Em relação à obra poética de Fernando Echevarría posso orgulhar-me, sem imodéstia, de – fundado na constante releitura da sua obra poética e na atenção aos belos estudos que Maria João Reynaud lhe ia dedicando - haver conduzido sucessivas preleções e sua síntese escrita a um feliz acerto hermenêutico que, antecipando-se ao aparecimento do termo «assentimento» no idiolecto lírico-reflexivo do poeta, destacava essa mesma disposição de espírito no horizonte do devir da mundividência plasmada pela sua obra, graças a um processo, aliás ainda inconcluso, de entendimento e entrega segundo uma ética do dom e uma sageza que poderia deter-se em atitude de mera aceitação, mais ou menos passiva ou resignada, mas que em verdade se cumpre mais alto, numa gramática do assentimento perante os mistérios do valor divino do humano.
Cedo me impressionou a produção poética cerrada de F. Echevarría, a começar pelo contacto com a revelação em Entre Dois Anjos (1956) e com a primeira fase, ainda estreitamente ligada à cultura espanhola, à sua literatura mística e à sua tradição barroca (que vinha contaminar fecundamente de sensualidade o próprio anseio místico no idioleto germinante do poeta). Cedo me conquistou o modo como, preservando a espiritualidade no seio do exílio militante, se ergueu a nível superior na lírica da tarda modernidade que é em Portugal a do último quartel do século XX - com uma extraordinária dicção de consciência religiosa ancorada em reflexão filosófica (refletida, desde logo, em títulos como Introdução à Filosofia, 1981, ou Fenomenologia, 1984); e conquista para a harmonia de Fé iluminada e Razão esclarecida, em diálogo com as artes e com as faces do mundo (Sobre os Mortos, 1991, Uso de Penumbra, 1995, Geórgicas,1998, etc.), uma gramática do assentimento perante os mistérios do Amor divino.
Depois, com a viragem do milénio e a magistral catáfora do título Introdução à Poesia (2001), toda a vasta obra poética que Echevarría continuará a trazer-nos Epifanias (2006), sob comando do ritmo do pensamento manifestado em efeitos musicais de impulso e pausa, «robustas pedras sonoras» subsumidas numa «torrencial arquitetura / de silêncio». Num ingente e contínuo caudal de criação e publicação, ainda mais impressionante por se revelar densa matéria de estudo (em homologia hermenêutica com a própria índole da obra lírica, que um dos seus títulos em 2009 emblematiza justamente como Lugar de Estudo), sem concessões aos potenciais desejos de acessível receção, num regime calculado de escrita tão inamovível no seu rebuscamento idiolectal quão eficaz nos seus efeitos, Fernando Echevarría é senhor, no cânone poético contemporâneo, de um lugar incomparável – pela singularidade quase paradoxal do discurso, logo sinalizada pelos títulos insólitos que continuam a intrigar-nos (In Terra Viventium em 2011, Categorias e Outras Paisagens em 2013).
Foi a Obra Inacabada recolhida em dois volumes no ano de 2016 que esteve em causa nas minhas últimas intervenções sobre a poesia de F. Echevarría, de modo que as inferências a que cheguei deverão ser reconsideradas, decerto corroboradas e matizadas, à luz da Via Analítica vinda a público em 2019.
O modo de existência do discurso poético e do seu sujeito são homólogos na obra de Fernando Echevarría: um curso contínuo, que flui com pausado mas inestancável impulso, que pulsa com ritmada fluidez. Assim deriva o texto em seus versos e em sucessivos poemas; assim degride a persona que nesse fluxo prosódico se situa ou se adivinha.
Esse curso da dicção e essa itinerância do sujeito respondem na poesia de F. Echevarría a uma causa final de conhecimento; e, pelo vínculo placentário dessa teleonomia textual e do alcance transcendente dessa gnose – Ritmo Real: «caminha / aqui e além dela» -, diferenciam-se superadoramente quer do tropismo da força que «avança», quer do ambíguo sucedâneo da plenitude na apoteose inconsequente do instante em que se confina a vivência ou a experiência da efemeridade imanente - traços equívocos da nossa literatura nas décadas que leva de modernidade tardia e de pós-modernidade.
