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Irmão Luc, monge e médico de Tibhirine: «Não tive muito na vida, mas sou feliz»

Imagem Irmão Luc | D.R.

Irmão Luc, monge e médico de Tibhirine: «Não tive muito na vida, mas sou feliz»

Paul Dochier, que se tornará irmão Luc, nasceu a 31 de janeiro de 1914, em França. Após os estudos em Medicina, entra, em dezembro de 1941, no mosteiro trapista (Ordem Cisterciense de Estrita Observância) de Aiguebelle.

Em 1946 parte para Tibhirine, na Argélia, onde durante 50 anos, até à sua morte, será responsável por um posto médico daquela região pobre e interior, realizando até 100 consultas por dia.

De 26 para 27 de março de 1996, Luc e os restantes seis membros da comunidade foram raptados, tendo sido encontrados mortos em maio desse ano.

A vida dos monges esteve na base do multipremiado filme “Dos homens e dos deuses”, realizado em 2010 pelo cineasta francês Xavier Beauvois.

Organizada por François Buet, a obra “Frère Luc – Moine et médecin à Tibhirine” (128 pp.), lançada em 2014 pela editora francesa Nouvelle Cité, permite ao leitor conhecer a fecundidade de uma vida aberta ao infinito e fraterna com a comunidade religiosa e a população muçulmana.

Apresentamos um excerto das 15 meditações incluídas no livro, extraído da tradução italiana.

 

Irmão Luc – Monge e médico em Tibhirine
Ed. Gribaudi (Itália)

Diante de Deus permanecemos na posição de mendigo. Os seus dons são perfeitamente gratuitos. Nenhum esforço e nenhum trabalho exigem uma retribuição da sua parte a título de justiça. Deus não nos deve nada. O mendigo de Deus abandona-se a este arbítrio divino, do qual depende inteiramente. O cristão assumirá a atitude do homem que, «tendo consciência da sua impotência para satisfazer as suas aspirações ao Reino de Deus», fica à procura de Deus em todos os encontros. A vida cristã não é posta em causa por causa de uma prestação bem conseguida. Depende da iniciativa divina. O mendigo de Deus nunca terá a sensação de ter chegado. Incessantemente, avança à procura de Deus. Assim aceitará sem rebelião os seus fracassos espirituais ou outros insucessos. Sem amargura nem adjetivações das suas falhas, o desencorajamento dificilmente o constrangerá. Compreende que a vida espiritual não é apropriar-se da virtude mas abrir-se ao enriquecimento divino. Nenhum método, nenhuma técnica e nenhuma arte nos trazem Deus se não aceitarmos ir com Ele, mendigando-o, e merecer a bem-aventurança «daqueles que têm uma alma de pobre».

A salvação vem-nos dos outros, que são para nós a presença de Deus que chama à vida. Se a fé salva é porque ela desvia o nosso olhar para um outro, e assim cria uma relação que nos arranca da nossa solidão mortal... Cada vez que deixamos a preocupação por nós próprios, substituindo-a pelas preocupações por outro, vivemos esta fé que é, talvez sem o sabermos, fé em Deus: «Perder a própria vida por Cristo»... Recebendo a vida dos outros, reencontramos a nossa verdade originária: não nos demos a nossa vida, querer poupá-la coloca-nos em contradição com a nossa criação. Se se quer ser feliz, vai-se direito à desilusão, à infelicidade. «Se queres ser feliz, torna alguém feliz!» O retorno do dom não depende de nós, e é aqui que se joga a fé, o salto no vazio... Não se trata de acreditar que o outro nos restituirá alguma coisa, que teremos uma recompensa – seria querer salvar a própria vida. Se o outro não responde, não tem nenhuma importância, é no próprio ato de dar que encontramos «a vida». Perder a própria vida: Cristo não existe para si próprio, e é por isto que nós encontramos a nossa salvação existindo para Ele; isto é, para os seus irmãos que são também os nossos.

Alegremo-nos por sermos pecadores, mas pecadores perpetuamente perdoados, perpetuamente levantados para lá do nosso pecado. O que descobrimos nas nossas confissões válidas é que errámos o pecado. A nossa verdadeira culpa não foram estes atos insípidos que nos eram servidos como passatempo; era preciso que enganássemos a nossa fome. A nossa verdadeira culpa foi não termos acreditado verdadeiramente na existência de alguém capaz de aplacar para sempre esta fome, de não ter ousado acreditar num amor que nos dispensasse de todas estas contrafações.

O monge não é alguém que converte – é uma testemunha: testemunha diante de Deus em nome do mundo do qual ele é como que a décima oferenda em holocausto ao Deus soberano, testemunha diante dos homens do primado das obrigações para Deus, da procura de Deus e da vida nele dentro de si. O seu testemunho é eficaz, mas desta eficácia ele não se preocupa, não a procura. Não testemunha, é testemunha pelo próprio facto de ser aquilo que é. O mundo é o que as grandes almas nele fazem, aquelas que, no fundo de si, chegaram até Deus. É realizando a paz em si que se realiza a paz no mundo. É dentro de si que se vencem os poderes das trevas que percorrem o mundo e o dominam.

Deus acompanha-nos para onde quer que vamos, mesmo no nosso vaguear, para nos fazer encontrar o caminho de saída. Deus não é contra nós mas connosco. Deus mesclado em nós para nos conduzir à nossa verdade (Espírito e Verbo) e ao nosso cumprimento. O Espírito é aquele que nos conduz à nossa forma definitiva... O essencial não é ter sucesso segundo os critérios da Terra, mas tornar-se um homem verdadeiro, um homem que sofre, mas repleto de alegria, criador de alegria. Não tive muito na vida, mas sou feliz. Tive a revelação da misericórdia de Deus e da amizade dos homens.

 

Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 23.04.2023

 

 

 
Imagem Irmão Luc | D.R.
Cada vez que deixamos a preocupação por nós próprios, substituindo-a pelas preocupações por outro, vivemos esta fé que é, talvez sem o sabermos, fé em Deus
A nossa verdadeira culpa foi não ter acreditado verdadeiramente na existência de alguém capaz de aplacar para sempre esta fome, de não ter ousado acreditar num amor que nos dispensasse de todas estas contrafações
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