Prémio de Cultura Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes
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Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes 2013

Roberto Carneiro: Uma vida dada à educação

A Igreja Católica atribuiu a Roberto Carneiro a edição de 2013 do Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes, galardão criado há nove anos com o objetivo de distinguir um percurso ou obra que refletem o Humanismo e a experiência cristã.

«A minha vida familiar, profissional, cidadã, fizeram-se na educação. Desde sempre, vivo nae paraa educação. Tenho com ela um "romance" indestrutível, um idílio que não acaba mais», afirmou Roberto Carneiro em entrevista publicada em 2004.

Na conversa com Joaquim Azevedo, que integra o livro “A educação primeiro” (Fundação Manuel Leão), Roberto Carneiro temia então que «uma excessiva focalização sobre competências - como é apanágio do pensamento atual - distraísse os sistemas educativos da focalização que se lhes exige sobre saberes fundamentais e intemporais».

Neste excerto, que nove anos depois da edição continua a tocar questões fundamentais da educação em Portugal nos dias de hoje, leia também as cartas que Roberto Carneiro escreveria a um neto prestes a entrar na escola e a uma jovem professora prestes a iniciar a sua carreira profissional.

 

O debate sobre as finalidades da educação continua um debate central. Lembro-me a este propósito do livro de Niel Postman "O fim da educação" e do teu próprio "Fundamentos da Educação e da Aprendizagem "...

Nas humanidades clássicas filosofia e educação confundiam-se; até certo ponto o conceito de Paideia representava, a um tempo, as finalidades e as praxis educacionais.

O afastamento da reflexão teleológica, isto é, do pensamento sobre as "ultimidades" da ação humana, é causa de manifesta desorientação na paisagem educacional do mundo atual.

Quanto mais "vertiginoso" o tempo que vivemos, mais aguda é a necessidade de debatermos os grandes "invariantes" da história da humanidade que fazem o "livro da educação"...

 

Neste "livro da educação" de que falas têm certamente lugar pensadores dos mais diversos quadrantes e filiações ...

Pois naturalmente. Faz-me pena que a Filosofia da Educação (e da Aprendizagem) se tenha visto gradualmente relegada para plano subalterno nos desenhos curriculares da formação de professores e, mais genericamente, das estratégias de formação em Ciências da Educação.

Os educadores viram-se subitamente investidos na pele de "técnicos de educação" sendo que, por consequência, o domínio positivo das ferramentas pedagógicas adquiriu primazia relativamente à formação humana do professor. Mas dificilmente se pode equiparar o papel do professor ao de um técnico. Nem a pessoa se reduz a um mero objeto reutilizável, nem o como fare: é dissociável dos fins prosseguidos.

Todavia, desde a Antiguidade à Renascença, chegando ao pensamento dos nossos dias, temas como a da educabilidade do homem é indissociável da praxis pedagógica.

Repara como o pensamento educativo foi sendo plasticamente moldado por conceitos como a paideia grega, o Bildung germânico, ou a instrução cidadã da revolução francesa. Neste último caso, de tal modo é a educação primária que institui o cidadão que o professor é o instituidor ("instituteur").

Mas a questão fundamental da educação continua a jogar-se o nível da liberdade humana. A educação tem por limite o seu objeto último: a liberdade de uma consciência. A liberdade de consciência do educador é inviolável e o seu limite é o da liberdade de consciência do educando.

 

A educação escolar durante muitos anos, com ênfase no pós-guerra, subordinou o seu desenvolvimento aos mandatos económicos. Aliás, os governos ainda hoje fundamentam as suas políticas e prioridades educativas em razões sobretudo económicas e empresariais...

Foi - e é - o primado do investimento em capital humano.

