Sucede nos versos de Sophia de Mello Breyner uma identificação, nem sempre fácil de construir, entre a ética e a estética, pois «a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental da obra poética. (…) A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido» (Sophia Andresen, Livro Sexto, 2003, p. 73-74). Confirma-se assim que toda a formalização artística está atravessada pelo limite entre o cerco do aparecer e o cerco do fechado em si. Ou, como refere Martínez-Pulet, «toda a arte, para ser radicalmente arte, tem de ter essa irredutível ressonância ética» (Martínez-Pulet, Variaciones del limite, 2003, p. 274). Quer dizer, no encontro simbólico do sujeito com a alteridade e a transcendências e esclarecem tanto a ética como a estética. Assim, no centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner, queremos apresentar a sua obra literária como uma busca permanente do ser, da transparência, da verdade e da justiça, consequência de um contacto com a transcendência. E é de realçar que existe uma consonância entre a postura pessoal e a obra poética.
É clara na poesia de Sophia o combate pela liberdade e pela justiça, como bem espelham os seus poemas, com particular incidência os poemas contidos na coletânea Grades. Justiça e liberdade que estão intimamente ligadas entre si, porque a poesia, que é a busca da inteireza, é, «por sua natureza, desalienação, princípio de desalienação, desalienação primordial. Liberdade primordial, justiça primordial. O poeta diz sempre: "Eu falo da primeira liberdade". Dessa unidade fundamental da liberdade e da justiça o poeta formou o seu projeto oposto à divisão» (Sophia Andresen, Poesia e revolução, 1977, p. 77). E «se estamos aqui é como testemunhas da liberdade humana, que é só uma, e que não pode ser sacrificada nem no altar do abstrato das ideologias, nem nos corredores obscuros dos interesses, das estratégias, dos negócios do poder e do dinheiro» (Sophia Andresen, O meu testemunho. A Capital (22 de dezembro de 1983) p. 3.
Se nos primeiros livros se exprime a procura de «união com a natureza», dá-se uma viragem, a partir de Mar Novo, para uma poesia de resistência, em que os temas sociais ganham maior proeminência. A opressão política e a falta de liberdade «arrancam Sophia do seu idealismo altivo um pouco distante, sua musa faz-se profética e acusadora», nas palavras de Eduardo Lourenço (Eduardo Lourenço ,Prólogo, 2004, p. 17). São vários os poemas da coletânea Grades que assumem uma tomada de denúncia e acusação, cujos expoentes máximos são os poemas «Data», de Livro Sexto, onde a palavra tempo é sempre uma palavra de código para substituir a proibida palavra «Regime subjugador e fascista»: «Tempo de solidão e de incerteza / Tempo de medo e tempo de traição / Tempo de injustiça e de vileza/ Tempo de Negação», e o poema «Este é o tempo», de Mar Novo, onde a denúncia da realidade histórica cruel se mantém: «Este é o tempo / Da selva mais obscura / Até o ar azul se tornou grades / E a luz do sol se tornou impura / (…) Este é o tempo em que os homens renunciam», e ainda o poema «O velho abutre», que é dos «mais acusatórios», onde a palavra «sábio» é usada para adjetivar tudo aquilo que contra que combatia, num sistema político cujo máximo representante político é apelidado de «O velho abutre»: «O velho abutre é sábio e alisa as suas penas/ A podridão lhe agrada e seus discursos / Têm o dom de tornar as almas mais pequenas» (Sophia Andresen, Livro Sexto, 2003, p. 68). Foi desta forma o confronto com uma situação de extrema injustiça, de violência e de mentira a que o povo português estava sujeito, por um regime totalitário opressor, que levou Sophia a instaurar na sua poesia um percurso permanente de quem sempre procura o ser, a verdade e a justiça. A procura de rigor, de justiça e de verdade assume-se desta forma como «a espinha dorsal» a obra poética de Sophia. Mas não se trata de tarefa fácil, pois tal missão pode conduzir à própria destruição daquele que luta, bem simbolizada na alegoria da «procelária», que é imagem justa de quem ousa lutar, arriscando-se permanentemente a ser destruído: «Por isso me parece imagem justa / Para quem vive e canta no mau tempo» (Sophia Andresen, Geografia, 2004, p. 17). Sophia de Mello Breyner de facto pagou com o ostracismo e a perseguição esta sua ousadia de denunciar e combater o regime fascista, tanto da dos simpatizantes do regime, através de «malcriações incríveis e calúnias», e da polícia política do Regime, a PIDE (que lhe confiscou alguma da sua correspondência), como da própria família e dos amigos da juventude. Mas a reserva e «luta políticas não partem das ideologias que conduziram ao nosso neorrealismo. Parte, explicitamente, de um empenhamento com o mundo em resultado de uma prática religiosa» (Joaquim Manuel Magalhães, Onde tudo é divino como convém ao real, 1995/96, p. 552), como nos ensina Joaquim Manuel Magalhães. Efetivamente, a experiência do transcendente , em Sophia, sucede essencialmente através do confronto com o olhar dos pobres e dos oprimidos, suscitando no sujeito poético a disponibilidade para a oferta, para o serviço e para o combate, de que é exemplo o poema «Esta Gente», de Geografia: «Esta gente cujo rosto / Às vezes luminoso / E outras vezes tosco / (…) Faz renascer meu gosto / De luta e de combate / Contra o abutre e a cobra / O porco e o milhafre». E no poema «A veste dos fariseus» o pobre assume a figura de Cristo sem poder. Ou em «Os três reis do Oriente», dos Contos Exemplares, é o frente a frente com o rosto de um homem jovem que leva o rei Baltasar a encetar um percurso de recusa da lei, dos deuses, da organização do seu próprio reino e incentivando-o a procurar o altar do deus que protege os humilhados e oprimidos. Por isso, Baltasar, naquela noite, subiu ao cimo dos seus terraços, ao limite do seu mundo e formulou a prece: «Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?» (Sophia Andresen, Contos Exemplares, 1995, p. 117). Tudo isto nos dá a entender que o confronto com o sofrimento e a injustiça coloca o ser humano diante duma situação limite que lhe permite tocar ao de leve numa dimensão transcendente que a natureza só por si não revela. Não existe assim transcendência sem humanidade e que a imanência parece exigir a transcendência. Esta interligação profunda entre imanência e transcendência assume-se como a grande lição de Sophia.