

Encontramos, em Lucas 22, 42 (versão da Bíblia, dos Capuchinhos), a conhecida frase de Cristo: «Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua» (a versão de Frederico Lourenço, se bem que veicule semelhante sentido, está mais próxima do texto original: «Pai, se quiseres, afasta este cálice de mim; porém não a minha, mas a Tua vontade se faça»).
Este mini-mínimo texto evangélico não poderia ser muito mais simples, e, também, muito mais claro. Todavia, nada de mais profundo existe na história humana universal. Apesar de se encontrar num dos Quatro Evangelhos de Cristo, cristãos por formal definição, nem por isso dizem respeito a algo que se possa reduzir a algo como ‘a esfera cristã’: é um texto acerca do absoluto da decisão, sobre a sua ocorrência em total solidão, sempre (por maiores que sejam as ilusões em contrário – e é grande parte da anedota antropológica moderna).
É o que não surge no texto que assim determina, que assim mostra, fazendo-o de modo irrefutável, a menos de ininteligência, isto é, de recusa de bebida de um cálice que é ‘de amargura’, mas que é, sobretudo, de angústia, sendo, necessariamente, de auto-criação, quer esta seja entendida como prolongamento de um dom divino – caso do grande texto de que é parte –, quer como dom de uma natureza ultimamente auto-ilógica, quer como totalmente ilógica actualidade em absoluta efémera presença.
É a ausência da resposta do Pai, a quem se invoca, que confere a absoluta gravidade antropológica a este momento, assim definidor do que é propriamente o ser humano, não coisa materialóide de adiada cadaveridade (Pessoa bem o pensou), não besta escravizada a vontades de variegados oligarcas e tiranos, mas ato; ato auto-definidor, sem desculpas, sem falsas razões, sem «papá» para substituir o implicado sujeito, para o apaparicar, ou, sequer, acompanhar.
Terrível.
Todavia, este é o momento em que tudo se joga.
Sem este momento, nada faz ou pode fazer sentido (não só na vida e tarefa de Cristo, mas na de todos os seres humanos): para cada ser humano, a seu modo próprio, o seu Natal é nada, a sua Páscoa nada pode ser.
Ora, se Deus se pronunciasse, aplicava-se, precisamente, o mesmo carácter de total ilogicidade a Natal e Páscoa evangélicos. Qualquer palavra ou ato de Deus postos, e o absoluto da grandeza do ato de Cristo, como algo de próprio e irredutível, seria aniquilado. Terrível, repete-se; todavia, absoluto incontornável da humana condição de se apenas ser em possível auto-criação, após o dom inicial, qualquer.
Ou se bebe o cálice ou não.
Não há terceiro item para possível escolha; não escolher é, também, a escolha de não-escolher.
Cada escolha determina o que se é, e determina o que é o todo em que se está. Do grupo humano em inter-relação, à geral ecologia, tudo, decorre desta determinação. Sem desculpas. Sem possíveis mitigações, quando o mal ocorre. Sem alienação de responsabilidade: não realmente, e as ilusões são formas de morte em vida.
Assim, este passo do geral Evangelho não é fundamentalmente ‘coisa religiosa’, mas ‘coisa humana’, realidade humana em ato de construção.
Deste modo, a grandeza ontológica da recompensa dos humanos atos coincide com o ato de beber todos os cálices – ou de não os beber – e com as consequências que de tal decorrem.
Nada mais há.
Nem, sequer, um ‘deus qualquer’, para quem não se consubstancia com o seu cálice, com o seu ‘cálice de cada dia’.
Não há Deus para quem não bebe o cálice.
Para quem bebe, pode sempre acontecer que o Deus silencioso, então, se pronuncie: ‘fizeste bem em beber, filho!; eu, por ti, nunca poderia beber’.
Bêbados do possível bem de Deus ou «cadáveres adiados», que pessoas somos nós?