O problema é que, muitas vezes, essa subordinação é subliminar, escapando ao domínio do consciente, o que motivou erros enormes de política educativa. Veja-se, por exemplo, a excessiva especialização profissional de alguns sistemas formativos, orientação que conduziu a uma rápida depreciação dos saberes adquiridos e, mesmo, à obsolescência inevitável das instituições conformadas segundo esse paradigma pedagógico. Temo, por exemplo, que uma excessiva focalização sobre competências - como é apanágio do pensamento atual - "distraia" os sistemas educativos da focalização que se lhes exige sobre saberes fundamentais e intemporais.

E, todavia, a finalidade económica é, a muitos títulos, incontornável. Até certo ponto, as nossas sociedades são cada vez mais económicas, ideia que o Presidente Clinton adotou na célebre fórmula: «It's the economy, stupid!»

Mas a excessiva orientação utilitária dos fins da educação representa uma atrofia inaceitável do seu escopo mais nobre, o qual deve compreender preocupações mais vastas de desenvolvimentoem que se contêm objetivos irredutíveis de progresso humano e social.

Muita gente ignora que Adam Smith era professor de Filosofia Moral. "A Riqueza das Nações" - tratado que inaugura a moderna ciência económica - é uma coletânea de textos que A. Smith escreveu como apoio às suas aulas de Filosofia Moral... A sua notável obra insere-se num movimento intelectual - e ético - que brotou na velha Escócia e que levou à definição do que se designa por Iluminismo europeu. Atrofiar a contribuição científica de A. Smith cingindo-a ao domínio da economia é uma grave injustiça ao engenho e craveira mental do professor.

 

Mas a educação está tão dominada pelo que eu chamo a "tralha técnica", está tão fechada sobre questiúnculas técnicas e afastou-se tanto da política, da polis e dos problemas reais dos cidadãos, que parece que falas de uma educação que não existe...

A educação está hoje refém de abstrações científico-tecnocráticas e de ficções administrativo-burocráticas. A excessiva mediatização da vida coletiva também não ajuda. O debate da educação exige serenidade e lucidez, pressupostos que colidem com as agendas próprias dos meios de comunicação social que são muito mais vorazes e vertiginosas.

Precisamos também de maior realismo nas políticas e de compromisso das instâncias de governo com os atores que pugnam no terreno pelo funcionamento diário das instituições.

A "ecologia" da educação e da aprendizagem é indissociável da qualidade da polis. Escrevi muito sobre "cidades educadoras", como sabes. Num desses artigos defendi a seguinte ideia: '«As cidades do futuro são necessariamente, e por vocação, cidades educadoras. A negação deste imperativo seria sinónimo de cidades suicidárias, incapazes de responder perante as grandes interpelações da história e, como tal, condenadas à atrofia. Assim, a cidade educadora supera uma noção simplesmente funcional; é antes um projeto de ressurgimento e de revitalização da civitas ... Na pedagogia urbana a cidade é sujeito de educação».

 

E qual será o lugar da ética e da política na educação do futuro?

Ouvi um dia a Vaclav Havel a frase: "A nossa consciência tem de se colocar a par da nossa razão; caso contrário, estamos perdidos".

O tema da consciência humana - pessoal e coletiva, na sociedade e na política - é central à determinação dos rumos futuros da educação. Nenhuma sociedade do conhecimento sobreviverá se à sua natural ancoragem nos alicerces da ciência e da tecnologia não juntar a força das convicções interiores e o abrigo seguro no cais da consciência partilhada.

Educar é construir sentido. Não há edificação de sentido no vazio de valores ou na total ausência de "universais humanos" (T. Bruner). Por essa razão, o relativismo ético e o pântano axiológico são tão "corrosivos" do tecido educativo.

 

Pergunto-me: porque é que temos de procurar fora da educação os fundamentos para investir na educação? O tesouro está lá dentro, no desenvolvimento humano que importa proporcionar a todos os cidadãos, na afirmação de pessoas livres, capazes de se inserirem autonomamente na sociedade e de viverem juntas, em comunidade ...

