Vemos, ouvimos e lemos
DVD

Rever "O Grande Silêncio"

Foi para filmes como este que se inventaram as palavras “fenómeno” e “experiência”: um documentário de quase três horas, sem narração e praticamente sem diálogos, sobre o quotidiano dos monges do mosteiro da Grande Cartuxa em Grenoble, nos Alpes Franceses.

“Experiência”, porque – à imagem dos monges que, ao entrarem no convento, se recolhem a uma vida de silêncio e oração quebrada apenas pelas refeições comunais semanais e pelos cânticos gregorianos diários – este filme existe numa esfera fora do mundo tal como o conhecemos, recusa terminantemente as convenções habituais do cinema linear ou narrativo em favor de uma experiência puramente audiovisual sensorial (embora exista um ténue fio narrativo ligado ao correr das estações).

“Fenómeno” porque a última coisa que alguém esperaria seria que “O Grande Silêncio” se tornasse (à sua escala) num êxito de bilheteira um pouco por todo o mundo, junto de públicos tão distintos como os católicos praticantes que raramente vão ao cinema ou um público de massas atraído pelo olhar para dentro de uma das instituições religiosas mais eremitas do mundo.

Evidentemente, existiu também um certo fenómeno de “moda” semelhante ao enorme sucesso comercial dos cantos gregorianos há alguns anos – mas sente-se à distância, no próprio radicalismo com que o documentarista Philip Gröning aceitou as condições impostas pelos monges caruxos para rodar no mosteiro após quase 20 anos de espera (ausência de comentário, narração, depoimentos e música), que o sucesso de “O Grande Silêncio” foi um daqueles acasos motivados pela singularidade do filme em si e do seu contraste com a paisagem cinematográfica à sua volta. Ajuda muito, evidentemente, o extraordinário picturalismo visual que Gröning manifesta – rodando em digital de alta-definição ou em super 8 exclusivamente com luz natural, alinhando os seus longos planos fixos num ritmo lento e descontraído que dirige o olhar do espectador para lá da mera beleza pictórica da imagem ou do enquadramento e traduz em cada momento a simplicidade sedutora deste modo de vida austero e asceta (e um dos «leit-motivs» do filme é precisamente a “sedução” do amor a Deus).

Se, no escuro do grande ecrã, "O Grande Silêncio” impõe esse seu próprio universo, no recanto caseiro do DVD, com as possibilidades de interrupções, a coisa poderia fiar mais fino – mas, surpreendentemente, a estrutura “episódica” do filme, onde cada quadro forma parte de uma narrativa maior mas existe também enquanto elemento autónomo, garante-lhe uma sobrevivência quase intacta no pequeno ecrã, muito ajudada pela impecável transcrição de imagem.

A edição prolonga com extrema inteligência o gesto austero e radical do filme e a recusa da velocidade furiosa do mundo moderno, com um segundo disco de extras inteligentemente concebido e repleto de informações contextualizantes, mas onde todos os proverbiais elementos que se esperariam de uma “edição de coleccionador” surgem radicalmente repensados. Prolongando o “grande silêncio” do título, não há em nenhum momento comentários áudio ou palavras do realizador: o «making of» é uma colagem de documentos em texto (que vão da sinopse originalmente apresentada por Gröning à Grande Chartreuse em 1984 às notas trocadas com os monges no mosteiro para combinar rodagens e ao próprio caderno de apontamentos do realizador), em fotografias fixas e curtos «clips» em super-8. Toda a informação contextualizante sobre os cartuxos é apresentada em textos, imagens e gravuras de época, para serem degustadas pelo espectador a seu bel-prazer e ao seu próprio ritmo. E tudo se completa com cinco blocos de imagens inéditas não incluídas no filme (chamar-se-lhes-iam “sobras” se a palavra não tivesse uma conotação de “resto” que nada tem a ver com o modo cuidado como são apresentadas, ou “cenas cortadas” se a frase não designasse habitualmente momentos eliminados da montagem por uma questão de tempo), num total de mais de hora e meia de material adicional.

Aqui entre nós, é capaz de passar por este DVD o verdadeiro espírito da quadra.

Filme: 4/5 | Extras: 4/5

 

Artigos relacionados:

Entrevista a Philip Groning, realizador de "O Grande Silêncio", aquando da visita à Cartuxa de Évora

Viagem à casa dos "últimos homens que sabem escutar"

Livro de Horas do Convento da Cartuxa

"Trailer" do filme "O Grande Silêncio

Jorge Mourinha

in Público, 28.12.2007

Publicado em 31.12.2007

 

 

Topo | Voltar | Enviar | Imprimir

 

 

barra rodapé

Capa do DVD


O Grande Silêncio

Realizador
Philip Gröning

Distribuidora
Atalanta Filmes

Duração
162'

Ano
2005

Preço
€ 20,00

Outras informações
2 discos
16/9 compatível com 4/3
Legendas em Português

Edição mais recente do ObservatórioOutras edições do Observatório
Edição recente do Prémio de Cultura Padre Manuel AntunesOutras edições do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes
Quem somos
Página de entrada