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Música

Por uma escuta plural: A Missa de Pentecostes de João Madureira

«Quando chegou o dia de Pentecostes, os Apóstolos estavam todos reunidos no mesmo lugar. Subitamente, fez-se ouvir, vindo do Céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam. Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem.» (Act, 2,1-4)

 

Este projeto

Quando fui convidado pelo P. José Tolentino Mendonça para compor uma missa de pentecostes integrada no "Diálogo Arte contemporânea e Sagrado", um projeto espantoso com intervenção de artistas de diferentes áreas a decorrer na Capela do Rato, não hesitei em aceitar este desafio. Desde logo, a ideia de composição de uma missa constitui uma oportunidade para integrar o nosso presente estético musical na leitura de um texto sagrado. E esta relação é uma relação com dois sentidos: procuramos testemunhar o que sentimos face ao texto, ao mesmo tempo que o texto nos interpela na capacidade que temos de estabelecer um discurso estético referente a este lugar, a este tempo em que vivemos. Por isso, este projeto é importante não apenas na vivência religiosa strictu sensu, mas também abarcando um horizonte cultural mais vasto que é o da construção social e comunitária, onde o religioso tem um lugar natural. A composição desta missa é, portanto, um projeto aberto, pensado para uma função cívica. Na génese deste desafio estão condições excecionais de trabalho que gostaria de referir. Por um lado, o contexto em que se celebrou esta missa, no espaço em que aconteceu (a Capela do Rato), e o seu lugar num programa alargado que faz dialogar a arte contemporânea com o sagrado, mercê da iniciativa do P. Tolentino Mendonça e da abertura da comunidade da Capela do Rato. De facto, o acolhimento que esta missa teve foi inexcedível, o que fez com que as condições do meu próprio trabalho de composição fossem excecionais. Por outro lado, o consort de música antiga e contemporânea Sete Lágrimas, que aceitou o desafio de estrear a missa no dia de Pentecostes, motivou o meu trabalho pela enorme qualidade dos seus intérpretes, e pela atitude de grande colaboração desde o início do projeto. Finalmente, a propósito da edição da missa em CD, o trabalho excecional da produtora Arte das Musas é algo que não quero deixar de realçar. A minha colaboração artística com os Sete Lágrimas data do projeto Silêncio (2009), que reunia três compositores cristãos, de diferentes confissões religiosas: ortodoxa, protestante e católica. Criou-se desde então uma relação artística de enorme confiança e apreço mútuo, que permitiu a colaboração neste projeto. Penso que a iniciativa "Diálogo Arte contemporânea e Sagrado" é uma iniciativa inédita, que provou uma enorme recetividade por parte da comunidade da Capela do Rato, atraiu novos homens e mulheres a este espaço, relançou o debate sobre a cultura na nossa sociedade e confirma uma nova relação entre a Igreja católica e os agentes culturais. Neste momento de sucesso do projeto não queria deixar de elogiar a coragem necessária para que esta iniciativa fosse levada a bom termo.

 

Esta missa

O facto de se tratar de uma missa de Pentecostes motivou a integração de uma pluralidade de linguagens musicais e, naturalmente, do ordinário comum da missa, num espaço cultural mais vasto, em que testemunhos de escritores de origens várias e épocas diversas se podem abraçar - testemunhos de vários homens e tempos que são revisitados como forma de melhor entendermos o tempo que é o nosso e a humanidade que somos. Esta missa procura uma revisitação do património musical religioso, confrontando-o com outros lugares culturais e vivenciais. Por isso, recuperei a tradição gregoriana, com o latim que lhe é próprio, procurando confrontá-la com textos poéticos, além das orações próprias da liturgia de pentecostes. A presença do latim - neste caso, o latim ibérico, com as suas diferenças de pronúncia face ao latim italiano - foi para mim muito importante, não por motivos puramente estéticos, mas porque a partir dessa inclusão poderíamos olhar o português dos poemas e a sua mensagem de uma outra forma; para além disso, revisitar na língua latina o que usualmente dizemos em português na liturgia hoje em dia será um modo de atentarmos à própria oração sob uma outra perspetiva, pelo estranhamento (brechtiano) que esta opção constitui. Finalmente, o facto de esta missa ser composta para uma formação com instrumentos antigos permitiu contornar uma identidade cronológica excessiva: a viola da gamba de Sofia Diniz e a tiorba de Hugo Sanches são, juntamente com o timbre dos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, identidades claramente ligadas à música antiga, e que convocadas para a interpretação de uma obra contemporânea não deixam, por isso, de poder olhar de fora essa mesma obra em que participam, a partir de um lugar que se quer fora do tempo e por isso mesmo capaz de abarcar a multiplicidade estética a que se propõe esta missa.

