos, essa prática pode fácil e deliberadamente transformar Shakespeare ou Camões em meras "obras de consulta" ou numa base de dados sociológicos e históricos, colocando-os a par do romance de cordel.

Este pendor sociológico dos estudos culturais, que tanto desagrada aos paladinos de uma visão estritamente estetizante, parece-me assinalar o regresso do paradigma racionalista-positivista aos estudos literários, com uma forte vertente pragmática que não pode agradar aos defensores de uma relação mais essencialista, ético-estética, com as "grandes obras" (e só com elas). Mas, de facto, aquilo que hoje aproxima os produtores de cultura e literatura mais representativos do momento e do sistema (que já não tem um rosto politico-ideológico, porque se transformou no polvo incaracterístico do mercado e da engenharia financeira) é que agora a questão do sentido (do sentido do sentido) não se coloca: a nossa cultura do espectáculo, da moda à política e ao mundo literário, não é crítica, é performativa. (...) A nossa contemporaneidade não tem um projecto (como a modernidade estética o teve, de Baudelaire às vanguardas, na figura do niilismo), só tem "estaleiros"; é uma "cultura de cidadelas" que vive com a crise e a cultiva - mas esta crise deixou de estimular qualquer potencial crítico. Vivemos uma cultura "débil", sem frentes, apenas com ofertas concorrentes.

Paul Ricoeur parece assumir uma posição conciliadora, ao reconhecer que a cultura contemporânea do espectáculo cada vez mais cai na tentação de fazer o sentido perder-se na sedução (um traço muito evidente em alguma teoria francesa), à custa da racionalidade, hoje desacreditada; mas propõe, ao mesmo tempo, a ideia de que, no plano do simbólico, sentido, racionalidade e sedução são compatíveis - e este é, para Ricoeur, o melhor modelo de transfiguração do mundo pela produção cultural.

O que, diga-se, não deixa de ir ao encontro daquele sentido, muito amplo, em que se entende a cultura na era pós-moderna: uma cultura transgénica, híbrida e permeável. Isso gerou novas formas de arte e modelos novos do literário, mas também fez chegar a cultura contemporânea a um nível que alguns consideram infra-cultural. O ponto de vista é, naturalmente, discutível. Se, por um lado, as formas mais reificadas da cultura de massas que conhecemos - o "Big Brother" de hoje - já são a versão degradada das de ontem (por exemplo o "Big Show Sic"), o que parece indicar que a "geração rasca" se transformou numa "geração rosca" (a da espiral descendente imparável para uma vala comum onde tudo se encontra e onde tudo vale), por outro lado, estes diagnósticos sumários são perigosos e soam a falso. De facto, os "Big Shows" e os "Big Brothers" do nosso (des)contentamento sempre existiram, sob formas actualizáveis e permanentemente actualizadas de uma cultura de massas que tem no panem et circenses a sua referência paradigmática.

No melting pot intracultural que é qualquer sociedade de hoje, estas formas da cultura de massas existem a par de manifestações de cultura de elite, da cultura popular mais autêntica e de formas novas de contracultura. Talvez a Internet seja hoje uma das mais poderosas formas de contra-cultura (aliás, com paralelos óbvios em relação às dominantes nos míticos anos sessenta: a aventura on the road, o fascínio de uma nova natureza, agora virtual, a experiência do aberto e sem limite), também ela uma contracultura condenada a transformar-se, mais tarde ou mais cedo, em cultura dominante (é esse o destino de todas as contraculturas e de todas as vanguardas).

A cultura literária, da letra e da palavra, está a mudar de lugar e de configuração na era do digital, do hipertexto e do livro electrónico. Estas novas formas de comunicação literária ocupam, por enquanto, ainda o lugar de uma contracultura, ou de uma cultura minoritária, objecto de alguma suspeição, mas que não deixa de ser literária. Mas esta situação é já hoje paradoxal e transitória. Paradoxal, porque o futuro já está aí, o digital tomou, de facto, conta de um presente (...) que ainda ontem era visto como futuro de todas as odisseias. Transitória, essa situação sê-lo-á, porque é irreversível o avanço avassalador do digital e do virtual sobre o analógico e o material. Com que resultados e consequências, é questão que nos ultrapassa agora. Mas parece ser certo que, num futuro que já é nosso, o perfil da cultura literária passará também, e em grande parte, por esta nova forma de contracultura literária: a do texto em rede, da rizomatização da leitura, da nova ideologia do aberto, do leitor hiperactivo e criativo.

"O simbólico", diz J. Bragança de Miranda, "mais do que opor-se ao digital, prepara-o historicamente" (Revista de Comunicação e Linguagens, n.° 28, p. 33). A forma actual do "mundo simbólico" com que Ricoeur descreve os mecanismos da esfera cultural é já o digital. O simbólico, antes referido ao Deus de teólogos e filósofos, passou-se para o interior da própria máquina, e a cultura do futuro encontrará (mais facilmente do que acontecia com o deus ex machina do passado) a sua salvação no deus in machina, fria codificação do real em bits e bytes. E não sabemos se, do lado de cá, continuaremos a poder dispor de uma qualquer “natureza”.

 

João Barrento
13.03.2001
In A espiral vertiginosa - Ensaios sobre a cultura contemporânea, ed. Cotovia
17.06.09

Luz e palco
Randy Faris/CORBIS





























































































 

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