«Quero ir a Santiago, saindo de casa, pouco antes da aurora. Mas não deve ser uma fuga. Tenho de remexer mais a fundo por dentro, para decidir. O peregrino é o verdadeiro buscador de verdade, porque só a morte o pode impedir de chegar à meta. Abandona tudo. Arrisca e paga em pessoa, com o espírito e com o corpo. Com a pessoa inteira. Sobretudo o peregrino é aquele que busca, aceitando o incalculável risco de encontrar verdadeiramente. Diferentemente de todos os intelectuais que buscam por buscar, mas no fundo têm medo de encontrar. Porque encontrar significa deixar de ser o que se era antes. É mudar. É morrer. Para renascer. Agora também o rabi Nicodemos o sabe» (Davide Gandini, “O Pórtico da Glória”).
Era dada como morta, ou pelo menos moribunda; em vez disso, a experiência da peregrinação – a “verdadeira”, realizada a pé, que tem no Caminho de Santiago o seu protótipo – goza hoje de uma grande vitalidade. Parece não se ter desvanecido, na sociedade do bem-estar e das garantias, aquela inquietação que sempre impeliu os seres humanos a deixar a segurança das suas casas para empreender um caminho de resultados imprevisíveis. Aliás, segundo alguns, a figura da peregrinação é talvez aquela que melhor descreve a espiritualidade contemporânea, sobretudo das novas gerações: busca, mais do que posse; perguntas, mais do que certezas; nostalgia; mais do que saciedade. Uma espiritualidade que aceita o risco, que avança por tentativa e erro, que sente o fascínio dos grandes horizontes, mas também a grande fadiga dos pequenos passos. Uma espiritualidade que, tendo renunciado ao poder unificador da ideologia, vive a balançar entre o ser fragmento entre os outros fragmentos em que se desdobra a existência, e o tornar-se fio condutor – subtil, mas robusto – de todas as experiências da pessoa.
Não foi fácil a redescoberta da peregrinação, considerada como era entre os opostos extremos da viagem sem meta e de um turismo religioso fortemente marcado por um certo ritualismo, que parece ter por pressuposto uma fé esquecida da Páscoa de Jesus Cristo. Foi precisa a tenacidade de alguns pioneiros, as Jornadas Mundiais da Juventude, o Grande Jubileu, a paixão de quantos quiseram partilhar com outras pessoas e comunidades a sua experiência peregrina. Foi também importante a ação de pequenas e grandes associações, que fizeram da promoção e do apoio à peregrinação – um pouco por todo o mundo (há um “Caminho da fé” que aproa a Aparecida, no Brasil) – a sua razão de ser.
Hoje, a peregrinação de Santiago, e a peregrinação a pé em geral, gozam de grande sucesso. Também na pastoral, e não só juvenil, multiplicam-se as iniciativas de pequenos e grandes grupos, de paróquias, dioceses, associações, que preveem a itinerância ao longo dos percursos históricos das grandes peregrinações cristãs, ou pelos mais modestos trilhos traçados localmente pela piedade popular. Por trás desta atenção está a intuição que a peregrinação interceta uma sensibilidade religiosa difusa, mas contém igualmente elementos educativos capazes de a fazer crescer de maneira correta.
Compreendida desta maneira, a peregrinação de Santiago tornou-se uma via através da qual toda uma série de necessidades espirituais do ser humano ocidental – que não podem ser negadas, mas que não encontram lugar no interior dos vários sistemas em que a sua vida está esboroada – são reconhecidas e vivem. Entre elas, a necessidade fundamental de dar um sentido à vida e à morte, ao caminho quotidiano da pessoa. Nenhum dos vários sistemas, com efeito (nem o religioso, apresentado e entendido, cada vez mais, sobretudo como uma instância ética do que com um significado para a vida), parece ter deixado de se interessar pela transmissão do sentido do ser humano e da sua vida. E este é o dom que ao longo dos séculos o Caminho ofereceu a quem correu o risco de o percorrer: uma direção, uma via e uma meta que em Cristo se tornam um só.