É absolutamente verdade que a educação se "descentrou" da ação que se opera no núcleo interior da pessoa humana para atender a finalidades tecnocráticas que lhe foram sendo impostas de fora. Por isso, a mensagem essencial que a Comissão Internacional para a Educação no Século XXI quis transmitir foi a de que o tesouro reside, nas mais das vezes, bem escondido no recôndito da alma humana, sendo responsabilidade da educação encontrá-lo - desvendá-lo e partilhá-lo - no esplendor da sua verdade e autenticidade.

Mas também é verdade que o ato educativo é eminente e radicalmente social (T. Dewey).

No limite, ninguém aprende "sozinho em casa", para utilizar como metáfora o célebre título de um filme...

A magia do aprender decorre, em larga medida, da sua vertente relacional.

A aventura dos saberes leva-nos inexoravelmente à descoberta do tesouro que se esconde no interior do outro... ou não será que os saberes só têm valor quando devidamente contextualizados e humanizados?...

 

O que dizes é que toda a formação é pessoal e social...

Foi precisamente este o desenvolvimento que a conceção curricular de 1989 deduziu da Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada pelo Parlamento em 1986, uma espécie de Magna Carta para as reformas preparatórias do novo século.

Nós somos forjados pela nossa sublime experiência cultural, que se prolonga por toda a vida biológica, mas que adquire matiz estruturante durante o longo período de 'dependência' da infância e da adolescência humanas. Somos "instintivamente" animais culturais que buscam na aculturação a fonte da sabedoria, da maturação, e da interpretação.

A cultura é, em si mesma, um construto comunitário e social. Nesta aceção, o nosso habitatde eleição - o meio ambienteda existência humana - é a Sociedade.

A Comissão Delors enunciou uma atrativa tetralogia fundacional das novas aprendizagens no novo século. O pilar "Aprender a Viver Juntos" viria a destacar, eloquentemente, essa dimensão marcadamente social das aprendizagens humanas. (...)

 

Há um défice evidente na reflexão sobre as finalidades da educação. Isto prende-se também com um défice de reflexão sobre as dimensões éticas da educação e das escolas. Como é que isto se compreende se e quando todas as escolas adotaram um Projeto Educativo próprio?

Por três razões.

Primeiro, porque em muitas escolas o Projeto Educativo foi elaborado para "cumprir" uma obrigação ou uma determinação legal. Ele não terá sido o resultado natural de um processo paulatino de maturação comunitária.

Segundo, porque a reflexão sobre as finalidades da educação se deverá assumir como um mandato nacional e uma empresa cultural, ao invés de um imperativo local ou regulamentar.

Terceiro, porque as instâncias tradicionais de reflexão ética da educação - família, igreja, universidade, forças armadas, agentes de cultura - entraram em crise de autoridade e de confiança, sem que tivessem sido substituídas por instituições alternativas, devidamente preparadas para essa missão. Veja-se como os media que, numa certa medida, foram chamando a si as funções de oráculo moderno vivem completamente de costas voltadas para uma responsabilidade social de natureza ética, para não falar do seu papel face a missões educacionais...

Pensar a educação é indissociável de pensar estrategicamente a nação a médio e longo prazo. Assim, a pergunta cirúrgica a fazer, em primeira mão, é a seguinte: "Quem quer pensar estrategicamente o país e a sua evolução a 20 anos (no mínimo) sem sujeição a ditames hedonistas de caráter imediato?".

 

Mas esta lacuna de estratégia é notória em todos os domínios da política pública.

É verdade, mas há domínios em que a ausência de visão e a ditadura do imediato se pagam mais caro. Sem querer comparar setores da vida pública parece-me evidente que na educação o preço é notoriamente mais alto.

Repara como, hoje, a mediatização da política leva a que se governe para os títulos de imprensa, para os telejornais ou para a periodicidade dos semanários. A agenda pública deixou de ser comandada pelo que é necessário fazer, impera o que a opinião pública de cada momento elege como tema candente.

Ora, a tragédia é que a educação reclama um tempo diferente, o tempo dos valores não efémeros, o tempo das grandes sínteses que permanecem por cima das modas, o tempo da história grávido de futuro.

