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A encíclica “Fratelli tutti” lida ao ritmo do “Samba da bênção” de Vinicius

No coração da última encíclica do santo padre bate um ar de samba (de bossa nova, para ser exato). Quase todos os comentadores prestaram atenção à presença do nome, várias vezes repetido, do imã Ahmad-Al-Tayyeb; quanto a mim, tocou-me ainda mais o de Vinicius de Moraes, poeta e diplomata. É sobre esta presença que gostaria de me deter, e sobre a sua citação da famosa canção do seu repertório, “Samba da bênção” (numa nota de rodapé o papa Francisco chega ao ponto de especificar até a gravação a que faz referência, realizada ao vivo, em 1962, no restaurante “Au bon gourmet”, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro.

É certo que a citação do letrista da “Garota de Ipanema” pode parecer anedótica, sobretudo se se compara o refrão ao “Documento sobre a fraternidade para a paz mundial e a convivência comum”, solenemente subscrito em Abu Dhabi em fevereiro de 2019. Mas na minha fé, que admito ser um pouco ingénua, tendo a pensar que também as anedotas de uma encíclica têm uma relação com o Espírito Santo. E depois, mencionar uma canção brasileira no momento em que o Brasil é o país da América Latina mais atingido pela pandemia do coronavírus não pode não ter uma intenção profunda.

Objetar-se-á, decerto, que o samba tem pouco a ver com uma procissão do Santíssimo Sacramento; talvez, pensando no samba do Carnaval, haverá indignação ao ouvir-me evocar ligeiras e seminuas bailarinas a propósito de questões tão graves. Não é errado de todo. Também a mim não agradaria ouvir um prelado debater a “Fratelli tutti” deste ponto de vista aliciante. Mas eu sou um leigo. Um entre os outros. E esta é a minha maneira de escutar «a música do Evangelho» (n. 277).

Eis a citação que Francisco extrai de Vinícius: «A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida» (n. 215). Assim começa a secção do sexto capítulo intitulada “Uma nova cultura”. Ela faz referência a um dos princípios do pontificado: «A unidade é superior ao conflito», o que quer dizer, como recorda o seguimento da encíclica (nn. 237-240), que «o conflito é inevitável», «inelutável», e que a unidade só se alcança através de uma passagem (uma páscoa) a nível superior, rumo a uma «verdade transcendente» que assume posições opostas e as supera. Assim a bossa nova atravessa as dissonâncias e as síncopes (o “Desafinado” de Tom Jobim) para chegar a uma harmonia mais alta, inesperada, inaudita. Longe de serem obstáculos, os desacordos são ocasião para abrir-se ao outro como outro. Fazem parte da arte vivente do encontro.



Tango e samba são realizações e símbolos daquela fraternidade fecunda à qual nos chama o papa. Muitos passos da sua encíclica podem ler-se à luz desta experiência latino-americana, musical e dançante



O samba, na sua própria origem, é emblemático desta arte. É uma manifestação da “cultura popular” que se desenvolve «quando dialogam de maneira construtiva as diversas riquezas culturais de um país» (n. 199). Ele nasce nas barracas do Rio, pouco após a abolição da escravidão. O seu nome tão brasileiro provém das línguas bantu. Os seus ritmos são um eco dos tambores africanos. No fim da canção, Vinicius de Moraes diz que «o samba veio da Bahia. E se é branco de pele na poesia, é negro na alma e no coração».

Na verdade, o samba é multicolor e corresponde muito bem à metáfora do «poliedro» que a caneta do papa retoma cinco vezes, duas vezes logo a seguir à citação de Vinicius. Cada face desta forma geométrica tem a sua existência e a sua delimitação, cada uma aponta para uma direção própria, mas associa-se às outras numa unidade que só aparece se se sair do plano para entrar num espaço tridimensional.

Assim o samba brota do encontro dos ameríndios da Bahia, dos afro-brasileiros, dos judeus russos, dos zíngaros, dos polacos e de muitos outros que tinham imigrado com a sua cultura e se congregavam para construir juntos «a mesma barca» (n. 30), eles que eram a classe operária dos estaleiros navais. Inicialmente, a alta burguesia reputava o samba como obsceno e vulgar, mas depois acabou por reconhecê-lo, para o integrar, para lhe conceder plena cidadania, a tal ponto que no fim esta música recolhe dentro de uma mesma arca toda a variegada diversidade de um país compósito. O mesmo vale para o tango. O escritor Michel Plisson resume assim esta improvável confluência: «Um ritmo afro sobre o qual músicos italianos tocam com instrumentos alemães melodias da Europa de Leste com palavras provenientes das zarzuelas espanholas». O todo, aos poucos, ergue-se dos submundos para a alta sociedade, dos bordéis de Buenos Aires para os salões europeus.



