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O Pentecostes da música: Para além dos catálogos

A vivência, no calendário cristão, da liturgia do Pentecostes foi uma oportunidade para regressar à audição atenta da Missa de Pentecostes (2010) de João Madureira, uma criação integrada no projeto «Diálogo Arte contemporânea e Sagrado», desenvolvido pela comunidade da Capela do Rato, com o contributo decisivo de José Tolentino Mendonça. Não escrevo, desta vez, a partir do interior desta criação de João Madureira – fica prometido para outra ocasião. Fico-me por algumas interrogações acerca do próprio lugar a partir do qual ouvimos esta obra – o que inevitavelmente remete para o problema dos lugares de catálogo disponíveis. Sendo uma criação de um compositor que não faz parte dos atuais circuitos do que se apelida, no campo católico, de música litúrgica, a obra foi concebida para ser estreada no Domingo de Pentecostes, no espaço litúrgico na comunidade da Capela do Rato. Ou seja, o seu habitat primeiro é o programa litúrgico e não (sem o excluir) a cena do espetáculo. Enquanto forma musical, é um objeto singular, já que não se limita ao «comum» da Missa (não é, pois, mais uma enésima sequência Kyrie, Gloria, etc.), mas integra o «próprio» da missa (como, por exemplo, a antiphona ad introitum  ou a antiphona ad offertorium). No entanto, note-se que o «próprio» da missa, neste projeto, não reproduz o teor do ordo romano autorizado. Esse é um lugar de invenção que abre a missa à possibilidade de acolhimento da palavra poética em língua portuguesa, numa coexistência de referências e tempos diversos. Encontramos a poesia explicitamente marcada pela memória bíblica e litúrgica, como no caso de Teixeira de Pascoaes ou de José Augusto Mourão. Mas noutros momentos deparamo-nos com a poética de Maria Gabriela Llansol, Sophia de Melo Breyner Andresen e de Mário Cesariny, poesia que a Cristiana Vasconcelos Rodrigues descreveu, na apresentação do CD*, como expressão de uma «mundanidade». Essa mundanidade seria aqui uma transcrição da diversidade e da universalidade próprias da celebração do Pentecostes. Porventura, a necessidade de proteger, de forma argumentada, o lugar desta poesia – que não transporta o cânone da linguagem religiosa –, responde ao estranhamento que muitos experimentarão. Mas esse estranhamento não dirá mais respeito às políticas de catalogação do sagrado do que, neste caso, à criação musical e poética? Os programadores culturais tenderão a integrar esta obra no catálogo da música sacra. Mas poderá esta categoria, historicamente construída, continuar a dar conta da nossa experiência?

Nicolas Schalz mostrou que a noção de musica sacra, ideologicamente instalada, não se encontra na música europeia antes da Reforma e da Contra-Reforma. A expressão é utilizada, de forma inédita, por Michael Praetorius, no primeiro tomo da enciclopédia Syntagma Musicum, de 1614. O adjetivo sacer (sagrado) era usado numa função atributiva, qualificando substantivos como melodia, cantilena, canticum, etc. Em termos gerais, essa atribuição pretendia caracterizar práticas que se realizavam na igreja ou que eram conformes à igreja. A separação entre o campo do profano e do sagrado não estava necessariamente ancorada numa distinção de estilo, mas antes numa diferenciação de práticas. As categorias usadas tinham um finalidade pragmática, não apontavam necessariamente uma legitimidade teológica.