O Grupo de Reflexão sobre Educação e Formação que, durante dois anos (1996-97), trabalhou no seio da Comissão Europeia - e no qual participei ativamente - procurou alinhar esse quadro estável de princípios para a educação.

 

Suponho que te referes ao trabalho que viria a ser publicado como o "livro azul" da educação europeia.

Isso mesmo. Essa contribuição seguiu-se ao "livro branco" de 1995 ("Educação e Formação - Para a Sociedade da Aprendizagem") que, na altura do seu surgimento, tinha sido considerado demasiado tecnocrático.

A nova abordagem proposta pelo Grupo de Reflexão ("Cumprir a Europa pela Educação e Formação") procedeu à identificação dos principais valores que fazem parte da herança europeia e que permanecem valores de futuro. São valores que poderão inspirar uma nova sociedade cognitiva sobre uma ideia de progresso na qual os princípios da justiça e da solidariedade não serão esquecidos.

 

E esses valores são?

O enunciado é longo mas significativo. O elenco foi muito discutido nos seio do Grupo mas acabou por ser aprovado por consenso e com fundamento no que de mais importante o pensamento europeu legou ao mundo.

O conjunto final de valores que se considera dever continuar a inspirar uma matriz europeia da educação são:
- Os direitos do homem e a dignidade da pessoa
- As liberdades fundamentais
- A legitimidade democrática
- A paz e a rejeição da violência como meio ou método
- O respeito do outro
- A solidariedade humana (no interior da Europa e em relação ao mundo no seu conjunto)
- O desenvolvimento equitativo
- A igualdade de oportunidades
- O princípio da racionalidade; a ética da evidência e da prova
- A preservação do ecossistema
- A responsabilidade individual.

 

E ter-se-á o Grupo de Reflexão debruçado sobre formas concretas de concretização desta ordem de valores na esfera da educação?

Sim, embora de forma sumária, uma vez que não era esse o seu mandato principal.

Entre os estaleiros expressamente citados no nosso relatório final que se apresentam como cruciais à implementação de um quadro ético de valores de sociedade e de educação sobressaem as seguintes diretrizes:

- Melhoria das competências linguísticas e interculturais dos europeus - Modernização dos curriculos designadamente na vertentes do ensino da História, da Geografia, da Filosofia e das Ciências Sociais
- Reforço das vias humanista, literária e artística da Europa nos programas de ensino
- Desenvolvimento dos estilos democráticos de governo das escolas e estabelecimentos de ensino
- Estabelecimento de modelos de liderança educacional abertos a um forte compromisso comunitário
- Aprofundamento de uma educação para os media por forma a desenvolver competências críticas de construção de imagens, de representações e de textos, incluindo a descodificação de mensagens subliminares.
- Fomento de competências de participação na vida da cidade e no projeto de construção europeia.

A ética em educação é uma preocupação tão antiga que, como te recordarás, o problema central da filosofia socrática é a questão proposta pelos sofistas: "Pode ensinar-se a virtude?"

 

E será que se pode ensinar a virtude?

Protágoras viria a responder a essa magna interrogação sublinhando que a moralidade não se mede pela atividade técnica mas pelo "fruto de uma educação".

Neste sentido a virtude não é tanto uma verdade revelada na medida em que ela procede da palavra, do exemplo, da conversão pessoal e do cultivo do discernimento.

O ideal da sabedoria (sagesse) para os estoicos reside na "educação do espírito".

 

Para terminar umas perguntas breves, para tu comentares. Haverá leitores que ao chegar a esta página dirão: cá está o último romântico da educação em Portugal, que se esquece que a escola é sobretudo disciplina, testes, exames, trabalho ...

Tenho 56 anos intensamente vividos. A minha vida familiar, profissional, cidadã, fizeram-se na educação. Desde sempre, vivo nae paraa educação. Tenho com ela um "romance" indestrutível, um idílio que não acaba mais.

