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Para dizer Deus hoje, na astrofísica e na teologia

O apelo do papa Francisco à interdisciplinaridade em sentido forte – denominada, na “Veritatis gaudium” [constituição apostólica sobre as universidades e as faculdades eclesiásticas ], «transdisciplinaridade” – deve ser acolhido, interpretado e desenvolvido em concreto.

Sobre a relação entre “fé e ciência” muito se disse, escreveu e viveu. Não é esta a sede para lhe reconstruir as passagens. Basta-nos dizer que na história, após a fase da contraposição, ocorreu, no último século, uma abordagem que viu a teologia “seguir” constantemente os desenvolvimentos científicos, procurando adequar-se-lhes. Assim sucedeu para a teoria do “big bang e criacionismo” ou entre “Evolucionismo e narrativa bíblica da criação”. Talvez a revolução coperniciana fosse “dinamizar os papéis”, num movimento de “dar e receber”, no qual é a teologia a dar as cartas, desafiando possivelmente a ciência a seguir a fé. Para fazer com que isto acontecesse, seria necessária – juntamente com um convencimento mais firme das próprias razões (uma consciência epistemológica mais avisada) – uma competência que talvez os teólogos não tenham. Digamos a verdade, os teólogos provêm de estudos humanistas e teológicos. Ainda hoje, a ciência e a sua relação com o discurso sobre Deus não comparecem nos percursos académicos e de seminário. Falamos o grego antigo e o hebraico bíblico, mas a custo conhecemos a física newtoniana ensinada na escola.



Gostaríamos de dizer, a quantos temem que a ciência queira explicar a incarnação de Jesus, o dogma de Calcedónia ou outros grandes mistérios da fé cristã – o primeiro dos quais é, seguramente, a ressurreição dos mortos – para não refutarem a aproximação à ciência para “dizer Deus hoje”



E o nível de progressão da ciência é mais premente do que acontece no campo teológico. Os buracos negros previstos nas equações matemáticas de Albert Einstein são agora uma realidade: até os podemos fotografar. Há a esperança que suceda a mesma coisa com os buracos brancos e os famosos “wormholes”, graças aos quais a imaginação científica perspetiva a possibilidade de passar – quase como que atravessando um túnel – de um único universo a muitos outros mundos. Com o paradoxo de Fermi – «onde estão todas?» – não desesperamos de encontrar outras inteligências homólogas às humanas, no atual vasto universo em expansão, entre milhões de galáxias que se movem, colidem, rebentam e se reconstituem ricocheteando, para retomar novas expansões neste imenso movimento, a velocidades inimagináveis, ainda que não superiores à da luz, 300 mil quilómetros por segundo. Ou o pensamento (absurdo) segundo o qual um enorme objeto físico, algo de grandíssimo, de vastíssimo, da massa de milhões de sóis – como uma das muitas estrelas supermassivas em movimento no nosso universo – se torne algo de pequeníssimo, sem nada perder da massa primeira.

É desconcertante observar – porque os cientistas procedem por observação, já desde Galileu Galilei, com as «demonstrações necessárias» e as «experiências sensatas» – que esta implosão em si mesma de uma estrela massiva, depois de se ter tornado uma supernova (e ter, num instante de segundo, iluminado o seu espaço com uma potência de luz de milhões de sóis), atraída pela força gravitacional ao centro do seu núcleo, à velocidade da luz, se torne uma “singularidade” instável e possivelmente ressaltante, para retomar o seu caminho de expansão.



Se a fé é, como o é, centrada na incarnação, não pode prescindir da matéria e do seu desenvolvimento. Nós provimos das estrelas (“de sideris”)? Não só Jesus desce das estrelas, também nós! O nosso tecido humano (corpóreo, psíquico e espiritual) é pó de estrelas!



Tudo isto, após a teoria da relatividade geral de Einstein, não é, efetivamente, um absurdo, porque aconteceria à maior parte dos enormes objetos físicos do universo e talvez, como alguns colocam a hipótese, ao nosso próprio universo, o qual não teria nascido de um “Big bang” (de uma grande explosão), mas de um “Big bounce” (de um grande ressalto), um ressalto precisamente da “singularidade” flutuante à qual se tinha reduzido o velho universo, no seu “Big crunch”. A imaginação científica da realidade do universo mudou profundamente, e o caminho de descoberta está sempre em ascensão. Com a introdução de ideias revolucionárias sobre a distorção do espaço-tempo em presença da massa e da concentração de energia potentíssima relativa à velocidade da massa (E = MC ao quadrado é a fórmula mais bela da nova física). A partir daqui, recentes estudos teóricos colocam a hipótese de que certas crateras, visíveis sobre a crosta da Lua, foram causadas por buracos negros pequeníssimos quanto átomos com massas de asteroides. E ainda se poderia falar do “entenglement”, sobre a sobreposição quântica, explorada pelos novos “bit”, os “qubit”, pelos novos computadores, agora capazes de simular emoções e consciências humanas, ou da denominada dupla natureza (ondulatória e corpuscular) da realidade a nível subatómico.



Esta fé cristã não prejudica a busca da razão científica, porque o cristianismo apresentou-se desde o início «como o dissolver-se da névoa da religião mitológica para dar lugar à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e ao mesmo tempo Razão-amor».