É no quadro das Reformas protestante e católica que se inicia um trabalho de ideologização do atributo sacer. A profunda erosão do caráter orgânico da cristandade do Ocidente é o contexto em que se coloca de forma nova a pergunta: que música é apta para a Igreja? Como fundar teologicamente esses critérios? Sabemos que todos os reformadores tomaram uma posição quanto ao lugar da música nas novas configurações eclesiais. Zuínglio declaradamente hostil, Calvino restritivo, Lutero tolerante. A posição de Lutero merece atenção, uma vez que, para além do canto para as assembleias cristãs, ele encoraja o compositor, na sua liberdade e responsabilidade, a criar «música nova», segundo as capacidades disponíveis. A classificação de Praetorius enraíza-se numa tradição em que o atributo musica sacra não impõe limites estritos aos idiomas musicais. Neste terreno, o adjetivo sacer não veicula uma ideologia acerca dos limites da expressão musical no lugar cultual, celebrativo e rememorativo cristão. Isso não quer dizer que, sob o ponto de vista composicional, não se possa descobrir, nesta música, qualidades próprias, marcadas pelas diversas tradições de música ritual, pela sintaxe da ação litúrgica, pela expressividade própria dos textos, pelas representações religiosas predominantes (pensemos no pietismo luterano), ou até pelas possibilidades arquitetónicas dos espaços (recordemos G. Gabrieli). No campo da Contra-Reforma, mesmo se identificamos uma luta pela determinação do que é admissível nos ofícios litúrgicos, essa disciplina visa sobretudo um ordenamento que dê primazia à inteligibilidade do que se canta, conduzindo, com frequência a conceções decorativas ou funcionais dos recursos musicais. Mas esta opção acabou por favorecer um itinerário de reabilitação da chamada prima prattica (ou stile antico). O reformismo de Trento, visando a conservação de uma delimitação pragmática da música para a liturgia, não deixará de ter como consequência segunda a canonização de modelos estilísticos. Se esses modelos se legitimam, em primeira linha, numa ordem pragmática – para responder à forma como se ordena a ação litúrgica -, abrirão caminho, também, a uma ideologização do conceito de musica sacra.

Os movimentos restauracionistas, que se afirmarão a partir do final do século XVIII – curiosamente, atravessando tanto o campo protestante como o católico –, irão desenvolver uma argumentação «intransigente» que pretende codificar a «santidade» da música em determinados recursos estilísticos – o «cecilianismo» é o movimento mais conhecido. Em certas tradições religiosas encontramos um regime logocrático, em que a língua das Escrituras adquire uma autoridade revelacional insubstituível – desqualificando a tradução. No contexto destes movimentos, estaríamos perante a ideia de que um determinado idioma musical, a partir das suas qualidades estilísticas, teria uma «santidade» necessária, uma inata qualidade de transparência para o transcendente. De facto, se contextualizarmos historicamente estes dinamismos no século XIX, observaremos que eles são o veículo de um programa mais vasto, implementado pelas instituições religiosas da Europa moderna: a luta pelo restabelecimento de uma certa ordem moral e religiosa num mundo que vivia uma amplíssima mudança civilizacional. Michel de Certeau apelidou esta mudança de estilhaçamento do cristianismo objetivo – o fim da articulação estrutural entre a experiência pessoal do crente e a experiência social da comunidade através da Igreja enquanto «corpo de sentido». Tal transformação não poderia deixar de ter consequências nos processos de «catalogação».

Quando hoje os programadores falam de «música sacra», todas as ambiguidades da história moderna do conceito regressam. Estamos a falar de um reportório catalogado como tal pelo seu uso, de uma música canonizada como tal pelas instituições religiosas, ou ainda, numa outra aceção moderna (já desde Herder), perante música que apela à experiência indistinta de abertura do homo religiosus a uma transcendência, que não precisa sequer de ser nomeada? Talvez se possa suspender temporariamente essa categoria. Isso não significa que tudo vale, mas antes que não está tudo dado. Essa suspensão teria uma particular legibilidade cristã. Recorde-se que o cristianismo cresceu nos circuitos não religiosos do mundo da romanidade – da casa à escola -, usando uma língua comum, evitando o vocabulário sacral, renunciando aos dinamismos que fariam das comunidades cristãs grupos de «separados». Não espanta que alguns intelectuais romanos vissem nesta nova vaga um tendência irreligiosa. Quanto à música, ficaria com o aviso de Jean-Yves Hameline: se o atributo «sagrado» faz algum sentido, do ponto de vista cristão, será quando qualifica os que dão voz e corpo a essa criação sonora.

 

*CD Vento, Sete Lágrimas, Arte das Musas, 2010

 

Alfredo Teixeira
Faculdade de Teologia, Universidade Católica Portuguesa
© SNPC | 10.06.14

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