Deixa, agora que o "romântico" te responda no concreto. A escola da modernidade é sobretudo disciplina, testes, exames, trabalho ... como dizes.

A educação e a formação são sobretudo sonho, humanidade, aventura, descoberta, esperança, sobressalto, e partilha, acrescento eu.

Não existe contradição. Apenas mistério.

 

Sem otimismo não há educação possível...

Comento, da mesma forma como J. Monnet respondeu a um jornalista há 50 anos atrás a propósito do seu compromisso com a construção europeia.

"Não sou otimista. Sou determinado".

Otimistas, sim. Mas fundamentalmente determinados, é o que se espera dos empreendedores da educação do século XXI.

 

O futuro da educação está dentro e fira dos muros da escola, nas cidades e nas vilas educadoras ...

E nas pessoas educadoras que, por o serem, se assumem em plenitude como aprendentes ao longo de toda a vida.

Números recentes do INE [Instituto Nacional de Estatística] mostram que os portugueses aumentaram em mais de 700%, entre 1989 e 2000, os seus gastos com comunicações. Telefones, computadores e internet representam hoje 3,3% dos consumos familiares.

Ai está. O futuro da educação está na conversão do homo mediaticus no homo sapiens.

Espero que os portugueses, sem deixar de aplicar 3,3% dos seus rendimentos em comunicações, comecem a investir em educação mais dos que os 1,3%, percentagem que se mantém inalterada desde 1995...

A vila comunicacional é o berço da cidade educadora.

 

A educação em Portugal está a piorar de ano para ano. Não terá mesmo concerto? Será necessário implodir este sistema por nós criado ao longo dos anos?

Não dispomos de tecnologia para "congelar" o tempo e "parar" a história.

Em consequência, nenhuma fúria destrutiva - "unicamente implosiva" - colhe justificação sem a preocupação de oferecer alternativas e opções às pessoas concretas que colocam na educação as suas esperanças e os seus desígnios. Ainda que tenhamos consciência da necessidade de uma intensa mudança de paradigma não podemos "deitar fora o bébé com o banho".

A nossa grande responsabilidade é a de conseguir reparar o avião - diria mesmo, de o restaurar em extensão e em profundidade - enquanto voa.

A aeronave da educação voa em permanência, não conhece descanso, a não ser em brevíssimas paragens técnicas para "carregar baterias". E encontra-se normalmente com a lotação esgotada (não há lugares vagos).

Procura-se: Arte e engenho e, acima de tudo, respeito escrupuloso pelas pessoas.

 

Ainda acreditas nos pactos educativos?

Nada tenho contra pactos educativos. Aliás, pugno por um contrato social novo de educação e de aprendizagem que una as gerações atuais e as vindouras num pacto de progresso.

Tenho, todavia, grandes reservas a pactos educativos que não passam de engenharias políticas conjunturais e de palavras ocas, feitos para "deitar poeira nos olhos" e para disfarçar incapacidades de decisão.

E abomino os pactos educativos que desistem da sociedade da confiança em favor da sociedade contratualizada.

 

Tens o máximo trinta linhas para te dirigires a um teu neto (que em breve terás) que vai entrar na escola. O que lhe dirias?

