Não tenho as competências para dar uma avaliação literária a “O poder e a glória” de Graham Greene, mas creio que posso dizer, melhor, quero dizer, que é um livro belíssimo. E não me surpreende que quem o defendeu, quando nos anos 50 suscitou escândalo em certos contextos da Igreja, foi, com uma carta ao Santo Ofício – a atual Congregação para a Doutrina da Fé – o então pró-secretário de Estado da Santa Sé, Giovanni Battista Montini, que depois de ter sido eleito papa, encontrou em julho de 1965 o grande escritor inglês em audiência privada, para lhe demonstrar toda a sua estima.
Paulo VI, um papa de quem ainda não foi reconhecida, a meu ver, toda a grandeza. Um papa de olhar aberto e penetrante, capaz de olhar longe e em profundidade. Um papa que quer ser guia, e não, como disse, «simples notário» do Concílio Vaticano II, reviravolta de uma Igreja tendida a viver o Evangelho do mundo, tensão hoje incarnada nos gestos e nas palavras do papa Francisco. Há muito Concílio neste seu desejar e testemunhar uma Igreja «em saída», dirigida às periferias urbanas, mas também existenciais, uma Igreja pobre para os pobres.
E é precisamente esta a chave que sinto mais em consonância para falar de uma história narrada magistralmente por Graham Greene, drama de um sacerdote em fuga à perseguição anticatólica que ensanguentou o México entre os anos 20 e 30, mas em fuga também de si mesmo, de uma consciência que não cessa de lhe recordar os seus pecados – o alcoolismo, a violação do celibato, uma filha – e as violências de que se sente indiretamente responsável, tendo-lhe faltado a coragem de autodenunciar-se e escolher o martírio: ao passar a pente fino as povoações para descobrir os sacerdotes na clandestinidade, o exército tinha fuzilado todas as pessoas suspeitas de os ter escondido ou até apenas acolhido.
A narrativa de Greene parece-me uma grandiosa metáfora da fé, tema que não diz tanto respeito à doutrina mas mais à ética, a maneira como a relação com Deus se incarna nas nossas palavras, opções, condutas. Ética da fé que está hoje no centro do desenho reformador do papa Francisco, como se evidencia de afirmações como esta: «Uma fé autêntica implica sempre um desejo profundo de mudar o mundo»; ou: «Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e suja por ter saído para as estradas, do que uma Igreja doente pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às suas seguranças». Ambos os passos são da “Evangelii gaudium”, a exortação apostólica com que, em 2013, Francisco assentou as bases do seu pontificado.
Sem a pretensão de erguer-me como intérprete das palavras do papa, parece-me, todavia, claro que elas evidenciam a profunda diferença entre uma fé fechada na doutrina e uma fé aberta ao mundo. A primeira vivida como fortaleza e porto seguro, com o risco de reduzir-se a dogma, a presunção de verdade. A segunda, por seu lado, vivida como busca de verdade e empenho pela justiça. E, portanto, também como dúvida: não sobre a existência de Deus, mas sobre o nosso testemunhar não só por palavras a sua Palavra, no cunho de um Evangelho não só pregado, mas vivido.
Fé que pressupõe uma consciência inquieta, que nos faça olhar o Céu sem esquecer a responsabilidade a que nos chama a Terra. Que nos estimule a construir justiça já a partir deste mundo, reconhecendo Cristo nos muitos «pobres cristos» encontrados ao longo do caminho. Que nunca desvie o olhar perante as injustiças e as fragilidades: as que estão à nossa volta, mas também, melhor, antes de tudo, as que existem dentro de nós.
É evidente que os acontecimentos narrados por Greene, inspirados por uma sua viagem ao México em 1938, dizem respeito a uma maneira de viver a fé ainda distante das consciências que deram forma e vida ao Concílio Vaticano II. No centro está, com efeito, o tema da salvação da alma e da vida moralmente exemplar a que são chamados os ministros do culto, impassíveis às tentações mundanas e aos desejos da carne. Mas, impelido por uma fé inquieta e profunda – protestante, convertera-se ao catolicismo com 22 anos –, o escritor delineia no carácter do protagonista elementos de uma espiritualidade que mais tarde emergiria, com a aproximação da Igreja ao mundo e a uma experiência mais integral do humano. Acontece assim que o “pecador”, o sacerdote atormentado e incapaz de fazer as pazes com a consciência, se torna paradoxalmente testemunha de uma vida evangélica. Sim, porque aquela consciência inquieta, em constante ebulição, se por um lado é tormento e cruz, por outro continua a ser fonte de espanto e compaixão, janela escancarada para a vida.
