Os números e as razões de um declínio cada vez mais acentuado. O emergir de uma progressiva irrelevância. O risco da limitar-se a uma gestão estéril. Um pontificado, de Francisco, ainda pouco compreendido. Mas também a ideia de um cristianismo a ser realidade do futuro. O convite à criatividade, o “novo” que busca encontrar espaço. No seu mais recente livro, publicado a 1 de abril, o fundador da Comunidade de Santo Egídio, Andrea Riccardi, propõe uma reflexão muito rica e articulada sobre uma transformação religiosa que desafia a comunidade de crentes a não se deixar subjugar pela indiferença e irrelevância. «Penso que estamos a viver uma passagem muito importante, mas também delicada, que nos pede uma libertação do rame-rame de hoje e olhar mais além.» O autor recupera uma pergunta formulada nos anos 70 por Jean Delumeau, que, num pequeno livro, interrogava: «O cristianismo vai morrer?». Hoje, defende o historiador, pode dizer-se que, efetivamente, em algumas regiões do mundo pode mesmo desaparecer, como já aconteceu, por exemplo, em regiões como o Norte de África.
Está a acontecer a mesma coisa na Europa?
Devemos refletir seriamente. Até porque após mais de meio século de opção pela evangelização, que se situava no seguimento do Concílio, deterioraram-se muitos parâmetros de vitalidade do cristianismo. Como explicar o declínio? Há quem pense que o cristianismo se reduzirá a uma Igreja de minoria, muito limitada a alguns âmbitos restritos.
O papa emérito falava de minorias criativas.
Que, porém, são outra coisa relativamente às minorias que resultam de um declínio, aos restos, aos resíduos.
Existem outras respostas.
Há o processo iniciado pelo papa Francisco na marca de um cristianismo de povo. Mas é difícil, hoje, olhar a fundo a crise, negligenciando fenómenos que testemunham como o nosso tempo não é não religioso, mas, pelo contrário, pode sê-lo, e muito. Penso no muito atrativo neoprotestantismo carismático ou da prosperidade, que nós denominamos de seitas, que cresce sobretudo em África, na América Latina e do Norte, como também na Europa.
O cristianismo na Europa produziu o partido político, a democracia cristã?
Hoje, na realidade, a única forma política de catolicismo em campo parece ser a do nacional catolicismo, da Hungria e Polónia, em que a Igreja faz de suporte à identidade nacional. E aqui pesa o grande tema da imigração. Em síntese, existe uma crise, e não vem do exterior: de uma política de laicização ou do comunismo, mas é interna ao cristianismo. Falamos muito de secularização, mas estudou-se pouco o problema de como o mundo global incide sobre a Igreja.
A condição atual vem de longe.
No livro procuro examinar alguns elementos. Por exemplo, a crise profunda dos religiosos e das religiosas, que eram a primeira fila do catolicismo. E as dificuldades em torno aos padres, que dizem respeito também ao seu recrutamento, sobre os quais influi também a crise do masculino. A partir de 1968, o homem na Europa passou de uma condição dominante para ser colocado em discussão: o mesmo acontece para o sacerdote, o professor, o pai. Depois, o desaparecimento do mundo rural, que era um baluarte da Igreja e um reservatório de vocações. E, por fim, devemos perguntar o que significa uma comunidade onde o sacerdote celebra só ocasionalmente a Eucaristia. Os parâmetros vitais foram abalados de maneira impressionante.
Trata-se de ir à raiz destes problemas.
No livro coloco-me muitas perguntas, por exemplo sobre o pontificado de João Paulo II [de quem o autor redigiu volumosa biografia]: foi uma exceção à crise, uma ilusão? Pergunto-me que significado teve a renúncia de Bento XVI e em que medida foi expressão desta crise. E também: o papa Francisco criou uma inversão deste movimento de declínio?
E depois a pandemia.
A grande crise do Covid aguçou e revelou a fadiga da Igreja. A tentação é a de gerir as instituições sem ter uma visão. No congresso de Florença o papa falou de percurso sinodal [em Itália], e durante anos não se fez quase nada sobre isso. É dramático como não se consegue enfrentar a crise.
Evidencia o risco de a Igreja se concentrar no presente para defender as posições que ainda mantém. Em vez disso, é preciso suscitar e libertar energias construtivas. Mas como podem nascer realidades renovadas a partir de um clero envelhecido e de estruturas que se mostram cada vez mais pesadas?
É uma grande questão. Trata-se de olhar a realidade e decidir como orientar-se. Há, por exemplo, o discurso da presença feminina. Não basta colocar mulheres em algumas posições de responsabilidade. Nas nossas igrejas, a paróquia rege-se em larga medida sobre elas, mas ainda no interior de uma estrutura vertical masculina, ainda que fortemente enfraquecida. O clero diminuiu e envelheceu. A questão da transformação da Igreja numa verdadeira comunidade de homens e mulheres está toda por explorar, bem como o tema da paróquia, ainda em larga medida ligada à ideia da territorialidade. E é preciso perguntar-se o que significa a chegada de milhões de estrangeiros, católicos e não. Em plano de fundo, a descoberta da nossa sociedade.
Como assim?
Quando eu era jovem, estávamos numa sociedade parcialmente anticlerical, e em muitos aspetos anticristã. Hoje não podemos dizer que a posição das mulheres e dos homens do nosso tempo, mesmo que não acreditem e não participem, seja de oposição à Igreja. Utilizei a expressão «porque não podemos não dizer-nos cristãos», de Benedetto Croce [flilósofo, historiador e político italiano], que não tinha nenhuma intenção de conversão ao catolicismo, mas prezava-o numa perspetiva também europeia de longo curso. Trata-se de reabrir o diálogo com milhares de posições diferentes, que não são hostis à Igreja, mas decerto não se encontram no seu umbral. Vivemos num tempo estranho: de um lado a Igreja está em declínio, do outro há um ressurgimento do entusiasmo religioso, por exemplo nos movimentos neoprotestantes. Encontramo-nos numa condição de Igreja irrelevante e de um pontificado, do papa Francisco, que em parte não é recebido. Não se trata se organizar iniciativas, que por vezes só servem para cobrir a irrelevância, mas de colocar perguntas. Só se nos interrogarmos é que nos libertamos do pessimismo e podemos entrever o caminho do futuro. No fim do livro falo de cinzentismo, mas também de uma aurora. E concluo com uma belíssima de Turoldo, que invoca: «Restitui-nos à infância, Senhor».
A propósito, sublinha como o cristianismo, mais que uma instituição a conservar, deve ser uma realidade do nosso futuro.
Se se tenta remendar o presente, só se é arrastado para as nostalgias do passado. Penso que estamos a viver uma passagem muito importante, mas também delicada, que nos pede uma libertação do rame-rame de hoje e olhar mais além.
O livro intitulado “La Chiesa brucia. Crisi e futuro del cristianesimo” [A Igreja arde. Crise e futuro do cristianismo] parte do acontecimento dramático e simultaneamente simbólico do incêndio da catedral de Notre Dame, em Paris, para se interrogar sobre as origens e as possíveis soluções para o declínio da Igreja. Perante problemas graves, como a redução de praticantes e a queda numérica das vocações à vida religiosa, não há receitas fáceis. Trata-se de perscrutar a origem da palavra “crise” e de a habitar, dela extraindo a coragem de «libertar energias construtivas e criativas, de as suscitar, de dar confiança e apoio a diferentes realidades eclesiais». Mais do que contra inimigos externos, o desafio a vencer é o da indiferença e irrelevância.