Vinte e cinco anos após a morte dos sete monges de Tibhrine, beatificados a 8 de dezembro de 2018 em Oran, com outros doze religiosos e religiosas assassinados entre 1994 e 1996, a lógica humana seria a de procurar traçar um “balanço”. A lógica de Deus, antes, é a de surpreender-nos sempre, e buscar o mais pequeno, o menos visível dos seus filhos. Aqueles monges, perdidos nas montanhas do Atlas argelino, são como a imagens dos muitos profetas da Bíblia que partiam para lugares desertos e montanhosos para fugir aos seres humanos e encontrar Deus. O mosteiro de Tibhirine e os seus monges, radicados no seguimento de Cristo e na Argélia, tornaram-se, com a sua morte, uma palavra para o mundo.
De maneira profética, diria, o Beato Ir. Célestin Ringeard escrevia-o em 1993, por ocasião da festa de S. Cipriano: «A morte dos mártires atesta que são vaso de barro. Mas deste vaso aparentemente quebrado na sua fragilidade projeta-se o formidável desafio do Senhor da vida». E como um eco foi a sua oração durante o ofício das Vésperas de 26 de março de 1996, horas antes de os monges terem sido capturados: «Senhor Jesus, Tu vieste chamar-nos à conversão: és Tu que nos fazes guardar a tua Palavra num coração paciente para que produza o seu fruto em tempo favorável… Louvor a ti, Senhor!». Do silêncio da sua morte como mártires até ao fruto desta palavra que jorra em tempo favorável.
Esta palavra ressoa no nosso mundo de muitas maneiras. Antes de tudo, através dos seus escritos, dos quais prossegue o trabalho de publicação. Pensamos logo, certamente, no testamento do prior, o Beato Christian de Chergé, entre os textos mais importantes da espiritualidade do século XX, que abre grandes perspetivas espirituais e teológicas do ponto de vista da fraternidade universal e indica as raízes profundas do diálogo inter-religioso. Esta palavra ressoa também através da descoberta da vastidão do trabalho médico e social desenvolvido pelo Beato Luc Dochier, apoiado pelos seus confrades, como também através do compromisso fraterno da comunidade num diálogo de vida com os seus vizinhos muçulmanos, a fim de construir uma fraternidade universal, herdada da presença do irmão Charles de Foucauld nesta terra da Argélia.
Em entrevista recente à imprensa francesa antes da visita do papa Francisco ao Iraque, o card. Fernando Filoni, anterior núncio em Bagdade e hoje grande mestre da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, dizia, em relação às mãos estendidas ao islão, que, «paradoxalmente, o drama de Tibhirine ensonou-nos que é preciso abandonar a lógica do recontro, e que viver uma diversidade religiosa no respeito recíproco é possível». Reencontramos uma frase fundamental do testamento do Beatro P. Christian de Chergé: «A alegria secreta [de Deus] será sempre estabelecer a comunhão e restabelecer a semelhança jogando com as diferenças». Estabelecer a comunhão pode entender-se como restaurar a unidade, sabendo que as diferenças são um elemento menos importante em relação a esta unidade que é fundamental, radical e determinante. Unidade da família humana na diversidade religiosa que se revela então não como um impedimento, mas como o desdobramento deste mistério de unidade.
Aquando da beatificação, o papa Francisco exprimiu-me o seu grande desejo que aquela celebração de 8 de dezembro de 2018 se realizasse na terra na qual aqueles irmãos e irmãs tinham dado a sua vida. Se a data escolhida foi mais o fruto casual da concordância de calendários, agrada-me pensar que foi providencial, dado que estávamos numa fase em que o papa Francisco estava a empenhar-se, com passos decisivos, num diálogo com o islão. Alguns meses depois decorreram o encontro de Abu Dhabi com o grande imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, e a assinatura do “Documento sobre a fraternidade humana para a paz mundial e a convivência comum”, texto que abriu uma nova era, da oposição formal à “guerra santa” através de uma aliança em que as duas maiores religiões do mundo disseram claramente que se situam no quadro da fraternidade humana. Depois aconteceu a visita do papa a Marrocos, durante a qual insistiu na cultura do diálogo: «É essencial, para participar na edificação de uma sociedade aberta, plural e solidária, desenvolver e assumir constantemente e sem cedências a cultura do diálogo como caminho a percorrer; a colaboração como conduta; o conhecimento recíproco como método e critério». Parece-me poder ver aqui a vontade do pontífice de promover, sempre como hóspede, uma série de encontros centrados no diálogo entre pessoas de boa vontade.
Indo mais além, posso dizer que não consegui deixar de ler a encíclica “Fratelli tutti” à luz dos dezanove mártires da Argélia que representaram e representam para o nosso mundo um ícone de fraternidade. Com efeito, nesta encíclica reencontrei, como um eco, a opção dos monges de Tibhirine de permanecer juntos, como irmãos e para os irmãos – os muçulmanos –, no caminho de santidade que Deus os chamava a percorrer. Clara referência à busca do bem comum mais do que do bem pessoal. Os monges, no seu caminho e no seu discernimento, quer pessoal quer comunitário, nunca buscaram o bem próprio, mas, antes de tudo, o da comunidade, em sentido lato, pois incluía o bem dos habitantes de Tibhirine e do povo argelino, o bem comum da esperança. O Beato Paul Favre-Miville recordava-o, ao escrever: «O nosso mundo está doente. O que mais lhe falta é o sentido. Não se sabe para que se vive, nem para onde se vai e se se está disposto a fazer alguma coisa. A crise não é antes de tudo económica, mas é uma dificuldade em viver juntos, o ter, a busca de possuir cada vez mais falseia a relação entre os seres humanos, que se sentem totalmente desconsiderados».
Em certo sentido, os monges de Tibhirine poderiam ser considerados os inspiradores desta encíclica, em que reencontramos os pilares fundamentais que estiveram na base da sua vida e da sua morte: a esperança, o próximo sem fronteiras, o acolhimento do outro na sua diversidade, o valor único do amor, uma sociedade aberta que inclua todos, o valor da solidariedade, o intercâmbio fecundo, a gratuidade. Vinte e cinco anos após a sua morte, os monges de Tibhirine parecem-me ter vivido em embrião, e de maneira profética, as grandes inspirações do pontificado do papa Francisco. «Se o grão de trigo, caído à terra, não morre, permanece só; se, pelo contrário, morre, produz muito fruto.»