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Via pulchritudinis

[…] a dor [é] sempre necessária para se produzir alguma
coisa de belo […]. Num grito existe sempre viva uma porção
de beleza. Da cova nascem coisas materiais, formas, árvores,
nuvens – da dor a beleza absoluta. […]

Raul Brandão

 

O mundo do Isso é coeso no espaço e no tempo.
O mundo do Tu não é coeso nem no espaço nem no tempo.
Tem a sua coesão no centro em que as linhas prolongadas
das relações se intersetam: no Tu eterno.

Martin Buber

 

Valerá ainda a pena falar de beleza quando se quer abordar a arte nas suas múltiplas expressões contemporâneas? A fealdade impôs-se e impõe-se ao pensamento e aos artefactos que dele nascem pelo usufruto de uma competência técnica. “Escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro”… e depois de Auschwitz, depois de Katyn, depois de Tiananmen, de Srebrenica, de Manhattan, de Alepo também… Quem diz escrever um poema, diz pintar um quadro, esculpir uma figura, realizar um filme, coreografar uma dança, compor uma peça musical… Conhecendo o lamento registado por Theodor Adorno, devemos entender que toda a arte nascida depois de 1945 resulta, de alguma forma, do confronto com o horror e com a afasia que ele instituiu na espécie humana, ora negando-os, ora ignorando-os, ora exprimindo-os com não pouca angústia, ora tentando redimi-los ao propor vias alternativas. A ponderação futurante deste devir decerto nos auxilia no entendimento do que tem sido a arte até à nossa contemporaneidade e do que poderá vir a ser. O filósofo tem alguma razão: são bárbaros os tempos em que vivemos (e nem vale a pena explicar porquê). Somos no entanto incitados, obrigados pelo sentido de dever à expressão do nosso testemunho e do pensamento que nos vai fazendo humanos, da nossa catábase e da nossa eventual redenção. Daí resultam produções imperfeitas, estrangeiras, estranhas – porque o trabalho se desenvolveu em ambiente selvagem ou estéril, inculto (barbarus). Tarefa tantas vezes ingrata, é certo, mas necessária. O que observamos por aí são ainda e tão só estilhaços de uma explosão existencial que não devemos situar apenas no terror espalhado pelo regime nazi, mas num tempo longo que o antecedeu e lhe sucedeu. Estamos ainda nele e não sabemos quando dele sairemos, se dele sairmos sem ser pelo fundo. Vivemos em crise, talvez há demasiado tempo. Dos paradigmas anteriores restam pequenos fragmentos; foram em grande parte pulverizados e não há meio de outros se instituírem. O cenário foi bem descrito por Umberto Eco; se um investigador do futuro quiser historiar esta época, “nunca poderá identificar o ideal estético difundido pelos mass media do século XX em diante. Deverá render-se perante a orgia de tolerância, diante do sincretismo total, do absoluto e imparável politeísmo da Beleza”. Tem no entanto de saber que “Nenhuma consciência da relatividade dos valores estéticos elimina o facto de reconhecermos sem hesitações o feio e não conseguirmos transformá-lo em objeto de prazer. […] malgrado o otimismo de alguns metafísicos, há neste mundo algo de irredutível e tristemente maligno”.



Não existe uma verdadeira apreensão da beleza nas expressões artísticas sem um combate duro na sua pesquisa, na sua descoberta, na sua (re)produção e na sua receção atenta



Um olhar menos informado ou mais ingénuo lembrar-nos-ia de que, num mundo assim, o belo e o feio são relativos ou, mesmo, secundários. Concordaríamos se nos agarrássemos à semântica que o vulgo, mesmo erudito, atribui aos conceitos que, ainda assim, se apresentam como palimpsestos milenares. Bastaria lembrarmos a dimensão catártica assumida na Antiguidade por algumas formas artísticas para entendermos que as distâncias entre a beleza e a fealdade nunca foram assim tão grandes. É no entanto preciso estar atento àquilo que Sigmund Freud, pensador judeu que bem conheceria os ditos do Zohar relativos à polissemia, afirmou sobre os vocábulos. Notando que nos sonhos uma coisa pode significar o seu contrário, percebeu que tal resultaria do “caráter regressivo e arcaico da expressão do pensamento”. Tomando como suas as conclusões do linguista K. Abel, também ele reparou que nas línguas antigas existia um número apreciável de palavras com duplo e oposto sentido. Convém, portanto, aquilatar etimologicamente cada um dos vocábulos, como nos ensinaram os melhores mestres. Se assim fizermos, repararemos que ao lado do adjetivo bellus (lindo, encantador, elegante, amável, delicado) está o nome bellum (guerra, combate, batalha); de braço dado com o adjetivo foedus (feio, horroroso, repugnante, repelente, sujo, imundo, vergonhoso, indigno, criminoso) anda o nome foedus (união, associação, ligação, lei, regra). Vistos por este prisma, o belo e o feio não são relativos, mas correlativos – termos que de algum modo se podem comutar ou completar, se os lermos em função da lógica cumulativa das línguas semitas que estão na sua origem profunda. Não existe, por conseguinte, uma verdadeira apreensão da beleza nas expressões artísticas sem um combate duro na sua pesquisa, na sua descoberta, na sua (re)produção e na sua receção atenta, tal como não existirá neste domínio uma manifestação autêntica da fealdade sem provocar incómodo e sem uma proposta, ainda que subtil, de recomposição ou transformação do ser, rumo a uma religação consequente. O contrário disto chama-se indiferença, apatia ou espetáculo – ou seja, cessação manifesta ou latente do processo comunicativo da arte.