A primeira decisão composicional desta missa foi, sem dúvida, a inclusão de poesia portuguesa, que, plasmada sobre o ordinário comum da missa, não o comprometesse formalmente, mas antes pudesse funcionar em diálogo com o mesmo. A segunda decisão foi a de excluir o Credo dos números cantados, permitindo então que ele fosse a porta aberta para a participação da comunidade nesta missa. A missa estrutura-se, pois, de forma a que poemas de Teixeira de Pascoaes (1877-1952), de José Augusto Mourão (1947), de Maria Gabriela Llansol (1931-2008), de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e de Mário Cesariny (1923-2006) possam alternar, se bem que de modo não demasiadamente previsível, com momentos em que o latim é a língua cantada. Na escolha dos poemas foi muito importante o facto de pertencerem a diferentes épocas e momentos estéticos da nossa literatura. A sua escolha também foi norteada por um critério temático, onde poemas que se possam ler à luz do espírito de pentescostes (como é o caso de Teixeira de Pascoaes e de José Augusto Mourão), não deixam, por isso, de poder ser encarados sob uma luz mais vasta. Por seu turno, as vozes poéticas que não tematizam o pentecostes também merecem ser lidas à luz desta celebração litúrgica, no seu contexto mais restrito. A escolha dos poemas obedeceu à ideia fundamental de se criar um contraponto face à liturgia presente nos outros números. Estes poemas tinham, pois, de ser vincadamente heterogéneos face ao ordinário da missa. São poemas "mundanos", como diz Cristiana Vasconcelos Rodrigues no texto apresentado no lançamento do CD Vento.

«Mundanos são estes poemas, intrinsecamente mundanos. E no contexto religioso em que são lidos, cantados, nem por isso a sua diversidade se dissipa, pelo contrário, os textos trazem consigo um universo de referências que, reciprocamente, confere à festa do Pentecostes uma riqueza acrescida, sediada na palavra, no mais caro dom humano que é a fala. Todos estes poemas tornam presente nesta missa, antes de mais, a paisagem e os seus lugares: o céu, o mar, a flor, a noite, a luz e o amanhecer, o jardim, o vento, a estrada. A face visível do mundo. Trazem, também, a medida do infinito, e propõem uma entrega a esse infinito [...]. Um infinito feito das forças do mundo, de afetos e de vida, da imanência pura que atravessa todos estes textos.»

Mas são também poemas que, na sua exaltação do lado mais mundano da vida, apontam para um horizonte que lhes é exterior. É nesta sua ambivalência que reside o seu fascínio. Uma ambivalência que não é resolúvel, nem tem que o ser.

A "Missa de Pentecostes" representa um lugar muito querido e particular na minha produção musical. E uma obra que não é, na minha opinião, vanguardista ou conservadora, tradicionalista ou experimentalista. Procura outro caminho, fora das dicotomias da modernidade, e nesse sentido poderia ser considerada como pós-moderna. É uma obra fragmentária que não lamenta a sua condição, é um todo que não confia numa identidade genética de matérias para garantir a sua verdade. É uma obra que recusa academismos e não procura restaurar ou reintegrar, mas resgatar, reencarar e reescutar sem temer quaisquer interditos estéticos. Pretende-se encarar a tradição numa dimensão em que o peso da sua memória não está presente; por seu turno, o olhar contemporâneo sobre esta tradição - leve de memória - também não se deixa tolher por imperativos estéticos, igualmente pesados. É uma obra que usa materiais tradicionais (tonais e modais) sem, contudo, os usar de forma convencional. Quanto a mim, aliás, não faz sentido qualquer tipo de interdição em relação ao uso de determinado tipo de objetos na composição musical. O que me interessa é a relação entre esses objetos e não a consideração de cada objeto em si mesmo. Por isso, não hesito em usar tríades, quintas perfeitas ou outros objetos de outras linguagens, de outras épocas, ou de outras culturas. Na verdade, não concebo a minha composição isoladamente de todo um reportório cultural mais vasto, que existe e pede uma relação intertextual e dinâmica. Como também não concebo a minha produção musical como um todo em que cada parte obedece a um núcleo central restrito de princípios fundamentais. Prefiro pensá-la enquanto constelação, e gosto de rejeitar qualquer conceção evolutiva da minha produção, em que cada momento surge como confirmação ou desmentido do momento anterior. Procuro um todo de várias "linguagens" particulares, naturalmente ligadas entre si pela sua intenção expressiva, e não pelos recursos técnicos utilizados. Isto implica um novo olhar sobre o conceito de "linguagem musical": tonalismo, modalismo, pantonalismo, dodecafonismo, serialismo, minimalismo e espectralismo, sendo então apenas modos particulares de articulação de uma mesma expressão que a todos está subjacente. Não defendo uma coexistência inconsequente de mundos opostos, mas considero que mundos classificados como inconciliáveis são apenas faces complementares de um mesmo objeto que, de resto, não faria sentido sem a presença de todos os seus componentes.

