5.ª Jornada da Pastoral da Cultura
Que havemos de fazer com a liberdade, ou o que há-de a liberdade fazer de nós?
A liberdade política é ganho irrecusável da civilização e da cultura, fruto arduamente acumulado da experiência e da reflexão humanas. Possível, além do mais, quando à consistência da vida sócio-económica e cultural se somou a maior disposição de si mesmo, juntando-se a lógica reivindicação de participação e decisão na coisa pública.
Realidade esta não isenta do estímulo e ensaio que lhe foram proporcionados pelas comunidades cristãs, dos Actos dos Apóstolos à vida “consagrada” dos mosteiros e conventos (possibilidade de ascensão social em tempos muito estratificados, maior liberdade para contrair casamento ou tomar outra opção, autoridade feminina nas instituições e iniciativas religiosas, etc.).
Como pretendeu Fukuyama, a história já teria atingido o seu objectivo, ao realizar as duas grandes motivações do seu processo, sintetizado com Hegel no desejo humano - em relação ao que cada um necessita para se manter e crescer - e no reconhecimento que esperamos dos outros em relação à nossa dignidade própria. Ambos - desejo e reconhecimento - se realizariam na democracia liberal, que, sendo o termo da evolução ideológica da humanidade e a forma final do governo humano, constituiria como que o fim da história (cf. Fukuyama, F. - O fim da história e o último homem. Lisboa: Gradiva, 1992, p. 13-14).
No entanto, o rescaldo do século XX, certamente um dos mais trágicos e brutais da história humana, leva-nos a considerar que a acepção política da liberdade não basta. Apesar dos indesmentíveis ganhos conseguidos neste capítulo, ainda se fica mais pelo quantitativo e formal do que pelo qualitativo e realmente novo.
Aliás, a desilusão ideológica recente retraiu a liberdade para o domínio do sentimento individual, entre o devaneio e a ambição. Podemos alargar o âmbito do que escreveu Bento XVI na sua Mensagem de 1 de Janeiro passado, Dia Mundial da Paz: “A própria crise recente demonstra como a actividade financeira seja às vezes guiada por lógicas puramente auto-referenciais e desprovidas de consideração pelo bem comum a longo prazo” (Mensagem, nº 10).
Não será então melhor considerar a liberdade como dinamismo intrínseco a desenvolver responsavelmente, isto é, conjugado com a liberdade dos outros e do Outro, só assim nos adequando à realidade, ou seja, à verdade? Assim a entendeu e propôs um passo luminoso do Concílio Vaticano II, tanto ou mais oportuno hoje do que há quatro décadas: “Deus torna o homem participante desta sua lei [divina, eterna, objectiva e universal], de tal modo que o homem, por suave disposição da divina providência, pode obter um conhecimento cada vez mais perfeito da verdade imutável. Por isso, cada um tem o dever e também o direito de procurar a verdade em matéria religiosa, utilizando os meios idóneos para formar prudentemente juízos de consciência rectos e verdadeiros. Contudo, a verdade deve procurar-se de modo apropriado à dignidade da pessoa humana e à sua natureza social, isto é, com uma investigação livre, ajudada pelo ensino e pela educação, por meio da comunicação e do diálogo, a fim de que, pelo apoio mútuo na procura, uns revelem aos outros a verdade que descobriram ou que pensam ter descoberto; e, uma vez conhecida essa verdade, devem aderir firmemente a ela com assentimento pessoal” (Concílio Vaticano II, Declaração Dignitatis Humanae, 1965, nº3).
Se no século XIX tentámos traduzir politicamente a liberdade, no regime constitucional e representativo; se o século XX viu sucessivas ideologias reduzirem a liberdade a “pedagogias” opostas, que deixaram em saldo o relativismo pós-moderno… - Não estaremos na altura de considerar a liberdade como dinamismo e capacitação para alcançarmos, pelo acolhimento mútuo e interactivo, um patamar de realidade em que caibamos todos e nos reconheçamos na humanidade comum – essa mesma em que nós, os crentes, confessamos a incarnação de Deus, definitivamente aquém e sempre mais além?
D. Manuel Clemente
Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
5.ª Jornada da Pastoral da Cultura, Fátima, 05.06.2009
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11.06.09
Foto: António Pedro Monteiro
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