Ao estarmos cientes de quão difícil ou impossível é conceber e/ou delimitar a pulcritude (sendo inefável e por vezes inexprimível como é), vamos pelo menos intuindo que ela transcende o belo, o feio e até o sublime, acolhendo-os, gerando-os e/ou englobando-os.



A beleza diz-se kálon na língua grega. Se tivermos em conta o significado desse termo helénico, perceberemos que a dimensão estética e a dimensão ético-moral aí não se separam, indo muito além das expressões ditas artísticas. Aprofundando e estudando as origens mais antigas do vocábulo, perceberemos que a beleza moral e física, assim designada, nasce de um consenso comunitário, sendo olhada como altitude cívica. Não se trata apenas de um ornamento, mas sobretudo de uma via de concórdia onde se podem vislumbrar a leveza, a resistência e também a flama. Da semântica dessas raízes não se ausentam, todavia, os perigos. Se algumas radicam o vocábulo no som, na voz, na notícia e no relato, outras existem lembrando que a sua força pode ser destruidora, levando à queda e à submersão. Já pulcher, que traduz kálon em latim, leva-nos a pensar no quão distintos podem ser dois termos correlatos. Devidamente considerado na sua etimologia, nele se veem relacionados o milagre, o maravilhoso, o extraordinário e o estranho com o encontro, o ditado, a recitação, a convocação e a invocação (que bem pode ser prostração), mas também um trabalho que pode exprimir a mais profunda inquietação e o mais intenso temor. (Dir-me-á o leitor que abuso dos termos. Lembro-lhe, com Almada Negreiros, que ainda não é este o tempo de inventar palavras, mas de reinventar as palavras que já foram inventadas, porque a inventio é descoberta.)



O sublime consiste num esconjuro dos limites e o artefacto, se quer ascender realmente a obra de arte, tem de contrapor-se às múltiplas convenções da sociedade, subvertendo-as se necessário e tornando-se assim numa fonte da inquietante estranheza (unheimlich) que nasce de algo que nos perturba porque deixou de ser familiar ou ainda não o é



Não é fácil, como se vê, definir a pulcritude. Platão teve consciência dessa dificuldade e expressou-a, ao lembrá-la no final de Hípias Maior através de um provérbio grego. Sabemos, todavia, que a arte (ars) surge como processo, habilidade, técnica, ciência, talento ou virtude que, por múltiplas e paradoxais vias, nos encaminha até à “pulchritudo tam antiqua et tam nova”, que se tornou centro e motor de toda a filosofia de Aurelius Augustinus. Ao estarmos cientes de quão difícil ou impossível é concebê-la e/ou delimitá-la (sendo inefável e por vezes inexprimível como é), vamos pelo menos intuindo que ela transcende o belo, o feio e até o sublime, acolhendo-os, gerando-os e/ou englobando-os. Referindo-se ao todo, o kálon, visto enquanto pulcritude à maneira augustiniana, não nos isenta do confronto com a maldade e com o maligno, nem com as suas múltiplas consequências. Não nos protege. Ainda que não descortinemos nem entendamos as causas do mal, somos talvez espicaçados por essa manifestação tenebrosa para que tenhamos a coragem de expô-lo, seja ele etapa ou gangrena. Uma arte que abrace essa tarefa magna num mundo como o nosso – mergulhado no desconcerto e na violência por vezes extrema, desorientado no meio de todas as manipulações –, não deixará de originar produtos que abandonem as tradicionais categorias de beleza e fealdade, instituindo a sua forma e o seu conteúdo nos campos do sublime e da perturbação. O claro/escuro está no cerne das expressões artísticas verbais e não-verbais que, sendo cordilheira, tanto alcançam a luz jubilosa e salvífica do dia quanto a profundidade infernal e dolorosa. O sublime consiste num esconjuro dos limites e o artefacto, se quer ascender realmente a obra de arte, tem de contrapor-se às múltiplas convenções da sociedade, subvertendo-as se necessário e tornando-se assim numa fonte da inquietante estranheza (unheimlich) que nasce de algo que nos perturba porque deixou de ser familiar ou ainda não o é. Se, para o homem clarividente, o negrume que assombra a existência é a mais grave causa de um sentimento tenebroso, para os seres que vivem na floresta do alheamento há lâmpadas incandescentes que incomodam muito mais. Essa é, sobretudo, a função da pulcritude feita poema, narrativa, pintura, escultura, filme, peça musical, bailado ou obra arquitetónica: inquietar-nos, provocar-nos, espicaçar-nos, tirar-nos da apatia e do conforto, convocando-nos para um caminho melhor.



