Em Lucas (1, 30), a Páscoa de Jesus, que é todo o seu percurso pelo mundo – nosso mundo, mas seu mundo – começa com o anjo a dizer a Maria que não tenha medo, pois o seu criador – criar é o mais profundo ato de amor, em que o todo do possível ser é dado – lhe quer pedir uma tarefa, que só ela pode desempenhar.
Esta Páscoa, segundo Lucas, aproxima-se do seu fim quando, perante o vazio absoluto da humana carne de Cristo, algo parecido com um anjo diz, às Mulheres piedosas com medo, que isso que ali buscam já ali não mora, pois, no cumprimento da sua promessa, em si teve a morte metamorfoseada em vida (24, 1-12), como o arteiro Pedro logo verificou, para seu espanto.
A Páscoa de Cristo ocorre, assim, entre atos de espanto (thaumas): o da jovenzinha a quem Deus pede ajuda, o do humanamente paradigmático Pedro, frágil e fraco em sua fragilidade, mas sempre capaz de, em vida, ressuscitar para o sentido do bem, bem que lhe custa sempre a divisar inicialmente.
A vida de Jesus é toda ela algo de espantoso: mesmo se se esquecer os milagres, o espanto permanece em cada ato comum, tornado incomum pelo Homem que transforma em maravilha tudo o que toca, sobretudo o espírito dos que à sua ação se abrem, como o próprio Pedro.
Todavia, o maior milagre da ação de Cristo, renovando o sentido profundo do ato fundador de todo o ser, é o seu indefetível amor. Este milagre contínuo é o paradigma de ação para o comum humano: se não se pode pedir a um vulgar ser humano que cure um leproso, já que ame, pode pedir-se-lhe, pois tal está perfeitamente ao seu alcance. É segundo o contínuo milagre do amor que a ação humanamente santa, a que se pode chamar imitação (não «macaqueação») de Cristo, se assemelha em essência e substância à ação de Cristo: cada ato de amor é, no ser humano e em Deus, um ato de criação, de criação de possibilidade de ser, como foi, num outro nível, mas sem distinção qualitativa, o ato de criação, primeiro, do mundo.
Em cada ato de amor, quem tal pratica cria, isto é, põe bem no bem do mundo. Assim, com Maria; assim com José; assim, com Jesus; assim com cada um de nós quando ‘imita’ Deus fazendo o bem.
Percebe-se facilmente que o mal é tudo o que não é este ato de amor. Percebe-se que a vida de Cristo, toda ela pascal segundo o ato de amor, é um contínuo ato de bem. Percebe-se, também, que é neste ato perfeito de bem que o mundo atinge o seu melhor possível incarnado num ser humano.
Esta perfeição tinha já sido proclamada por Deus na figura de Job, pela voz do autor sagrado que intuiu e manifestou o paradigma de incarnada bondade, de semelhança segundo o bem entre o Homem e Deus. Todavia, Job é anistórico. Pensado, não realmente vivido: onde está esse Job de que falas, ó Deus?; mostra-mo!; mostra-mo, se és capaz!
Deus não é disto capaz, a omnipotência de Deus não é comparável aos sonhos tirânicos dos seres humanos viciados em poder: Deus só pode o que é ontologicamente positivo, o bem. O mal é nossa única prerrogativa.
Para mostrar o Homem bom, Deus tem de se tornar Homem e mostrar exatamente como o Homem pode ser bom e é bom. Este Homem, o que foi historicamente bom, é Cristo.
Por um ato de amor, este Homem entra no mundo; por um ato de maldade, do mundo sai; todavia, como pode o perfeito não manifestar a sua perfeição?
A ressurreição não é um ato mágico; não é uma paixão mágica sofrida como prémio de bom comportamento: a ressurreição é o cumprimento lógico da possível perfeição em ato de isso que, em ato, permaneceu perfeito. No sentido («logos») da perfeição ontológica do ato, como pode o ato perfeito não ser, não continuar?
O absoluto do bem transita para o nada? Então, como há, ainda, ato?
Meditando sobre esta simpática questão, poderemos perceber melhor o alcance ontológico do que está em causa na ressurreição do perfeito Jesus, o Cristo; Cristo porque perfeito.
Eis o Homem.