Aliás, constituindo-se a poesia de Echevarría como fenomenologia existencial da durée e meditação metafísica do Tempo, nela consequentemente se respira uma sabedoria da paciência que respeita o ritmo dos tempos peculiares da relação humana com o entorno empírico e com o Englobante jasperiano e que aceita os limites das possibilidades humanas – no fundo, fazendo reinar a grandeza de alma com que se participa da realidade (para vivê-la bem, com estrutura de horizonte transcendente) … «E o coração relampagueia, cume / de pura inteligência compassiva.», como sintetizou a 18ª lição «Da epistemologia» na poética de Filosofia.
O método reside em «o estudo é mover-se», «naquele mover-se que, sabendo tudo, / sobretudo se sabe» - e para tal nos alerta a frequência dos verbos que denotam o trânsito do ser em situação (ir, passar, etc.) e dos verbos que direcionam esse movimento (sobretudo ver). Mas, se assim «A noite nos acende movimentos» (Sobre as Horas) e assim «passamos. E tudo se levanta / …» (Filosofia), o ethos irredutível à flânerie da modernidade e a vocação espiritual que o move recompõem o método por uma dimensão de pausa, não menos musical, e reconfiguram-no quase paradoxalmente em «aquela pausa em que vamos».
Sem fugir ao estar-no-mundo, o sujeito desta lírica reflexiva vive-o sob o signo do transcendente, a ponto de instaurar a Parusia como horizonte visado pela pragmática textual. Mediada pela epifania eventual no quotidiano - «Contacto pleno: A tarde / está ferida de presença» -, tal Parusia não se confunde com o seu sucedâneo endógeno no quotidiano empírico, que pode irromper, por exemplo, na narrativa de Agustina.
De facto, a poesia de Echevarría cumpre-se em percursos de «reconhecimento», já não hegelianos, mas sim impregnados de «solicitude» e animados de «reciprocidade»; e assim essa poesia pratica o acolhimento da verdade das coisas e dos outros, deixando entrever, na sua velada axiologia, o desejo ricoeuriano de uma vida realizada em justas relações interpessoais e em instituições justas. Em simultâneo, porém, essa integração superadora da flânerie baudelairiana e da moderna deambulação fenomenológica em percursos discursivos e espirituais de «reconhecimento» envolve ainda uma mais alta virtude: quer reconhecer nos outros e nos estados do eu a aura divina do Outro, quer remontar à Fonte transcendente da verdade dos seres – conduzindo da generosidade da compreensão à piedade da comunhão eucarística (segundo poemas como o soneto «De repartirmos cada dia o pão»).
Trajeto nem de evasão nem de diversão, esse processo, em que, como lemos desde Figuras, «Estamos indo», exige a pertinente «paração do olhar», atributo da pausa rítmica e sintática, semântica e cognitiva, da «pausa em que vamos». Pode, com efeito, beneficiar de um «repente» que se aparenta ao «súbito» de Agustina, mas, com vislumbre ou não de «transparência» sacra, propicia epifanias com conotações de alumbramento e terror sacro: «Parou. Um repente augusto / lhe fulminou o semblante. / … / a eternidade cegou-lhe o coração.»
Esse repente insere-se num «caminho de atenção», em que se conjugam o andar e o ver da condição do Homo Viator., pastor do Ser que na vida e na linguagem busca sua refontalização ontológica (tal como as Geórgicas transpõem no seu imaginário pastoral).A atenção que aí está em causa e eficiência exige «funda vigília do sentido» e «afinco na procura do sentido», faz-se «movimento gradual de aproximação» ao outro de si mesmo e ao outro das coisas e dos seres, ergue-se a «visão do pensamento» até à «vida a despedir-se eterna».
Fernando Echevarría foi a primeira personalidade distinguida com o Prémio Árvore da Vida-Padre Manuel Antunes (2005), atribuido pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, com a parceria da Renascença | D.R.