Assinalei um par de excertos que me parecem testemunhar com intensidade este tormento capaz de fazer-se relação com os outros e consigo próprio, e portanto comunhão com Deus. O primeiro está no capítulo em que Greene narra a prisão do sacerdote, abatido numa cela pequena e sobrelotada: «De novo experimentou um ardor de indizível afeto. Não era mais do que um delinquente no meio de um bando de delinquentes: isto dava-lhe um sentido de fraternidade que nunca tinha experimentado nos velhos tempos, quando os devotos vinham beijar-lhe a luva de algodão negro». O segundo está no ponto em que, encontrando-se durante uma viagem com o homem febril e mal vestido que suspeita ser um delator – estava prometido um lauto prémio em troca da sua captura –, o sacerdote reflete sobre o nosso sermos feitos à «imagem e semelhança de Deus», para concluir que é «sobre os ombros da imagem de Deus» que, num gesto de «ternura forçada», tinha acabado de pousar a mão.
Não consigo deixar de pensar, ao ler estas linhas, em todas as pessoas pobres e frágeis encontradas ao longo dos caminhos da vida em 55 anos de empenho social, e na lição que a estrada, aos poucos, me concedeu: Deus encontra-se através das pessoas, mas, ao mesmo tempo, as pessoas fracas e esquecidas são epifanias de Cristo, sinais que nos conduzem ao encontro com Deus. Sinais de pista, chamam-lhes os montanheses como eu, mas ao longo dessas estradas seria mais apropriado chamar-lhes «sinais de vida». Sabia-o não só em abstrato, mas com a consciência e a alma, o querido D. Tonino Bello, desaparecido bispo de Molfetta e presidente da Pax Christi, que de cada vez que os compromissos sacerdotais o levavam a Roma, nunca deixava de se encontrar com o amigo Bártolo, pessoa em cuja morada – quatro cartões dispostos num passeio da Via da Conciliazione – reconhecia «um ostensório, recipiente de fragmentos de santidade».
À luz destas considerações, “O poder e a glória” parece-me um livro mais do que nunca atual, 80 anos após a sua publicação. E não só porque ainda são muitos, em várias partes do mundo, os cristãos perseguidos, mas porque hoje a Igreja está diante de um desafio crucial: testemunhar e viver o Evangelho num mundo dominado por aquilo que o papa Francisco definiu como «sistema injusto desde a raiz», alimentado por «uma economia que mata». Um sistema que sacrifica no altar do ídolo dinheiro a dignidade e a liberdade de milhões de pessoas. Desigualdades inéditas na história, perante as quais o crente não pode ficar calado e inerte: o que o impede é o próprio Evangelho, texto que como nenhum outro sintetizou Céu e Terra, espiritualidade e política no sentido dado ao termo precisamente por Paulo VI: «A mais alta e exigente forma de caridade», caridade como serviço para o bem comum e denúncia dos abusos e das injustiças que aquele bem destroem ou derrubam. Uma ética da fé que os cristãos veem hoje incarnada na figura do papa Francisco, no seu apelar-nos a um Evangelho mergulhado nas necessidades e nas esperanças das pessoas, a partir das mais fracas e frágeis. Apelo que nem sempre encontra ouvidos atentos e consciências recetivas, se é verdade que já na “Evangelii gaudium” o papa constatava, com inimaginável amargura, como «molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça».
Uma última consideração: pergunto-me se um livro como “O poder e a glória” não será, para um jovem que sinta no coração o alento da vocação, um instrumento precioso para compreender a essência dramática, mas ao mesmo tempo salvífica, da fé – sou tentado a dizer salvífica porque dramática. Para compreender que o Evangelho não admite adesões exteriores e observantes de carácter “preceitístico”, mas pede uma radical colocação em jogo da própria vida, uma ascese na História e no núcleo mais profundo do humano, onde habitam angústias, contradições, esperanças negadas ou sufocadas. Na marca de uma fé que não seja edificação, mas dom de si. Essa fé que Greene, escritor e homem em busca, esboçou de maneira memorável na figura do seu sacerdote atormentado e pecador.