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Guilherme d'Oliveira Martins apresenta "Portugal e os portugueses", de D. Manuel Clemente

Texto lido em 29 de Abril de 2008, aquando da apresentação da obra "Portugal e os Portugueses", de D. Manuel Clemente.

 

Questões que temos.

As interrogações têm pelo menos mil anos. Quem somos, como povo e como pessoas? Que relação temos com Portugal? E se essa relação é normalmente difícil, a verdade é que nos deparamos a cada passo com a comparação histórica, com distância geográfica dos centros, com o confronto entre as ilusões e as desilusões, com a ironia e o remorso. Afinal, a questão que temos connosco próprios, de que falava o poeta, começou por ser garantia e definição e prosseguiu entre restaurações e perdas, em ciclos de euforia e de depressão, de sucesso e de decaimento. E no entanto a nossa matéria-prima continua a ser a mesma. E “olhamos Portugal como uma personalidade colectiva portadora de uma alma, no sentido romântico do termo, ainda que referido a algo muito anterior ao Romantismo”. E que é o Romantismo senão o tentar reviver tempos imemoriais? Povo eleito? Povo enjeitado? O Padre Vieira compreendeu bem esse conflito íntimo. E, como diz ainda o nosso autor, a “relação que mantemos com esse gostoso e custoso colectivo vem na esteira de um outro povo, que se descobriu eleito e portador de uma missão universal”. Ourique e o seu milagre (1139) têm como berço teórico Santa Cruz de Coimbra – “A partir da profecia de que se fundaria um reino tão imortal como a sua origem e com idêntica projecção religiosa”. E ainda há a sucessão de acontecimentos que passa pela promessa dionisíaca, pela afirmação joanina, pela ambição dos Altos Infantes, pela visão do Príncipe Perfeito, pelo maravilhoso cristão de Camões, pela ilusão sebástica, pela Restauração profética do Padre António Vieira e, por fim, pelo ouro e pela dissolução da nação antiga. E passámos a viver (se não vivíamos já, como mostraram Gil Vicente e Sá de Miranda) “geralmente mal connosco próprios, por nos acharmos sempre aquém do que teríamos sido ou do que poderíamos ser…”. E há nisto (prossegue Manuel Clemente) “algum auto-ressentimento independentemente da nossa extracção religiosa ou não-religiosa. Todos nos embebemos de um Portugal que não achamos”.

 

Biografia geográfica.

E há a referir a nossa relação com a geografia – estranha biografia geográfica de um continente em miniatura que somos, com mil influências e que nos permite entender as diferenças. Afinal, somos criados a partir da diferença – diferença de povos vários, diferença de paisagens variegadas, língua de várias culturas. E os dois episódios que o autor conta do emigrante parisiense que continuava a manter um quintal lusitano e do bispo de Cochim (donde saímos há 400 anos) que guardava religiosamente a memória portuguesa (como vi com emoção, também) dão-nos bem conta de como somos abertos (e sedentos delas) às inesperadas diferenças, aventuras, descobertas, achamentos, o que quisermos… Leia-se, aliás, Pero Vaz de Caminha…Será capacidade de adaptação ou de compreensão? Mais do que aceitar, somos capazes de recriar. “Fruto mole na casca e duro por dentro”. Somos assim. António José Saraiva tem razão. Tudo junto contribuiu (com a geografia e a história à mistura) para construirmos e reconstruirmos o novo sobre o velho, com o tecido da saudade, como lembrança e desejo e como “delicioso pungir de acerbo espinho”. E será a poesia sinal de reconhecimento? Aqui teremos de usar cautelas especiais, pois a poesia também é cíclica – desde os trovadores aos romanceiros, até Sá de Miranda e Camões, a Antero, Cesário, Camilo Pessanha, Pessoa, até chegar a Ruy Belo, Ruy Cinatti, Sophia ou José Tolentino Mendonça. Mas cuidado, a poesia vem e vai, conforme abrimos ou fechamos o nosso coração. Mas é verdade que “quando nos relacionamos bem com Portugal, fazemo-lo com um país mais sentimental do que mentalmente definido, como se a espuma das ondas nos toldasse a visão”. E Camões soube entender esse maravilhoso no curso histórico (Ourique, Batalha, Índia) – como o tinham feito Fernão Lopes ou D. Duarte, mas antes deles S. Teotónio e os cónegos de Santa Cruz de Coimbra, de depois deles Bernardim e Garrett. E onde estamos representados? Nos Painéis de Nuno Gonçalves ou na caricatura de Rafael Bordalo Pinhairo? E se virmos bem estamos nos dois lugares e nas duas atitudes – veja-se as cidades até ao século XVIII: nobreza e plebe coexistem no mesmo espaço citadino. E o certo é que “vamos andando, apesar de tudo. E muito à portuguesa, ‘depois se verá’, o que também é já um saber de experiência feito”. Oiçamos, aliás, o velho do Restelo e o seu aspecto venerando…

