«Todo o mundo estava condenado a perecer de uma peste (…). Tinham surgido umas novas triquinas, criaturas microscópicas que penetravam nos corpos humanos. Mas essas criaturas eram espíritos dotados de inteligência e vontade: as pessoas que as alojavam nos corpos de imediato se tornavam possessas e loucas. Os contaminados, porém, nunca na vida se tinham considerado tão sábios e acreditavam ser possuidores da verdade inabalável. Nunca antes tinham considerado tão inabaláveis as suas sentenças, as suas conclusões científicas, as suas convicções morais e as suas crenças. Povoações inteiras, cidades e povos inteiros ficavam contaminados e enlouqueciam, desvairavam-se e não se compreendiam uns aos outros. Cada qual julgava ser o único a estar na posse da verdade e olhava atormentado para os outros (…). Ninguém sabia a quem julgar e como julgar, ninguém chegava a acordo sobre o que era o bem e o mal. (…) Formavam-se exércitos, mas os exércitos, já em marcha, rebentavam em brigas intestinas, as fileiras confundiam-se, os soldados atiravam-se aos companheiros, esfaqueavam-se, mordiam-se, comiam-se uns aos outros. (…) Os ofícios foram abandonados, porque cada qual propunha as suas ideias, as suas emendas, mas ninguém chegava a acordo; a agricultura parou (…). Ateavam-se incêndios, começou a fome. Tudo e todos pereciam. A peste agigantava-se e avançava mais e mais. Muito poucos, os puros e eleitos, se salvariam para darem início a um novo género humano e a uma vida nova, para renovarem e purificarem a terra, mas ninguém, em lado nenhum, via esses eleitos, ninguém podia ouvir a sua palavra e a sua voz.»
Não é a passagem de uma crónica romanceada do que está a acontecer nestes dias, com a pandemia e o desconcerto causado pelas mil interpretações das suas causas e as mil controvérsias sobre as medidas para a deter.
É um trecho de Dostoiévski, o sonho final de Raskólnikov, o jovem protagonista de “Crime e castigo”, que, convicto de ser um homem à parte (Raskólnikov quer dizer exatamente isto o “raskól” é o “cisma” por antonomásia), um ser excecional para o qual não valem as leis, considera que as pode violar ao ponto de matar, para construir um mundo melhor; não é um jovem mau, mas a ideia que se apoderou dele como uma doença coloca-o numa espécie de percurso no qual quanto mais está convencido de possuir a verdade, e quanto mais se afasta da realidade, as ações que realiza para o bem da humanidade impelem-no a matar.
O que é imaginado no romance está muito longe da realidade que estamos a viver: não obstante tantas teorias da conspiração e de toda a possível exacerbação da luta política, não há Raskólnikov por trás do vírus e por trás das divisões da nossa vida política.
No entanto, apesar desta certeza, permanece sempre aos nossos olhos a imagem desta divisão que, em nome da pretensão de possuir a verdade, se transforma em ódio pelo outro; ninguém nos tira da cabeça esta imagem de uma abstração, com a promessa de um mundo melhor que, porém, nunca aparece concretamente de nenhum lado, de maneira que mais ninguém compreende o que está a acontecer e o seu sentido: os habituais critérios de juízo perderam-se ou deixaram de ter valor.
Celebram-se em 2021 os duzentos anos do nascimento de Dostoiévski, e nestes dias os 140 anos da morte: parece um mundo distante, todavia estas páginas descrevem-nos algo que não deixa de nos perturbar hoje, mesmo que vá muito mais fundo do que aquilo que sucede à superfície dos nossos dias.
Nenhum de nós é Raskólnikov, porém, como nos tempos de Raskólnikov numa Rússia que se acreditava ainda plenamente cristã, também entre nós, hoje, a nossa sociedade, tantas vezes dividida entre um apego encarniçado aos valores da tradição e um relativismo absoluto, não sabe encontrar uma resposta que supere a estéril contraposição entre quem então se limitava a condenar Raskólnikov, não lhe deixando qualquer redenção possível (a ressurreição de que lhe fala Sónia, a prostituta), e quem se limitava a reconhecer-lhe mil atenuantes (a pobreza, as boas intenções, a bondade do coração), que no entanto o deixavam só num delito de que percecionava a não correspondência com o seu coração e a sua mente, de tal maneira que arriscava enlouquecer, dando-se conta de não ser um homem à parte.
Esta dimensão social da mentalidade de Raskólnikov e este desastre social, que se tornava cada vez mais contagioso, não tinham escapado a Dostoiéveski, tornando-se tema de um outro dos seus grandes romances, “Os demónios”, onde já não havia uma pessoa endemoninhada, mas um grupo de revolucionários que matava um dos seus companheiros, pensando que poderia trai-los. Era uma história verdadeira que Dostoiévski tinha colhido das notícias, romanceando um homicídio real e as ideias de um dos grandes revolucionários do seu tempo, Sergej Nečaev (1847-1882), o protótipo do revolucionário niilista que não sonhava simplesmente abater o velho mundo para o substituir por um melhor, mas queria espalhar males e desgraças para impelir o povo a «uma revolução que tudo destruísse».
