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A nova religiosidade

Mas não é apenas a modernidade ou a pós-modernidade que a evangelização tem de ter em conta. Subjacente às duas e especialmente à segunda, está a nova religiosidade, entretanto surgida.

J. Sudbrack vê na filosofia de Kant a sua base: sobre esta se desenvolveria uma psicologia que considera o homem e a sua subjectividade como medida universal. Mas, ultrapassando a chamada de atenção para as condições subjectivas de acesso à realidade, a nova religiosidade retém facilmente o homem num psiquismo experimentalista ávido de emoções gratificantes. A técnica ocupará aí o lugar da graça.

Não se sai de si. Pelo contrário, o que possa vir de fora só interessa se acrescentar o bem-estar íntimo e auto-suficiente. Algum orientalismo se juntará aqui, enquanto pareça proporcionar isso mesmo. E até a magia, que prometa captar em proveito próprio o jogo cósmico de forças e contrastes. O mesmo autor acrescenta, a estes, outros tópicos da nova religiosidade, como o fusionismo matriarcal, o ecologismo diluidor do homem no universo, o progressismo que permita ir resolvendo tudo pelas conquistas do espírito humano…

Qual súmula de tudo isto, a mentalidade «Nova Era» (New Age) apresenta bem o feixe de componentes da nova religiosidade: a unidade do universo, como corpo vivo e único; um intimismo que esbata todas as diferenças das religiões externas; um psicologismo à busca de novas dimensões da consciência pessoal-universal, permitindo até a comunicação com mentes do além; a visão reencantada duma natureza em que se refundem todas as oposições.

Várias das afirmações da nova religiosidade contrastam com convicções básicas da fé crista. Falando aos bispos norte-americanos em 28 de Maio de 1993, João Paulo II referiu-se à «Nova Era» como realidade a observar de perto, mesmo em ambientes eclesiais, detectando nela: a pouca importância dada à Revelação; a ênfase posta no experimentalismo mental, de técnica oriental ou psicológica; a relativização doutrinal, face a um mundialismo simbólico e mítico; o conceito panteísta de Deus e a reorientação moral para um dever cosmológico prioritário.

A questão maior posta pela nova religiosidade à fé cristã reside na alteridade divina, que aquela tende a esbater ou negar. Na busca da identificação de Deus e com Deus, é difícil estar completamente isento da sedução panteísta ou monista. Mas tal sedução manifesta-se muito na nova sensibilidade religiosa: pela consciência individual à universal, pelo conhecimento do cosmos à fusão nele mesmo. Perpassam nela o sentimento e a ideia duma humanidade de evolução e consciência unívocas. De novo com Sudabrack, podemos colocar à nova religiosidade uma questão decisiva: “– Qual é o valor superior, mais humano, integral e profundo: o de uma unidade impessoal com o todo ou o da unidade eu-tu do encontro, o de um 'ser' universal ou o de um amor 'pessoal'?”.

A Congregação romana para a doutrina da fé encarou vários aspectos deste desafio «místico» posto pela nova religiosidade. Num seu documento de 1989 (Carta aos bispos da Igreja Católica acerca de alguns aspectos da meditação cristã), podemos ler que a oração cristã manifesta a verdade de Deus e da criatura, assumindo por isso mesmo a forma dum diálogo pessoal entre o homem e Deus, nele se encontrando a liberdade infinita de Deus e a finita do homem (cf. n.° 3); que o homem é e permanece criatura infundível em Deus, sendo a alteridade - existente no próprio Deus - o maior dos bens (cf. n.° 14); que, como lembra Santo Agostinho, tanto importa a concentração em si mesmo como a ultrapassagem do eu, sendo Deus «interior intimo meo et superior summo meo» (cf. n.° 19); que a mística cristã não se funda em qualquer técnica mas no dom de Deus (cf. n.° 23); que a experiência mística tem necessariamente consequências morais positivas, despertando a caridade (cf. n.° 28); que o «deserto», sempre atravessado na mística autêntica, comprova a autenticidade da busca de Deus que sempre ultrapassa o orante (cf. n.° 30).

Também os «novos movimentos religiosos» podem manifestar características acima indicadas. Nos que se reclamam do cristianismo, porém, sublinham-se mais outras notas, como as que dizem respeito ao (re)conhecimento mútuo ou à necessidade de experimentar
já a salvação prometida, sobretudo como realidade psico-física. Em documento conjunto de várias instâncias romanas, de 1987, enuncia-se o que eles podem proporcionar aos seus adeptos: face à desestruturação social oferecem o apoio das pequenas comunidades; face à busca de soluções, oferecem respostas simples, novas revelações, em geral sincretistas; face à busca de harmonização, oferecem uma experiência religiosa global; face à busca de identidade cultural, oferecem - sobretudo no Terceiro Mundo - espaço para a tradição própria; face ao anonimato, oferecem o interesse pelo indivíduo e possibilidades de participação num grupo escolhido; face ao interesse pelo mistério, presente ou futuro, oferecem a possibilidade de aprofundar e experimentar respostas religiosas; face ao desacompanhamento, oferecem a orientação de chefes carismáticos; face à inquietação pelo futuro, oferecem uma nova era e a possibilidade de participar no seu advento…

Poderemos resumir assim as questões levantadas pela nova religiosidade: eclectismo doutrinal, ênfase posta na salvação individual, experimentalismo emocional, pragmatismo religioso e monismo unitário e globalista. Questões a encarar com lucidez, sondando as suas causas. E que nos farão redescobrir, por exemplo, a necessidade do reencontro de si e da meditação, bem como o lugar da criatividade e do movimento na celebração. Sem esquecer, aliás, que o Cristianismo propõe uma unificação «mais acima» da gratificação emotiva ou do psiquismo unificador, uma autêntica comunhão no amor cuja fonte é Deus, sempre outro e, por isso mesmo, garantia constante da nossa liberdade: nenhum emotivismo, nenhum psiquismo nos encerrarão.

A sobrevalorização do experimentalismo religioso secundarizaria a verdade não condicionável. Mas, por outro lado, o Cristianismo não pode desvalorizar a experiência, nem deixar de lado o sentimento, como os não deixou noutros tempos de fé menos cerebral. Ainda que o critério seja o da caridade vivida e da relação nova que ela cria com todos. Neste sentido, a imagem cristã do homem dá a primazia à moral e não à experiência; pelo contrário, a identificação apressada da experiência gratificante com a mística autêntica é um ponto fraco da nova religiosidade.

A verdade teológico-antropológica de todos e de cada um descobre-se na alteridade recíproca, da psicologia à mística: ninguém se sabe um «eu» sem o reconhecimento dum «tu». A própria realidade divina comporta em si a alteridade (do Pai ao Filho no Espírito) e a relação homem-Deus consuma-se numa união não unicista. O monismo que muita da nova religiosidade apetece está nos antípodas do realismo cristão. A cada homem em particular o Cristianismo afirma: “os teus valores, a tua pessoa, os valores e a individualidade do teu próximo não são ilusões, não desaparecerão na globalidade de algo impessoal, antes permanecem para sempre seguros no amor de Deus. […] Deus é no seu íntimo um encontro eterno, relação eterna, amor eterno, afirmação eterna. Por isso também eu, homem minúsculo, posso encontrar vida, vida eterna, na sua imensidade”.

 

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
In 1810-1910-2010. Datas e desafios, Ed. Assírio & Alvim
26.05.09

Capa

1810-1910-2010
Datas e desafios

Autor
Manuel Clemente

Editora
Assírio & Alvim

Páginas
174

Ano
2009

ISBN
978-972-37-1407-4
















































































 

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