Não conheço testemunho melhor sobre a graça da peregrinação a Santiago do que a descrita por Davide Gandini no seu livro “O Pórtico da Glória”, que estimulou muitos a tentar o Caminho de S. Tiago. Escreve ele: «A peregrinação a pé é experiência humana antiquíssima de oração e de busca. Uma busca através de um método diferente daquele meramente intelectual. A peregrinação utiliza a experiência como método de busca. (…) Só a busca através da experiência permite respeitar a unidade da pessoa. Tenho de buscar “todo inteiro”, e não só intelectualmente, eis o que me repetia ao início dos anos 90. Há algo de fundamentalmente errado na ideia de que se pode chegar à verdade – incluída a verdade da impossibilidade de encontrar a verdade – através de um percurso exclusivamente individual e mental. Seria correta a busca intelectual – talvez – se fôssemos esferas pulsantes de energia que voam no ar. Antes, somos o mistério que somos, espíritos incarnados, somos “pessoas”».
Quem percorreu o Caminho (especialmente se partir dos Pirinéus, ou de mais longe) sabe-o: durante o caminho a pé experimenta-se – por vezes confusamente, por vezes com a clareza de uma evidência – uma Presença, a que muitas vezes não se sabe dar um nome. Há necessidade da Igreja para lhe dar um nome: Jesus Cristo, que é o princípio e o cumprimento da unidade que buscamos connosco próprios, em nós próprios, com o nosso povo e com todos os povos, com o nosso passado e o nosso futuro. Com a alegria do Evangelho. O Caminho de Santiago foi e continua a ser para a Europa uma matriz de vida, cultura, relações hospitaleiras. Literatura, arquitetura, itinerários e “hostal” de acolhimento, edifício e objetos de culto, iconografia, lendas populares, marcaram a Europa sob a marca do itinerário compostelano, ao ponto de o Conselho da Europa o ter decretado «primeiro itinerário cultural europeu» (1987).
Ao longo do Caminho de Santiago, esta experiência de reapropriação de uma cultura que é raiz é evidente pelo facto de pela via da peregrinação serem bem visíveis os sinais da passagem de milhões de pessoas; o próprio ambiente modificou-se em função da peregrinação: igrejas, devoções, lugares de hospitalidade, mosteiros, toponímia, tudo envolve o peregrino e insere-o num ambiente sagrado quase inadvertidamente. Se a motivação religiosa ou a simples curiosidade impelem o peregrino ao Caminho, é a memória que conserva para sempre aquilo que se viu e aquilo que se fez. Um conhecimento do mundo ativo, ligado a uma experiência pessoal inesquecível e inserida num sistema de valores, entre os quais se destacam a fraternidade entre peregrinos e o serviço e a caridade cristã em relação a eles. O conjunto destes fatores dará um significado particular a quanto se viu, sentiu e aprendeu, e constituirá uma adesão pessoal inseparável da sua experiência humana.
A peregrinação a Santiago foi (e é-o também nos nossos dias, para quem enfrenta o cometimento da peregrinação a pé) sobretudo isto: uma viagem fora de si, fora do quotidiano, mas também e sobretudo dentro de si. O peregrino viaja fora e dentro: ao longo de um território geográfico e ao mesmo tempo “in interiore animae”. Precisamente por isso radica profundamente na memória coletiva (europeia e não) o tema da busca de Deus, tornado possível e acessível no interior de um imenso lugar santo constituído pelo reticulado das estradas de peregrinação, pelos milhares de igrejas, capelas, sacrários que o consagram e que acompanha os passos dos peregrinos.
A peregrinação a Santiago nunca se interrompeu no tempo: quer por causa pelos jubileus (de cada vez, como este ano, que o dia 25 de julho ocorre ao domingo), quer pela persistência dos vários itinerários, em grande parte ainda íntegros, que se tornaram eles próprios símbolo, sinal e memória da peregrinação. O papa prolongou até todoo 2022 o Ano Santo Jacobeu: quem escuta o chamamento a partir, parta!