A "Missa de Pentecostes" é um lugar em que se procura interrogar a tradição gregoriana através das práticas da música contemporânea - e vice-versa. Revisitar a música medieval. Recontextualizar as tradições populares, abraçar a tradição tonal, abrir portas a momentos marcados pela herança da música espectral... É um discurso musical aberto, em que cuidadosamente se evita a supremacia de qualquer linguagem sobre outra, ou, nas palavras de Cristiana Vasconcelos Rodrigues, «um discurso que se fragmenta por intensidades, no momento em que são cantadas e se confrontam entre si. Uma missa desmembrada, feita de intensidades fragmentárias, espelho da contemporaneidade estética, mas também ética». Assim, esta missa não é nenhum ponto de partida estético, nem nenhum ponto de chegada da mesma ordem - também não é um ponto de viragem, é um lugar pertencente a uma constelação maior. E se o episódio do pentecostes é um momento de festa da linguagem, ao mesmo tempo que representa a consagração de uma mensagem superior e independente de cada uma dessas línguas, também nós vivemos, neste começo do séc. XXI, um momento muito particular, no contexto da cultura musical ocidental, em que assistimos à coexistência de um número aparentemente ilimitado de diferentes expressões musicais. Este momento tão particular e tão aparentemente conturbado é, para mim, um momento privilegiado da cultura musical ocidental, ou, se quisermos, da cultura musical universal. Porque, neste contexto múltiplo, surge a oportunidade de encarar cada uma destas expressões enquanto parte de um todo maior que se intui na expressão particular de cada uma delas, e também na fricção que a sua coexistência provoca.

 

Este tempo

O século que acaba de passar foi palco de uma enorme explosão de ex­pressões artísticas nos seus primeiros anos, testemunhou duas guerras mundiais, assistiu ao baby boom, ao advento em larga escala da cultura e da música popular, ao nascimento da internet, e à eclosão de uma profusa tele­visão sem hierarquia possível. Consequentemente, e citando Paulo Pires do Vale sobre a sociedade do espetáculo dos nossos dias, «deparamos, na atual conjuntura cultural, com uma dificuldade dramática na distinção de antino­mias clássicas: superficialidade / profundidade; verdadeiro / ficcional». Que lugar, pois, para a música contemporânea e os seus públicos minoritários, e ainda mais para uma música contemporânea religiosa? Aparentemente, nenhum, ou pelo menos muito exíguo!

E, no entanto, a música religiosa parece agora reaparecer numa maior escala, embora nunca tenha estado totalmente arredada da produção musical do século XX (basta pensar em Olivier Messiaen e na posição absolutamente decisiva que este compositor ocupa na música do século XX). Penso, por exemplo, em Sofia Gubaidulina (Rússia), para quem a experiência religiosa representa uma face fulcral no seu processo criativo, mas também em nomes como Wolfgang Rihm (Alemanha), Arvo Párt (Estónia) e Osvaldo Golijov (Argentina). Ou, entre nós, em Eurico Carrapatoso, João Pedro Oliveira, e Ivan Moody, entre outros. De resto, se pensarmos na espiritualidade numa perspetiva mais abrangente e vasta, não poderíamos deixar de incluir nomes como Giacinto Scelsi (Itália) e Helmut Lachenmann (Alemanha), para nomear apenas alguns. A verdade é que, para um número significativo de compositores e artistas contemporâneos, a questão do espiritual na arte continua a ser de importância primeira, mesmo que isso não signifique que obedeçam a uma confissão religiosa. Mas se o ressurgir de uma arte religiosa se deve a um maior interesse por parte da Igreja e a uma vontade explícita do virar de página no divórcio com a criação artística, a verdade é que a dimensão autorreflexiva da arte, que foi tantas vezes patente na produção do nosso século, foi dando lugar a uma nova vontade de expressão sobre a realidade que a envolve e naturalmente sobre a dimensão espiritual da vida humana. Porque, e citando o P. Tolentino Mendonça, «tal como a fé, a arte tem um sentido de procura para a vida» ou, recordando palavras de Bento XVI, «tanto a arte como a religião partem da ferida, de uma ferida semelhante: a interrogação. Nesse sentido, acabam por iluminar-se mutuamente. Ambas são formas de demanda, formas de nomadismo». Por isso, se questionado sobre a existência de espaço para uma ars sacra, respondo afirmativamente. E sim, uma ars sacra independente da enorme força dos meios de entretenimento dos nossos dias. Mas também plenamente integrada na produção artística do nosso tempo. Porque o espaço religioso, tal como o entendo, é sobretudo um lugar de encontro. É um testemunho de fé, mas é também parte inextricável da produção cultural do seu tempo. E, se não hesito em reconhecer, com Rui Chafes, «a importância de princípios à partida conservadores, defendendo o oculto, o mito e o ritual como experiências humanas cruciais», tal não se deve à minha condição de cristão e católico, mas à conceção que partilho com tantos outros da experiência de vida que nos é comum.

 

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João Madureira
22.01.12 | Atualizado em 04.06.14

Capa do CD







































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