E, por incrível que possa parecer, perante a evidência de um homicídio real, e não apenas inventado por um escritor, também a sociedade do tempo se divide, com a habitual contraposição entre defensores do renovamento e reacionários: muitos condenaram o romance e o seu autor como uma manifestação de inaceitável conservadorismo, e só pouquíssimos procuram motivar um parecer mais favorável.
Entre estes escassos, houve um que louvou Dostoiévski pela sua capacidade de descrever a «juventude ociosa e deficiente», que, em vez de estudar e trabalhar, sonhava a revolução. A reação de Dostoiévski é surpreendente: em vez de se fixar nesta contraposição de princípios que, então como hoje, não leva a lado nenhum, em vez de agradecer ao isolado apoiante, contesta-lhe radicalmente a argumentação. Recordando que tinha sido, ele próprio, um revolucionário, ou pelo menos de por isso ter sido condenado, em 1849, à pena de morte (depois comutada em anos de trabalhos forçados na Sibéria), reprova ao seu apreciador não ter compreendido nada daquilo que está a acontecer, e indica-lhe a verdadeira origem de ações que são, decerto, crimes, mas que também não são, certamente, o fruto de pouca vontade de trabalhar e de estudar.
Antes de tudo, faz-lhe notar que ele próprio tinha sido mandado para a forca, apesar de todos os seus estudos, e depois abre-se a uma confissão que torna impossível de propor todo o discurso abstratamente conservador: «Nunca poderei tornar-me, provavelmente, Nečaev, mas um nečaeviano, não garanto, talvez o tenha sido (…) nos dias da minha juventude». Após o que procura mais uma vez esclarecer o verdadeiro propósito do seu romance, que é tudo menos político: «Repito que no meu romance “Os demónios” tentei representar os múltiplos e variados motivos pelos quais também as pessoas mais puras de coração e mais ingénuas podem ser impelidas a cometer um delito tão monstruoso. O horrível é precisamente que de nós se possa realizar o ato mais vil e abominável, por vezes sem se ser de todo um canalha! De resto, não é só connosco, mas em todo o mundo acontece assim, sempre, desde o princípio dos séculos, nas épocas de transição, nas épocas de agitação da vida humana, de dúvidas e de negações, de ceticismo e de incerteza nas convicções sociais fundamentais. (…) Uma vez repudiado Cristo, o intelecto humano pode chegar a resultados perturbadores».
Desta maneira, ao identificar as dimensões exatas da crise («uma vez repudiado Cristo, o intelecto humano pode chegar a resultados perturbadores»), Dostoiévski diz-nos também como tinha sido possível para ele, velho revolucionário, sair da crise, oferecendo-nos com a evocação de Cristo algo que sempre nos surpreende, colocando-nos perante uma novidade que, no entanto, é preciso ser bem entendida, se não se quer reduzir a sua posição a um discurso político como tantos outros, reduzindo assim o escritor a um banal conservador, e perdendo toda a riqueza dos seus romances.
Como o velho apreciador de Dostoiévski, que o tinha louvado, acreditando que tinha voltado ao campo dos reacionários, também nós erraremos se acreditarmos que, dessa forma, Dostoiévski procurava recuperar uma moral tradicional, onde a religião se tornava o garante da ordem constituída: a essência do seu fascínio, a surpresa do seu mundo está no facto de que o bem pode vir ao nosso encontro até através de uma prostituta, pode encontrar-se a misericórdia onde o perdão parece impossível, e encontrar o bem até naqueles que querem destruir toda a piedade.
Devemos procurar compreender a novidade deste Cristo que não pode ser reduzido a uma moral, a uma ideia, nem sequer à mais alta das verdades se essa própria verdade é só uma ideia. Na verdade, mesmo toda a moral cristã, para Dostoiévski, pode tornar-se uma forma de ateísmo quando se reduz a uma série de normas e de ideias; como alguém pergunta em “O adolescente”: «O que é o socialismo ateu?», o que são as denominadas «ideias genebrinas?». São as ideias de Cristo, as virtudes cristãs «sem Cristo». Assim, para Dostoiévski, o mal de que o seu mundo parecia não poder libertar-se, o mal que é descrito no sonho de Raskólnikov como uma doença, como uma pandemia que ainda não parou de se espalhar, é precisamente esta redução de todas as aspirações mais belas e mais justas da humanidade a uma pura ideia.
