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Flannery O’Connor: Requintada observadora do grotesco

O catolicismo literário pode seguir essencialmente dois caminhos: a palavra de louvor absoluta, a felicidade privada de sombras, como no caso de Paul Claudel; ou uma forma singular de missão que coincide com o saber ler «a ação da graça num território mantido pelo diabo». Desta segunda vereda foi fiel exploradora Flannery O’Connor, nascida em 1925, em Savannah, na Geórgia, desaparecida com somente 39 anos por causa de um lúpus eritematoso, intérprete do denominado gótico do Sul, o “Southern Gothic”, que inspirou Cormac McCarthy (pense-se nos romances “Outer dark” e “Suttree”) e até Bruce Springsteen (o álbum “Nebraska” em particular).

Publicado em Portugal, “Um bom homem é difícil de encontrar” (ed. Relógio D’Água) apresenta histórias cruéis, provenientes de um sarcasmo privado de falsos pudores, que falam de uma América povoada de perigosos mal-encarados, avós e mães temerárias, avós que renegam os seus netos, profetas embusteiros, refugiados rejeitados, párias burlados, velhacos que se fazem passar por vendedores de Bíblias. O quadro não é reconfortante.

Mas a pergunta que O’Connor parece constantemente apresentar ao leitor é idêntica e ineludível: ali, «no território do diabo» precisamente, de que maneira age a graça? Como reconhecer a presença de Deus dentro das fibras da obscuridade sem moralismos, sem sentimentalismos fáceis? Interrogações que uma escritora católica não pode mitigar, correndo o risco de aplanar «um mundo dotado de peso e de espessura», cuja exterioridade, em todo o caso, tem o dever de retratar. E, com efeito, em “Sangue sábio” (ed. Cavalo de Ferro), a mistura pulsante dos acontecimentos reveste-se de significados e símbolos em conflito aberto.



Não o quente conforto, mas a aspereza, o gelo, que também é sinal tangível de uma necessidade desmesurada. No cru, no tremendo, pode tocar-se – como um alfabeto em braile – o relevo de outro, de Outro



Há algumas semanas, o P. Antonio Spadaro deu uma interpretação muito interessante do conto “A gente sã do campo”, Joy, rebatizada Hulga, filósofa racional é seduzida por um simplório, o clássico rapaz do campo, o qual, depois de a ter convidada para um encontro galante pelos bosques, atreve-se a subtrair-lhe a perna de madeira (a natural tinha sido esmagada por um disparo durante um incidente de caça) e expõe-na como um trofeu. À luz do simbólico, porém – comenta Spadaro – a perna corresponde à «alma lenhosa» da mulher, e na realidade o malandro, ao tirar-lhe a prótese existencial que trava a sua adesão, dá-lhe o amor, liberta-a das obsessões e dos laços interiores que até então a tinham impedido de viver.

No ensaio “O escritor de narrativa e a sua terra”, por outro lado, Flannery abtecipa os motivos profundos da sua poética: «Tenho a impressão que os escritores que veem o mundo à luz da sua fé cristã são, destes tempos, os mais finos observadores do grotesco, do perverso, do inaceitável... Devem gritar aos duros de ouvido e traçar imagens grandiosas e maravilhosas para os cegos». Nada de mais claro. Não o quente conforto, mas a aspereza, o gelo, que também é sinal tangível de uma necessidade desmesurada. No cru, no tremendo, pode tocar-se – como um alfabeto em braile – o relevo de outro, de Outro. Com muito acerto Oates reconheceu nos rascunhos de O’Connor a estrutura e a valência semântica da parábola: «Quadros diretos, explícitos e descaradamente melodramáticos», não são «narrativas refinadas ao estilo “New Yorker”, nos quais só acontece alguma coisa na mente dos personagens, mas narrativas nas quais acontece algo de irreversível».



É entre ações infelizes e frescos poderosos, no fervilhar da maldade e ao longo do difícil caminho de redenção, que se move a escrita de O’Connor, cujas bruscas passagens estilísticas respigam um campo ao mesmo tempo vulgar e sublime, enquanto o ritmo interno cresce sempre nos compassos finais, deixando emergir a hipótese de uma tensão resolvida por forças contrastantes.



Em “A vida que salvar pode ser a sua”, o senhor Shiftlet, depois de ter abandonado a pobre Lucynell, recém-casada, num «lugar para comer feito de alumínio pintado», continuando a conduzir pelos recessos da província americana dominada por uma natureza muda e majestosa, teve repentinamente a sensação «que a podridão do mundo estava prestes a devorá-lo. Levantou o braço e deixou-o cair sobre o peito. “Oh Senhor!”, rezou. “Aparece e varre a lama deste mundo!”».

É entre ações infelizes e frescos poderosos, no fervilhar da maldade e ao longo do difícil caminho de redenção, que se move a escrita de O’Connor, cujas bruscas passagens estilísticas respigam um campo ao mesmo tempo vulgar e sublime, enquanto o ritmo interno cresce sempre nos compassos finais, deixando emergir a hipótese de uma tensão resolvida por forças contrastantes. «O senhor Head ficou totalmente imóvel e sentiu uma vez mais a misericórdia descer sobre si mas desta vez sabia que nem teria palavras para descrever o que sentia. Percebeu finalmente que a misericórdia nasce da agonia, que não é negada a nenhum homem e que é dada às crianças de formas estranhas e inesperadas. (...) Ficou assustado, a julgar-se a si mesmo com a precisão de Deus, enquanto a misericórdia envolvia o seu orgulho como uma labareda, e o consumia».


 

Alberto Fraccacreta
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.07.2021 | Atualizado em 09.10.2023

 

 
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