«Lembro-me, vagamente, do meu primeiro dia de escola. Tive medo. Não sabia o que ia encontrar.
Ia deixar para trás, pela primeira vez, a segurança confortável das paredes do meu quarto, da minha casa, dos meus brinquedos, dos meus pais.
Mas também tive orgulho. O meu pai disse-me que eu já era um homemzinho. A minha mãe acrescentou que confiava inteiramente no meu sentido de responsabilidade (e encheu-me os bolsos daqueles bolinhos de maizena que só ela sabe fazer).
Ir para a escola, com uma sacola só minha e carregada de livros, cadernos, lápis e borracha, foi uma grande responsabilidade.
Ao fim do primeiro dia, quando os meus pais - ansiosos - me foram buscar à escola eu já não tinha medo. Contei-lhes tudo. Os novos amigos que tinha conhecido. Os jogos que, com eles, tinha feito. As coisas novas que a professora nos tinha ensinado.
Na manhã seguinte fui contente para a escola. Fui percebendo que cada dia era como um primeiro dia na escola. Novos - e velhos ­amigos. Novas - e velhas - brincadeiras. Novas - e velhas - coisas que fui aprendendo.
Trinta anos mais tarde, lembro-me bem do dia em que fui levar a tua mãe à escola pela primeira vez.
Tive medo.
Medo de a tua mãe não gostar da escola, não encontrar amigos, não conseguir aprender bem aquilo que a professora lhe ensinaria. Mas também tive orgulho. De ter uma filha a lançar-se numa etapa tão importante da sua vida. De poder acompanhá-la e ampará-la, tal como os meus pais o fizeram comigo, nesta sua fantástica viagem pelo mundo dos saberes escolares. Quando fui esperar a tua mãe ao fim do seu primeiro dia de escola perdi o medo. Vi como ela saía a cantar com amigos. Vi como ela se despedia deles na expectativa de os reencontrar no dia seguinte. Vi como ela tinha gostado da escola e da professora.
E voltei a ter orgulho.
Amanhã, quando fores pela primeira vez à escola peço-te que não tenhas medo. Mas não deixes de ter orgulho da responsabilidade que vais assumir. Os teus pais, os teus avós, a tua família, estarão sempre contigo nesta aventura que não esquecerás nunca porque vais descobrir mundos fantásticos. Vive cada dia na escola como se fosse o primeiro. E dar-te-ás conta, mais cedo ou mais tarde, de que alguns dos mais belos dias da tua vida foram passados na escola.»

 

Tens vinte linhas para te dirigires a um/ a jovem que amanhã começa a sua atividade profissional como professor/a. Que lhe dirias?

«Parabéns pela tua escolha profissional.
Comprovarás, pela vida fora, que ela foi uma escolha dificil mas acertada. Terás alguns momentos de desânimo em que te interrogarás sobre a bondade dessa opção. Mas terás, igualmente, inúmeros momentos de alegria em que abençoarás o dia em que decidiste ser professora.

Ajudarás cada aluno a ser o que é e não o que outros querem que ele seja. Descobrirás quão sublime é esta profissão que tem a magia de desvendar o saber a quem o desconhece. Cedo te darás conta de que cada aula é uma aventura e de que não há duas aulas iguais.

No início de cada aula sentirás a angústia de não saber se a conseguirás dar como a planeaste e como gostarias que decorresse. No final de cada aula bem dada sentirás a alegria do dever cumprido e a tranquila satisfação de ter feito o melhor que sabias.

Não te esqueças nunca de que para seres boa professora tens de aprender a aprender sempre, sem descanso, com esforço, pela vida fora, em cada tempo, com cada aluno. E, sobretudo, peço-te que não sejas avara do teu tempo. O bom educador define-se, principalmente, pela disponibilidade para com o discípulo. Ter tempo para ouvir, para compreender a sua viagem interior, para acompanhar e compreender os seus estados de alma, para estar presente sempre que ele requer ajuda.

Não tenhas medo. Dedica-te aos alunos, constroi uma boa relação com eles e com os colegas, empenha-te na saúde da tua comunidade escolar, transforma cada problema num desafio. E, daqui a uns anos, sentirás como é bom seres reconhecida por antigos alunos. E ouvir da boca deles: "Professora, as suas aulas foram para mim tempos de aprendizagem fundamental", ou "Nunca me esqueço daquela sua palavra de ânimo", ou ainda "Sabia que podia ir ter consigo sempre que precisasse". Compreenderás, ao fim de pouco tempo, que não há atividade profissional mais gratificante do que ajudar os outros a crescer em espírito e em sabedoria.»

 

In A educação primeiro - Roberto Carneiro entrevistado por Joaquim Azevedo, ed. Fundação Manuel Leão
14.06.13

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