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“Transfiguração”: O apogeu de Rafael na última obra

Um apogeu da arte de Rafael, de quem se assinala os 500 anos da morte a 6 de abril, é a “Transfiguração”, pintura que originalmente foi concebida para ser enviada para a catedral francesa de Narbonne, sede episcopal titular de um sobrinho do pontífice de então, Leão X, o cardeal Júlio de Médici, que após a morte do primo, em 1523, foi eleito papa, com o nome de Clemente VII.

Os textos da história da arte narram que na base da obra esteve uma espécie de desafio pretendido pelo cardeal entre Rafael e outro pintor importante do tempo, Sebastiano del Piombo, que teria de representar a “Ressurreição de Lázaro”.

Este duelo, aceite de má vontade por Rafael, estimulou-o a compor a cena da transfiguração em dois registos, de acordo com o texto evangélico na sua estrutura díptica. Os três evangelistas sinóticos narram, apesar de perspetivas redacionais diferentes, quer a “cristofania” da transfiguração sobre um monte inominado, identificado com o Tabor através de uma antiga tradição, quer a cura de um rapaz epilético aos pés desse monte.

À sua luminosa “metamorfose” (tal é a palavra originária grega para indicar a transfiguração) de Cristo, juntou um acontecimento dramático como o do jovem epilético, cuja síndrome foi definida com precisão pelos evangelistas: um espírito mudo apoderava-se dele, lançava-o por terra, e ele espumava, rangia os dentes, tornava-se rígido. Mas à vista de Jesus, repentinamente o espírito sacudiu com convulsões o jovem, que, caído por terra, rebolava espumando.



Esta cena alta e sublime deveria ser admirada à distância, como se fosse uma epifania que, de longe, do alto, quase do infinito, se abre ao olhar da contemplação mística



Ainda de acordo com a narração evangélica, o pai do rapaz confessou a Jesus que aquele espírito maligno – segundo a antiga conceção, algumas doenças eram consideradas como efeito de possessão diabólica – muitas vezes lançava-o ao fogo e à água para o matar.

O artista de Urbina procurou, assim, concorrer no mesmo plano com Sebastiano del Piombo, que tinha à disposição um tema altamente trágico como é a morte e ressurreição de Lázaro.

Duas plataformas cénicas sobrepostas animam, portanto, a pintura de Rafael, embora com diferentes gradações. A transfiguração está em cima, envolvida por uma auréola de luz transcendente, onde Cristo paira, suspenso, comos braços em cruz, acompanhado, nas margens, pela amêndoa luminosa de Moisés, símbolo da lei, e de Elias, emblema da profecia, inclinados em contemplação, enquanto aos pés de Jesus, no terreno do topo do monte, encadeados e aturdidos, estão prostrados por terra os três apóstolos testemunhas Pedro, Tiago e João.

Esta cena alta e sublime deveria ser admirada à distância, como se fosse uma epifania que, de longe, do alto, quase do infinito, se abre ao olhar da contemplação mística.

A cena inferior é, por seu lado, cheia de ação, atormentada, agitada por movimentos fortemente “carnais”: basta apenas observar o corpo em torsão e os olhos escancarados e transtornados do rapaz epilético. Todavia, algumas mãos erguem-se para o alto, onde Cristo resplandece rodeado de luz.



Entre as muitas emoções implícitas que as duas cenas suscitam com as diferentes figuras que a povoam (são mais de vinte as personagens introduzidas), há uma memória história a dominar e a marcar uma conotação especial a este quadro



O jovem, com os seus braços, o direito estendido para Cristo transfigurado, e o esquerdo voltado para terra, cria uma espécie de cruz a que a doença o detém. Desta forma, Rafael vai além da letra da narrativa evangélica, que supõe uma sequência temporal separada entre os dois acontecimentos, e vê entre eles uma relação causal de natureza perfeitamente teológica.

Com efeito, é de Cristo glorioso, centro da história da salvação, que flui a libertação do mal. Por isso, ele une transcendência e imanência, eternidade e história, luz e obscuridade, graça e sofrimento, absoluto e caducidade, divindade e humanidade. Configura-se, assim, uma lição teológica despojada de qualquer aborrecimento académico, estranha a toda a dissertação teórica, distante da catequese instrutiva.

Entre as muitas emoções implícitas que as duas cenas suscitam com as diferentes figuras que a povoam (são mais de vinte as personagens introduzidas), há uma memória história a dominar e a marcar uma conotação especial a este quadro. Efetivamente, ele nunca chegará à catedral de Narbonne, mas fica no apartamento do cardeal Júlio no palácio da Chancelaria. Só mais tarde foi transferida para a Igreja de S. Pedro em Montorio, na colina romana do Gianicolo.

Esta pintura foi, na prática, a última a que se dedicou o pincel de Rafael, entre 1518 e 1520, ano da sua morte. Tinha apenas 37 anos, e o seu funeral foi comemorado com uma nota comovida de Giorgio Vasari, nas suas “Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos de Cimabue até aos nossos dias”. As suas palavras podem ser o selo mais eficaz para a contemplação desta obra-prima.

Escrevia, trinta anos depois, em 1550, o pintor que foi um dos primeiros historiadores e críticos de arte: «Puseram-lhe, na morte, à cabeça, na sala onde trabalhava, o quadro da “Transfiguração” que tinha concluído para o cardeal Médici, obra que, ao ver-se o corpo morto e aquela viva, fazia quebrar a alma de dor a cada um que ali olhava».


Imagem "Transfiguração" | Rafael | Museus do Vaticano

 

Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Le meraviglie di Musei Vaticani, ed. Mondadori
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.03.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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