Nenhum utensílio, por mais artísticas que sejam as suas formas, merecerá maior consideração social do que aquela que lhe é garantida pela sua utilização. Quando a utilidade se vai e não vale a pena a reciclagem, a lixeira (tenha a forma sedutora que tiver) será o seu destino. Quem diz descarte pode dizer mesmidade, estagnação ou ramerrame.



Será no entanto isto que digo possível na sociedade contemporânea? Não padecerão as minhas palavras de um irremediável anacronismo? Muitos artistas, no nosso tempo, são apenas produtores de objetos que estimulam o desejo ou a irrisão. Vamos assistindo a uma lenta erosão da beleza, da sublimidade e mesmo da fealdade. Se pensarmos na miríade de obras de arte que ocupam o espaço público, a maioria não se assume no âmbito de uma autonomia ôntica nem sequer como prolongamento vital do ser ali expresso. Tirando algumas exceções, quase sempre subterrâneas, são apenas coisas, issos que dispensaram uma identidade própria, garantida pelo recurso à imaginação criadora. Deixaram até de ser imagens especulares para se tornarem tão só formas degradadas de espectros que prescindiram da manifestação vivente, não passando de simulacros cujo valor intrínseco não vai muito além da sua cotação no mercado ou do seu papel instrumental numa sociedade em que o espetáculo, o consumo e o lucro são vértices de um triângulo invertido, diabólico. Ainda há resquícios no olhar hodierno sobre o objeto artístico da sã doutrina que considerava as suas qualidades como manifestações de uma finalidade sem fim, de uma universalidade sem conceitos, de uma regularidade sem lei e de um prazer ou júbilo sem interesse (Kant). A balança está no entanto desequilibrada, pesando cada vez mais o prato onde se veem colocando os proventos mercantis, sociais ou individuais que decorrem da venda ou da difusão de produções que se vão tornando, sobretudo, utensílios incapazes de gerar uma salvaguarda, tal como foi concebida por Heidegger. Longe vão as angústias de um Frenhofer, personagem de Balzac em que se viram espelhados Cézanne e Picasso…



As descobertas alcançadas pelas vanguardas históricas nas artes visuais, na literatura, na poesia, na música e noutras expressões artísticas foram muito importantes porque não tiveram receio de ser pampilhos que espicaçaram a humanidade, pondo em causa os paradigmas dessorados que já não correspondiam ao devir da espécie, à sua evolução espiritual, aos seus anseios e aos seus dramas



Se nem todos os artefactos merecem ser obras de arte. Nenhum utensílio, por mais artísticas que sejam as suas formas, merecerá maior consideração social do que aquela que lhe é garantida pela sua utilização. Quando a utilidade se vai e não vale a pena a reciclagem, a lixeira (tenha a forma sedutora que tiver) será o seu destino. Olhado assim, o cenário não é animador, não sendo difícil vislumbrar o descarte da criação, da criatura e do criador como nuvem tóxica e corrosiva que cobre e ameaça este amplo território. Quem diz descarte pode dizer mesmidade, estagnação ou ramerrame. As descobertas alcançadas pelas vanguardas históricas nas artes visuais, na literatura, na poesia, na música e noutras expressões artísticas foram muito importantes porque não tiveram receio de ser pampilhos que espicaçaram a humanidade, pondo em causa os paradigmas dessorados que já não correspondiam ao devir da espécie, à sua evolução espiritual, aos seus anseios e aos seus dramas. Replicá-las hoje em dia significa, no entanto, sobrecarregar o planeta com produtos conformistas e publicitários que não passam de instrumentos usados pelos tentáculos desse polvo chamado finança.

Num tempo como este, valerá a pena recuperar um conceito tão arcaico quanto o da pulcritude? Talvez sim, se percebermos que não se trata apenas de uma abstração conceptual, mas de um princípio, sobretudo de um princípio gerador (arkhé). Retomá-lo é reencontrar nessa síntese plena e penosa da humanidade um antídoto contra a desesperança, reabrindo as expressões artísticas ao mistério que garante a autenticidade da nossa passagem pelo mundo. É certo que a arte se tem lançado “por caminhos de tal modo inumanos” que vem abordando “domínios quase infernais”, como notou Jean Guitton. Tenho também de admitir que em muitas obras e artefactos se encontra apenas “o caos, a confusão”, como reparou Giovanni Battista Montini. A releitura incessante e renovada da face inefável e indizível dessa “pulchritudo tam antiqua et tam nova” obriga-nos no entanto a reabrir a arte enquanto arqueografia e arqueologia, chegando à instauração confiante e ao registo humilde no mundo dos seus fundamentos que são pensamento, palavra e ação.



 

Ruy Ventura
Investigador, poeta
In Devir - Revista Ibero-Americana de Cultura, n.º 5
Publicado em 11.09.2018 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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