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Num país a sério

No «Público» de anteontem [16 de Maio], entre outras considerações que não discuto aqui, Pacheco Pereira afirmava que, se Portugal fosse um país a sério, “não deixaria sequer um político balbuciar (como fazem no Bloco de Esquerda), face aos acontecimentos no Bairro da Bela Vista, que se trata de uma ‘questão social’”. A Igreja poderia fazê-lo porque “o seu Reino não é cá na Terra”. “Mas a caridade não é a missão do Estado. A missão do Estado é garantir a nossa segurança, sem mas nem ambiguidades.” E passava de seguida a explicar por que razão as crises económicas e sociais nada têm a ver com o crime: “Os pobres não fazem carjacking, não se armam com uma caçadeira e não vão assaltar bancos, bombas de gasolina, ourives e ourivesarias, e caixas multibanco, para comprar roupa de marca.” Está assim demonstrado.

Eu tenho uma opinião algo diferente sobre o tipo de coisa que faria de Portugal “um país a sério”. Se Portugal fosse “um país a sério”, o debate público sobre este tipo de questões já não ocorreria ao nível em que Pacheco Pereira o colocou. Haveria uma comunidade académica pujante de investigadores dedicados ao estudo do fenómeno do crime, cujo papel no debate público sobre este assunto já teria inibido qualquer pessoa que se apresente como “historiador” (ou seja, como um cientista social) de escrever o que Pacheco Pereira escrever com objectivos única e exclusivamente políticos. Essa comunidade poderia já ter explicado, por exemplo, que não há hoje praticamente dúvidas de que os factores que melhor explicam a incidência de crimes num determinado contexto são a pobreza das populações e a falta de mecanismos de “controlo social” (em particular, a existência de alta instabilidade familiar). Que os efeitos positivos da encarceração sobre o crime são contrabalançados por efeitos negativos, ligados à quebra da estrutura familiar e à aprendizagem do crime nas prisões. Lembrariam também que, num “país a sério” como os Estados Unidos, o Departamento de Justiça e a Associação Nacional de Polícias estão seriamente preocupados com os efeitos da actual recessão económica na incidência de vários tipos de crimes, incluindo não apenas fraudes mas também todo o tipo de furtos, vandalismo, tráfico de drogas e violência doméstica. Que um conhecido estudo do Banco Mundial, utilizando dados de 86 países ao longo de 14 anos, mostra como as crises económicas aumentam a criminalidade. E que, na base da investigação existente, os factores que menos ajudam a explicar a criminalidade são a dureza das penas, o número de efectivos policiais e o aumento de recursos para as polícias. Na ciência, e ainda menos nas “ciências sociais”, não há certezas. Mas é o melhor que temos. Fazer de conta que não existem, para quem se apresenta como fazendo algo mais do que mero combate político, justifica-se apenas por ignorância ou cegueira voluntária. Num país a sério, uma ou outra seriam dificilmente desculpáveis.

Num país a sério, um partido de centro-direita também já teria percebido que as conclusões destes estudos não são nem “de esquerda” nem “de direita”, e não impedem a existência de debate ideológico e políticas alternativas. Há muitas maneiras de lidar com aquelas que se sabem ser as principais causas do crime. Há formas de combater a pobreza diferentes das políticas sociais e subsídios aos quais parte da direita ideológica se opõe. Há uma sólida agenda conservadora que pode ser avançada sobre a questão da estabilidade das famílias. O fortalecimento das normas de controlo social, obtido através do apoio a organizações culturais, de moradores e de jovens a nível local, favorecendo o estabelecimento de relações entre associações representativas de grupos étnicos e religiosos e a criação de um ambiente de confiança mútua entre as polícias e as populações não tem por que ser intrinsecamente um desígnio “de esquerda”. Note-se, de resto, como é triplamente míope a condescendência com que Pacheco Pereira trata o papel da Igreja Católica e as declarações de D. Manuel Martins e D. Jorge Ortiga sobre o caso da Bela Vista. Primeiro, porque poucas instituições conhecem tão bem no terreno as realidades dos “bairros difíceis” como as paróquias e os agentes pastorais. Segundo, porque o seu papel no fortalecimento das normas de controlo social junto das comunidades locais pode ser fulcral, até em ligação a outras confissões religiosas. E, finalmente, é míope em termos estritamente políticos: ao enfatizar exclusivamente o papel securitário do Estado nestas matérias – “garantir a nossa segurança, sem mas, nem ambiguidades” –, Pacheco Pereira deixa aos seus adversários políticos o benefício de serem eles a proporem as soluções ao mesmo tempo mais prometedoras e mais rentáveis do ponto de vista político-eleitoral, tais como os “contratos locais de segurança” que o actual Governo vai celebrando pelo país com várias autarquias. É bom que haja oferta partidária para todos os nichos de opinião sobre esta questão, inclusivamente as daqueles que acham que tudo se resolverá exclusivamente com penas mais duras e mais políticas. Mas essa é uma função que o CDS-PP já cumpre muitíssimo bem.

Finalmente, num país a sério, o repetido recurso a falácias argumentativas sobre as questões da “responsabilidade individual” já teria sido de tal modo sancionado pública e intelectualmente que certamente as ouviríamos com menos frequência. Já não ouviríamos dizer, por exemplo, que procurar explicar as causas do terrorismo significa defender os terroristas. Que conhecer e compreender as causas do insucesso escolar significa defender o “facilitismo” nas escolas ou impedir o reconhecimento do mérito individual. Que discutir as causas do crime e procurar agir sobre elas impede de alguma forma que se defenda a vigilância das zonas perigosas ou a repressão da criminalidade. Que constatar a baixíssima relação custo/benefício que a investigação sobre o tema mostra entre o investimento em (caras) medidas securitárias e a redução do crime não tem de significar abandonar o policiamento ou reduzir as penas. Ou que constatar que um fenómeno qualquer tem causas sociais, políticas e económicas não significa desculpar comportamentos individuais inaceitáveis. Mas numa coisa Pacheco Pereira tem razão: deste e doutros pontos de vista, Portugal não é mesmo um país a sério. Se fosse, eu não teria de ter escrito este artigo.

 

Pedro Magalhães
Politólogo, Director do Centro de Estudos e Sondagens de Opiniões (CESOP) da Universidade Católica Portuguesa
In Público, 18.05.2009
20.05.09

Fotografia
Procissão pela Paz no
Bairro da Bela Vista
12.05.2009
Foto: José Luís Costa (Lusa)

































































 

 

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