Deserto e comunhão
A partida para o deserto não é por ele ser o lugar ideal ou alternativo à cidade, mas porque o Evangelho de Cristo é a verdadeira alternativa. Santo Antão, pai do monaquismo, chegou a ser repreendido pelo demónio porque, com a sua presença no deserto, ameaçava transformar este em cidade (Vita Antonii, 8,1). Esta é, de facto, a finalidade dos que se retiram no deserto: transformar toda a terra desabitada em “cidade de Deus”. Porque onde houver homens de Deus, acontece a cidade, a verdadeira sociedade.
É neste contexto que se entende a fuga mundi proposta pelos Pais do Deserto.
O Pai Poemen disse ainda:
«A primeira vez, foge; a segunda, foge; a terceira, torna-te uma espada» (CA, Poemen 140).
No mundo dos homens que tendem a levar demasiado a sério seus planos e “projetos urbanos”, o monge aparece como um aviso profético que aconselha ao distanciamento e a não levar demasiado a sério senão o que é realmente sério.
Um ancião disse:
«Ou foges realmente dos homens ou, então, faz-te louco, jogando com os homens e com o mundo» (Guy VIII,31; SC 387, 421. 420).
O pai Or disse:
«Ou foges dos homens ou, então, faz dos homens e do mundo um jogo, fazendo-te passar por louco em muitas coisas» (CA, Or 14).
Mas, atenção, porque não é o deserto que faz o monge, como bem sabem estes mestres do discernimento e da atenção a si:
O pai Poemen dizia:
«O princípio de todos os males é a desatenção» (Guy II,24; SC 387, 138).
A mãe Sinclética disse:
«Há muitos que vivem no deserto, mas comportam-se como se estivessem na cidade; eles estão a perder o seu tempo. É possível estar a sós na própria mente, mesmo no meio de uma multidão e é possível que um solitário viva entre a multidão de seus próprios pensamentos» (Guy II,27; SC 387, 138).
A solitudo do deserto não é, por isso, um fim em si mesmo, mas um caminho para a universitas, bem representada pela Igreja sem fronteiras.
«O monge é aquele que está separado de todos e unido a todos. É monge aquele que se considera um com todos, pois tem o hábito de se ver em todos» (Evágrio, Pequena Filocalia, 124-125).
O deserto torna-se assim condição de hospitalidade e de relações sanadas:
A madre Sara disse:
«Se eu rezar a Deus para que todos estejam contentes comigo, acabarei a fazer penitência à porta de cada um deles. Rezarei antes para que o meu coração seja puro com todos» (Guy X, 108; SC 474, 86).
É um caminho de sabedoria, também ele quase sempre “marginal” quando os humanos andam demasiados “distraídos” com os “negócios da vida”. Os monges chamavam o seu modo de vida como “filosofia” “amor da sabedoria”, sem mais.
Conta-se que uns filósofos quiseram, um dia, pôr os monges à prova… Perguntaram-lhes:
«Afinal, que fazeis a mais do que nós neste deserto? Vós jejuais, nós também; vós sois continentes, nós também. O que vós fazeis, também nós o fazemos. Que fazeis, pois, a mais, vós que viveis no deserto?».
O ancião respondeu-lhes:
«Esperamos na graça de Deus e vigiamos sobre nós» (Guy XVI,25; SC 747, 408).
A hospitalidade do silêncio
Diz o Principezinho que «o que torna o deserto belo é o ele esconder um poço algures» (24). Os Padres do Deserto são esses escavadores de poços que continuam a fazer de nossos desertos lugares a revisitar em sua boa companhia.
O pai Dulas, discípulo de Bessarião, conta o seguinte:
«Caminhávamos à beira-mar, quando me veio a sede. Disse então ao pai Bessarião: “Pai, tenho muita sede”.
Depois de ter orado, o pai Bessarião disse:
“Bebe água do mar!”
A água tinha-se tornado doce e eu bebi. Depois, enchi com ela a borracha, para o caso de voltar a ter sede. O ancião viu e disse:
“Porque enches essa borracha?”
“Perdoa-me, respondi-lhe, é para o caso de voltar a ter sede.”
O ancião replicou:
“Deus está aqui e em toda a parte”» (CA, Bessarião, 1).
Vivemos num mundo em que a comunicação é tudo, mas toda a comunicação tende a ser abafada pelas palavras e pelos “meios” que se tornam fins. Mas será que o excesso de palavras nos aproxima uns dos outros e de Deus? Os Padres do silêncio perseguem a utopia desse tempo em que “toda a terra tinha uma só língua e as mesmas palavras” (Gn 11,1), ao mesmo tempo que antecipam o tempo novo em que a dispersão dará lugar à comunhão:
O pai Isaías disse:
«Ama calar mais que falar, pois o silêncio entesoura ao passo que o falar desperdiça» (Guy IV, 18; SC 387, 194).
Um dia, Teófilo, bispo de Alexandria de boa memória, foi a Cétia. Os irmãos aí reunidos disseram ao pai Pambo:
«Diz uma palavra edificante ao bispo!».
O ancião respondeu-lhes:
“Se não for edificado com o meu silêncio, não poderá sê-lo pelas minhas palavras”» (Guy XV, 59; SC 474, 324).
Viver no deserto, no silêncio e desprendido das coisas: ais o programa do homem unificado:
Um dos anciãos dizia:
«Eis as três coisas que convêm ao monge: viver como estrangeiro, a pobreza e um silêncio vigilante» (Guy XI, 120; SC 474, 200).
O silêncio em vez do palavreado, a vigilância a atenção a si, em vez da o juízo dispersivo dos outros, a liberdade do ser em vez da servidão do acumular. O silêncio do deserto antecipa, assim, a linguagem do futuro, onde as palavras e os alfabetos que separam serão desnecessários:
Diz Isaac, o Sírio:
«Ama o silêncio, mais que tudo, porque ele te permitirá colher o fruto. É pelo silêncio que nascerá em nós o que a ele nos conduz… O silêncio é o mistério do mundo futuro, enquanto a palavra é o instrumento do mundo presente» (Isaac de Nínive, Discursos ascéticos, 34; Touraille, 213).
Palavras do Silêncio, mais do que um livro, é um convite ao “regresso a casa”, a encontrar e entrar na “cela” de cada um. Há provavelmente um êxodo a percorrer. Mas vale a pena a peregrinação. Num mundo que ameaça caminhar para a desertificação, a resposta poderá vir, mais uma vez, de onde menos se espera: do silêncio que fala por si (e por nós), dos que sabem estar sós. Vale, por isso, a pena escutar de novo as palavras do silêncio, para aprendermos a ouvir mais e a falar melhor. As “palavras de ouro” selecionadas neste livro são centelhas de fogo que se soltam desses homens (e mulheres) “ébrios de Deus” e abrasados pelo amor ao próximo.
A bem-aventurada madre Sinclética disse:
«Para aqueles que se aproximam de Deus, no início há grande luta e fadiga, mas depois, vem uma alegria indescritível. É como aqueles que querem acender o fogo: primeiro, são incomodados pelo fumo e vêm as lágrimas, mas depois alcançam o que procuram. Porque o nosso Deus é fogo que consome. Assim também nós devemos acender o fogo divino com lágrimas e com esforço» (Guy III,34; SC 387, 168).