 

Curiosíssima simbiose.

Que é a cultura portuguesa senão esta curiosíssima simbiose: de transporte e de fixação, de presente e de futuro, de esperança e de resignação? Mas, no fundo, o grande tema é o do fatalismo do atraso ou da condenação da distância. E é aqui mesmo que sentimos a tensão forte entre o destino e a razão, entre a vontade e o conformismo, entre o sentimento e a determinação. Maria de Lourdes Belchior costumava falar de um certo anti-clericalismo muito cristão. Os últimos séculos contribuíram para essa mentalidade, que não perturba o Portugal mental onde a razão liga o sentido crítico e o sentimento. Herculano fala de uma Igreja nacional, desenvolve a ideia de uma emancipação religiosa, que hoje deve ser lida à luz da exigência de uma superação da religiosidade conformista e conservadora, lembrada a propósito da confusão arcaica entre poder espiritual e poder secular. Os temas sucedem-se, naturalmente, com as cerejas, saborosos frutos de época. Aos temas do anti-clericalismo e do clericalismo contrapõe-se o da liberdade religiosa. E assim ganha um sentido novo a interpretação actualista da existência de um “povo eleito”. Esse povo eleito vive confrontado com o paradoxo da vontade e do destino, da determinação e do fatalismo. O certo é que a religiosidade dos tempos históricos vai exigindo sempre a serenidade da ponderação de diferentes elementos culturais – saudade, sebastianismo, o “fia-te na Virgem e não corras”… - tudo isso vai construindo uma identidade complexa e aberta, na qual a religião aparece como factor de ligação (re-ligare) e de coesão, mas sempre considerando a racionalidade crítica. E à medida que procuramos sinais de maturidade, vamos encontrando uma coexistência desdramatizada e serena entre o espírito e a razão, entre a fé e o sentido crítico. Leia-se o ensaio “O culto de Nossa Senhora da fundação à restauração da nacionalidade” e poderá compreender-se melhor a afirmação do templo por excelência do Espírito Santo. E talvez se entenda melhor, desde os alvores da nacionalidade, o espiritualismo agostiniano, joaquimita, franciscano (veja-se Jaime Cortesão), a ânsia de descoberta da natureza e da novidade, o entendimento dos valores no feminino. Releiam-se as “Cantigas de Canta Maria” de Afonso X, o Sábio, escritas em galego português, e entenda-se a humildade glorificada. E neste Portugal Finisterra, onde a terra acaba e o mar começa, temos ainda de encontrar a realidade ribeirinha. O mar é o símbolo, ponto de união e sinal de fecundidade na pesca milagrosa. E aqui encontramos ainda o “ideal viajante” – de que Portugal é paradigma – Porto, porta, oportunidade… Paulo Orósio dialoga com Santo Agostinho e desenha o nosso código genético cultural. E relemos de novo as Viagens de Marco Pólo, em busca do Presbítero João, o cristão desconhecido que se procura descobrir… “Assim partimos, navegamos e regressamos, para voltar a partir. A história cristã escreve-se sobre as águas e simboliza-se nelas. E o sulco que abriu no mar é ainda o sulco por abrir”. E de Europa ainda se fala, como lugar de encontros e de diferenças, não como “clube cristão” no sentido excludente, mas “inspirando-se no exemplo de Cristo”, garantindo a todos (cristãos e não cristãos) “o lugar consistente de encontro e projecto”…

 

Artigo relacionado:
"Portugal e os portugueses": leia o primeiro capítulo

Guilherme d'Oliveira Martins

in Centro Nacional de Cultura

06.05.2008

 

 

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