A criação é uma grande poesia dramática, composta por uma multidão de poesias visíveis que deixam entrever o invisível; a nossa tarefa de cristãos é reconhecer em cada criatura uma poesia do Eterno



Tango e samba são, portanto, realizações e símbolos daquela fraternidade fecunda à qual nos chama o papa. Muitos passos da sua encíclica podem ler-se à luz desta experiência latino-americana, musical e dançante. Isto, por exemplo: «Exortei os povos nativos a cuidarem das suas próprias raízes e culturas ancestrais, mas esclarecendo que não era “minha intenção propor um indigenismo completamente fechado, ahistórico, estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem”, pois “a própria identidade cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece”. O mundo cresce e enche-se de nova beleza, graças a sucessivas sínteses que se produzem entre culturas abertas, fora de qualquer imposição cultural» (n. 148).

No mesmo sentido podem entender-se a atenção e a confiança que é preciso dar aos «movimentos populares», e o dever, não de os controlar, mas fazer com que essas «experiências de solidariedade que crescem de baixo, do subsolo do planeta, confluam, sejam mais coordenadas, se encontrem».

É por isso que o papa louva os «poetas sociais», «promotores de um processo no qual convergem milhões de pequenas e grandes ações concatenadas de maneira criativa, como numa poesia».

Não se trata de uma «imagem poética», como diria uma expressão pejorativa. A poesia social é a expressão mesma «da fé que opera por meio da caridade» (Gálatas 5,6). Sublinha-o a carta de S. Tiago: «Se alguém escuta a palavra e não a põe em prática», isto é, mais literalmente – porque a palavra grega é “poêtês” –, se não se faz poeta, «assemelha-se a alguém que olha para o próprio rosto ao espelho: mal acaba de se ver vai-se embora, e logo se esquece como era» (Tiago 1,23).



O facto de “Fratelli tutti” retomar as palavras de um samba não tem, por isso, nada de anedótico. O concerto que teve lugar a 2 de agosto de 1962, e que agora se reencontra nas páginas de uma encíclica assinada a 3 de outubro de 2020 em Assis, revela-nos bem as reviravoltas e os golpes de cena da Providência



Recordar quem somos é ser “O poetinha” da Palavra divina, porque a criação é uma grande poesia dramática, composta por uma multidão de poesias visíveis que deixam entrever o invisível; a nossa tarefa de cristãos é reconhecer em cada criatura uma poesia do Eterno, e como povo que entoa salmos, como artesão da paz, seguindo o Verbo tornado carpinteiro judeu, permitir «ao conjunto das diversas vozes formar um nobre e harmonioso canto, mais do que gritos fanáticos de ódio» (n. 283).

No final do “Samba da bênção”, Vinicius de Moraes desfia um rosário de nomes próprios, nomes de músicos que contribuíram para a renovação daquela música que transfigurava a história violenta da colonização na possibilidade melodiosa de uma comunhão. É verdade que aconteceu a deportação dos escravos, o exílio dos judeus no Rio de Janeiro ou em Buenos Aires, e também a fuga de alguns nazistas (Alfred Noble fabricava bandónios para a Argentina durante os anos 1930-40 em Karlsfeld, região de Dachau). É verdade que ainda existe a gritaria fanática do ódio e a fria instrumentalização da ideologia. No entanto, apesar disto, através de tudo isto, eis o tango, eis o samba, eis os sinais que nos convidam a pensar na misericórdia como uma força discreta mas sempre ativa na sucessão das gerações e a resgatar o tempo.

O facto de “Fratelli tutti” retomar as palavras de um samba não tem, por isso, nada de anedótico. O concerto que teve lugar a 2 de agosto de 1962, e que agora se reencontra nas páginas de uma encíclica assinada a 3 de outubro de 2020 em Assis, revela-nos bem as reviravoltas e os golpes de cena da Providência. “Samba da bênção” anunciava-o noutro dos seus versos: «O samba é oração, se assim o quiseres».

Na última faixa do concerto citado e datado na nota 204 da encíclica, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto, Os Cariocas, Otávio Bailly e Milton Banana reencontram-se em palco para cantar “Se todos fossem iguais a você”, que na letra inclui estes versos: «Vai pela tua vida, teu caminho é de paz e de amor/ abre os teus braços e canta/ a última esperança/ a esperança divina/ de amar em paz». Pode parecer adocicado. E no entanto é quanto de mais exigente – a última esperança – porque supõe destruir os ídolos para descobrir pessoas em carne, osso e espírito, conduzindo à «boa batalha do encontro» (n. 217), «para que o nosso coração se encha de rostos e de nomes» (n. 195).


 

Fabrice Hadjadj
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 30.10.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 

 
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