Os Padres da Igreja dos primeiros séculos indagavam habitualmente as “semina Verbi”: procuravam “traços” e “imagens” do Deus trinitário. Através de analogias, emprenhavam-se em explicar o que acontece na vida imanente do Deus-ágape. E não para racionalizar o mistério, mas para o tornar mais inteligível, de alguma forma, à inteligência das pessoas do seu tempo. Grosso modo, este é o terreno em que se deveria cimentar uma teologia “renovada” hoje. Gostaríamos de dizer, a quantos temem que desta forma a ciência queira explicar a incarnação de Jesus, o dogma de Calcedónia ou outros grandes mistérios da fé cristã – o primeiro dos quais é, seguramente, a ressurreição dos mortos – para não refutarem a aproximação à ciência para “dizer Deus hoje”. Os teólogos, antes, deveriam insistir em mostrar como a perspetiva científica do real torna os dogmas da fé cristã menos “absurdos” e muito mais inteligíveis do que no passado. Apresentemos um exemplo concreto, extraindo-o do capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos. No célebre discurso aos “não-crentes” do Areópago, o apóstolo, com tom de sabor a profecia, revela – diríamos com larga antecipação em relação a Einstein – a existência da dimensão espácio-temporal, implicitamente afirmando a sua não unicidade, porque foi criada por Deus com o único propósito de nos tornarmos capazes de o procurar, ainda que Ele se encontre junto de nós. Pergunta teologicamente legítima: o apóstolo quer dizer-nos que aquilo que definimos como o Reino dos Céus, a visão de Deus, reside noutra dimensão espácio-temporal? Hoje, a comunidade científica é bastante concorde em considerar que existem mais dimensões de espaço e tempo. O que, no entanto, é mais significativo da intuição paulina é a aproximação metodológica: o apóstolo não ataca as argumentações, mas relança-as, antecipando, a argumentação “racional” oposta. Entra no discurso científico, não o refuta.



Assim a teologia, escrava de todas as ciências e também da filosofia, torna-se – como deveria ter sempre sido – escrava da pregação cristã, à altura dos nossos tempos, culturalmente e cientificamente avançados



Se a fé é, como o é, centrada na incarnação, não pode prescindir da matéria e do seu desenvolvimento. Nós provimos das estrelas (“de sideris”)? Não só Jesus desce das estrelas, também nós! O nosso tecido humano (corpóreo, psíquico e espiritual) é pó de estrelas!

A famosa equação de Paul Dircac, sobre o “entenglement”, é denominada vulgarmente “equação do amor”, porque conduz a expressão matemática a realidade do vasto universo em expansão, estabelecendo a interconexão de todos os objetos físicos que o compõem. Duas estrelas que “num tempo” foram conectadas, e “agora” estão distantes milhões de anos-luz, são tratadas como se fossem um único sistema físico: porque o destino de uma age sobre o destino da outra. E no entanto estão afastadíssimas. E perguntamo-nos, não foi toda a massa do atual universo (na qual estão também toos os seres humanos vindos ao mundo) como que “aninhada”, e profundamente unida, naquela “singularidade” da qual, depois, pela grande explosão, se originou o universo, segundo astrofísicos à maneira de Stephen Hawking? Ou não estávamos já todos naquele “vazio primordial “ – que era tão pleno, que continha todas as forças e a luz e as galáxias e as estrelas e o plasma – do qual partiu a inflação responsável pelo início (mas para muitos cientistas o universo não teve início) da evolução? “Entrelaçamento” é laço profundo, portanto íntimo. E o que impede – analogicamente – nomear este “entenglement” no infinitamente grande da astrofísica e no infinitamente pequeno da mecânica quântica com a palavra “Logos” que foi dos estoicos, mas também do cristianismo primitivo? É um “laço” do “Logos”, ou, melhor, “como do” “Logos”. “Logos sarx egheneto” (o Logos-verbo fez-se carne) e veio habitar no meio de nós. Assim se anuncia o Evangelho da salvação aparecida no mundo com o Ressuscitado. Esta fé cristã não prejudica a busca da razão científica, porque o cristianismo – esclareceu-o Bento XVI naquele pronunciamento “impedido” na Universidade da Sapienza, onde foi humildemente como «uma voz da razão ética» – apresentou-se desde o início «como o dissolver-se da névoa da religião mitológica para dar lugar à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e ao mesmo tempo Razão-amor». É, aliás, um refrão do seu magistério: «Deus deve pregar-se como “Logos”». “Logos” é “ratio” (mente) e “verbum” (discurso). Se Deus é “Logos – segundo S. João –, é por isso um dirigir-se aos outros com a sua palavra, é relação, não apenas «mente objetiva» ou «geometria do universo», mas relação de amor: é “logos” do amor. Assim, Deus não é um Deus bizarro ou arbitrário: é Deus racional, um Deus confiável (Pierangelo Sequeri), é um Deus a que se pode orar.

Assim a teologia, escrava de todas as ciências e também da filosofia, torna-se – como deveria ter sempre sido – escrava da pregação cristã, à altura dos nossos tempos, culturalmente e cientificamente avançados. A teologia (católica), assim, executa a sua tarefa eclesial: servir a fé católica na sua necessidade de legitimação crítica a todos os níveis. Tarefa urgente para a fé. A busca de uma nova imagem de teologia pertence, por isso, à missão de uma “Igreja em saída”, que aprende também do contexto cultural, marcadamente científico, as “palavras certas”, através das quais transmite a Palavra de Deus, o Evangelho, Jesus de Nazaré, “Logos” e «amor que move o Sol e as outras estrelas».


 

Roberto Cetera, Antonio Staglianò
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: mulderphoto/Bigstock.com
Publicado em 24.02.2022

 

 
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