O cristianismo é uma fé de fronteira que condiz melhor com as periferias do que com os centros urbanos. Nasceu na periferia, e não na capital do império nem em nenhuma outra metrópole candidata a “umbigo do mundo”; na Palestina, terra periférica, tanto no plano político, como económico e cultural. A importância da terra de Jesus e dos Apóstolos era, no contexto do grande império romano, insignificante. Geograficamente demarcada por “desertos”, a Palestina é, ela própria, uma fronteira natural e terra de trânsito desprezada pelos centros de poder do Império.
Também no contexto do judaísmo, uma religião forte e espalhada por todas as grandes cidades do Império, a fé nascida de Jesus era um “grão de mostarda” insignificante. Jesus de Nazaré e os seus discípulos eram membros de um povo dominado e explorado pela máquina colonial e militar romana, que sonhavam, a partir desta realidade, um mundo e sociedade bem diferente da que predominava em todo o Império. Por isso mesmo, a mensagem que a partir de Jesus foi proclamada apareceu como séria ameaça para a cidade o statu quo político e social.
Por isso o cristianismo nunca se identificou, nem com a polis/civitas nem com qualquer populus, raça ou cultura; mesmo quando reutiliza as mesmas designações das instituições politicas, a mundividência é outra: a ekklesia cristã, por exemplo, embora assumindo o nome da velha ekklesia greco-romana, nunca se identificou com o seu modelo político:
«Os cristãos moram em sua pátria, mas como estrangeiros residentes.
Participam de todos os deveres, Como cidadãos,
e tudo suportam como estrangeiros.
Toda a terra é para eles uma pátria e toda a pátria é terra estrangeira» (A Diogneto V).
Um leigo do século II, de nome Hermas, descreve nestes termos a cidadania paradoxal de que fala o anónimo A Diogneto:
«Vós os [cristãos] sabeis que habitais em terra estrangeira, pois a vossa cidade está muito longe desta. Se, por conseguinte, tendes conhecimento da vossa cidade em que ides habitar, porque preparais aqui campos, grandes prédios, edifícios e habitações supérfluas? Realmente quem prepara estas coisas nesta cidade, não espera voltar à sua cidade. Ó homem insensato, cético e miserável! Não vês que todas estas coisas são de país estranho e propriedade de outrem? [...] Considera que, habitando em terra estrangeira, nada mais prepares para ti, senão quanto te baste e prepara-te, para que, quando o Senhor desta cidade te quiser expulsar, por não cumprires a sua lei, saias da sua cidade e te dirijas à tua e, com alegria e sem afronta, cumpras a tua lei» (O Pastor, 50).
Esta “distância” voluntária da cidade habitada e governada pelos poderes mundanos; esta separação das águas em que tudo se joga precisamente na linha do confim, sofreu o primeiro grande revés com a “conversão” de Constantino (312). E não é por acaso que é precisamente neste momento revolucionário e crítico da história da Igreja que emergem com toda a força a experiência monástica no seio do cristianismo.
De novo Jesus diante de Pilatos, um “Pilatos” que, entretanto, ganhou lugar no Credo católico:
«Um governador quis, um dia, falar com o pai Moisés, e deslocou-se a Cétia para se encontra com ele. Informaram-no de que o ancião se tinha ausentado para se esconder no pântano. O governador foi ao seu encontro e disse-lhe:
“Diz-me, ancião, onde é a cela do pai Moisés”.
Ele respondeu-lhe:
“Que quereis dele? É um simplório e um herege”.
O governador foi à igreja e contou aos clérigos:
“Tendo ouvido falar do pai Moisés, quis ir vê-lo; encontrei, então, um ancião que se dirigia para o Egito e perguntei-lhe: ‘Onde fica a cela do pai Moisés? E ele respondeu-nos: que quereis dele? É um simplório e herege’”.
Estas palavras entristeceram os clérigos, que lhe disseram:
“Como era esse ancião que assim falou contra o santo?”
Ele respondeu:
“Um ancião grande e negro, vestido com roupas velhas”.
Os clérigos disseram:
“É o próprio pai Moisés, e foi porque não se quis encontrar convosco que ele disse isso conta si mesmo”.
Então, o governante, muito edificado, retirou-se» (Guy VIII,13; SC 387, 410).
A proposta de Jesus a que, desde cedo, se chamou cristianismo, veio da fronteira, e é ela mesma uma mensagem de fronteira: na sua crítica social, política e religiosa. Não admira, por isso, que o “lugar” de onde partiu a mensagem deva ser revisitado constantemente.
Disse um ancião:
«É esta a definição de "cristão": imitar Cristo» (Guy I,37; SC 387, 122).