Que a pandemia quase remeteu a zero o número dos peregrinos que em 2020 percorreram o Caminho de Santiago é fácil de imaginar. Neste incerto 2021 entrevê-se já uma boa retoma, mesmo se as normas sanitárias reduziram drasticamente as camas disponíveis nos clássicos albergues das várias veredas que conduzem ao túmulo do apóstolo Tiago. E pensar que em 2019 os peregrinos que obtiveram a famosa “Compostelana”, o documento que atesta o cumprimento da peregrinação a pé pelo menos durante 100 quilómetros, foram quase 350 mil.
Quando 25 de julho, festa de S. Tiago Maior apóstolo, ocorre ao domingo, assinala-se o novo Ano Santo Compostelano. É a boa ocasião para um renascimento, ainda que silencioso, discreto, confiada a homens e mulheres que decidiram partir. De resto, não se trata apenas de uma questão de números. A paragem do ano passado pareceu a alguns um acontecimento epocal. Mas o Caminho observa os acontecimentos do mundo com a paciência de uma história que dura há séculos e conheceu momentos de esplendor, assim como longas fases de esquecimento. Basta pensar que a primeira peregrinação ao túmulo do apóstolo remonta ao longínquo 825, quando, à notícia da descoberta do sepulcro, o rei das Astúrias, Afonso, o Casto, se pôs a caminho para o ver com os seus olhos, percorrendo uma vereda intransitável e penosa, hoje conhecida como Caminho Primitivo, talvez para se defender melhor das incursões dos muçulmanos que então controlavam grande parte da Península Ibérica.
A notícia percorre lentamente um mundo nada globalizado e despertou-o aos poucos, colocando em movimento o coração e as pernas de muitos, mendigos e reis, santos e pecadores. Uma cruzada silenciosa e desarmada, mesmo se acaba por aquecer o coração e a fantasia daqueles que depressa viram o apóstolo à cabeça das armadas cristãs empenhadas na lenta e árdua “Reconquista”, que somente terminará em 1492. Os mouros chegaram inclusive a saquear Santiago, mas respeitaram o túmulo de S. Tiago, depois apelidado de Matamouros.
Até ao século XV, o Caminho marcou o despertar da fé de muitos e um sonho de renascimento que contribuiu para renovar a Europa. Mas foi essa mesma Europa que provocou a crise da peregrinação no século seguinte: a Reforma, as guerras de religião, a crítica ao culto dos santos e das relíquias, a própria insegurança das estradas marcadas pelo sangue das batalhas pareciam conduzir a peregrinação a um rápido fim.
Como certas espécies em vias de extinção, os peregrinos registados à chegada à grande catedral e ao seu esplêndido pórtico da Glória eram cada vez menos, mas nunca desapareceram. Um “resto de Israel”, dir-se-ia, que sobreviveu inclusive aos decretos napoleónicos de dissolução das confrarias que apoiavam o Caminho, de encerramento de todas as formas de acolhimento e sustento aos peregrinos que favoreciam a longa marcha rumo aos restos mortais de um dos amigos de Cristo, um dos três que o acompanharam sempre, no monte da Transfiguração e na noite do Getsémani. Tiago, irmão do Senhor. A ele, como aos outros, Jesus tinha perguntado: «Também vos quereis ir embora?»
.De 1825 a 1905 os peregrinos que chegaram a Santiago reduziram-se a pouco mais de dez mil ao todo, em média 130 por ano. O resto – o que Napoleão não fez – fizeram-nos os conflitos mundiais do século XX, a guerra civil espanhola, o próprio isolamento da Espanha franquista. Mas o pavio fumegante não se extingue e a chama começou a reavivar-se quando, em 1950, um, grupo de parisienses fundou uma associação para apoiar quem quisesse voltar a enfrentar aquela longa estrada que hoje, para quem percorre o mais famoso dos Caminhos (o francês), começa tradicionalmente na aldeia pirenaica de Saint-Jean-Pied-de-Port, a poucas dezenas de quilómetros de Lourdes, para chegar à mágica planície de Roncisvalle, início e fim de uma epopeia antiga como o Caminho. Foi esta associação francesa que inventou a “credencial”, espécie de passaporte que se enche de carimbos e de datas, e atesta a passagem do peregrino pelos diversos albergues ao longos da estrada. Lugares de encontros, de amizades, por vezes de graças que surpreendem o viandante ainda antes de chegar ao pórtico da Glória.
Como é conhecido, o Caminho voltou a números consideráveis somente no início dos anos 90 do século passado, e por muitos motivos, históricos e culturais, nem todos ligados à fé. Mas talvez tenha sido sempre assim. No rio do tempo, como no céu das noites ao longo do Caminho pontilhadas pela miríade de estrelas da Via Láctea, prescindindo das estatísticas e dos números, por vezes brilha algo que está destinado a não se extinguir. E que muitos reconhecem neste êxodo da rotina quotidiana que é a peregrinação a Santiago. Uma via em que o desejo de encontrar o Céu se torna simples, como é simples dar um passo a seguir ao outro. O resto fá-lo aquele que quis descer do Céu e caminhou pelas estradas dos seres humanos, onde a “routine” – a roda que gira sobre si mesma – pode converter-se em “route”, a via que a certo ponto faz entrever, inesperadamente, a beleza da meta.