Deixando-nos fascinar ainda hoje por Dostoiévski, se o ser humano pode esperar um mundo melhor, dominado não pela «discórdia», pela «desarmonia» e pela «luta», mas pela «harmonia», pela «serenidade», e no fim de tudo também por ideais dignos do ser humano, a realização deste mundo deve ser procurada não através da contraposição e do recontro das ideias abstratas, como também não através da afirmação de uma nova e mais perfeita ideia moral, mas pela presença de uma realidade diferente. Como lemos num dos apontamentos preparatórios de “Os demónios”: «Muitos pensam que é suficiente acreditar na moral de Cristo para ser cristão. Nem a moral de Cristo nem o ensinamento de Cristo salvarão o mundo, mas precisamente a fé nisso, que o Verbo se fez carne».
O problema, a chave da reviravolta, na história pessoal e criativa de Dostoiévski, está todo na redescoberta desta dimensão pessoal, real, e não vagamente das ideias, de Cristo.
Cristo é a verdade incarnada, uma pessoa, e se a beleza salvará o mundo, como se diz em “O idiota” e em tantos outros textos de Dostoiévski, não é porque Cristo é uma ideia bela, mas porque é uma pessoa fascinante e irredutível a qualquer ideia, e, por isso mesmo, capaz de libertar-nos e tornar-nos, como Ele, irredutíveis a cada coisa criada ou inventada pelo ser humano: se a beleza salva o mundo não é porque é uma ideia que, mais do que ser verdadeira e boa é também bela, mas porque é uma realidade irredutível a qualquer ideia: no fundo, também os niilistas amam a beleza, dizia Dostoiévski, e acrescentava que no coração do próprio ser humano podem habitar ao mesmo tempo quer o ideal da beleza da Virgem Maria quer o da beleza de Sodoma.
Se Dostoiévski consegue superar esta ambiguidade da beleza, não o faz apoiando-a, para a purificar, noutra ideia, que poderia ser a do bem; de tal maneira que também a ideia de bem é ambígua e frágil, como Dostoiévski repete várias vezes nas suas notas: «Mas como se pode infundir o amor por toda a humanidade como por uma só pessoa? Por cálculo, por vantagem? Estranho. Porque devo amar a humanidade? (…) Por agora direi apenas que a ideia do amor pela humanidade é uma das mais incompreensíveis para o homem enquanto ideia; ela mostra-se só uma vez em forma de Deus incarnado».
Enquanto ideia, Cristo permaneceria uma das coisas «mais incompreensíveis» para a humanidade, não nos faria sair das contradições, não nos salvaria dos nossos limites e, em última análise, daquele que é o último limite humano, a contradição última, isto é, a morte; mas em Dostoiévski funciona algo que nos faz sair da contraposição entre fé e razão, revolução e conservação, e cada um acrescente aquilo que mais o escandaliza neste nosso mundo: sede de infinito e finitude, liberdade e necessidade, autonomia e lei, e por diante.
Uma lógica semelhante comparece em “Os irmãos Karamazov”, quer na Lenda do Grande Inquisidor (onde a oposição entre a palavra idolátrica do Inquisidor e o silêncio de Cristo é superada, não como a vitória de alguma delas, mas no beijo com o qual a Vida viva leva a melhor sobre os discursos do Inquisidor, e assim, no seu radical e pleno silêncio, pode ser verdadeiramente a Palavra em que tudo foi criado e tudo consiste), quer na cena da confissão de Smerdjakov ao irmão Ivan. Não é por acaso que é precisamente aqui que vimos a saber como aconteceram verdadeiramente as coisas quanto ao homicídio de Fëdor Karamazov, cometido precisamente por Smerdjakov, seu filho ilegítimo. Nesta cena, vindo à luz o que realmente aconteceu, há evidentemente a vitória da verdade, mas não da lei ou de uma moral legalista, dado que esta vitória não é obtida através do processo judicial, que chega a resultados totalmente díspares (acabando com a condenação de um inocente); se, no fim, todavia, os leitores ainda têm a vitória da verdade, tal não se deve à lei, mas a um sobressalto daquela liberdade que (como aconteceu com Raskólnikov) os seres humanos não conseguem sacudir e que funciona também como remorso.
Contudo, nesta surpresa que não cessa de nos acompanhar, a chave desta confissão não está simplesmente no remorso, na busca de alguma reparação da lei violada, mas naquele livro que Smerdjakov tem na mão quando confessa a Ivan o seu delito: é uma recolha das “Homilias “ de Santo Isaac de Nínive, um dos padres da Igreja que mais insistiu na centralidade e na força da misericórdia, de maneira que aquilo em frente do qual a verdade pode vir à luz, aquilo de que o ser humano pode esperar um juízo sobre os seus atos, não é nem a indiferença à lei nem a condenação em nome da lei, mas exatamente a misericórdia, o amor infinito de Deus e «de um coração que arde por toda a criação», como dizia precisamente Santo Isaac.
Pertence, pois, à liberdade do ser humano, isto é, ao seu coração e à sua razão, inseparáveis, acolher ou não esta misericórdia e deixá-la agir.