6. Um itinerário que precisa de solidão, silêncio, liberdade
Para conhecer-se a si próprio, para compreender-se e interpretar-se são necessárias condições que favoreçam esse trabalho interior, que permitam concentrar os olhares e resistir à dissipação: é preciso recolher as forças para “ir até ao fundo”, para descer às suas profundidades e experimentar a vida espiritual como processo de gestação, no qual se toma forma, é-se gerado, renasce-se – Jesus fala de «renascer do Alto», graças ao Espírito Santo –, faz-se emergir aquilo que está em nós mas que ainda não somos.
A solidão surge neste sentido como uma primeira necessidade. Mas, atenção: não se trata da solidão-isolamento, que é negativa para todo o ser humano, mas da solidão como dimensão de estar só consigo próprio e distanciar-se de tudo aquilo que no quotidiano é uma presença incómoda. Sabemos bem como é difícil introduzir na nossa vida espaços e momentos de solidão: apreensão, ansiedade, inclusive aversão podem invadir-nos quando começamos a estar em solidão, à parte; passar da agitação das preocupações
do quotidiano à solidão não é espontâneo, mas requer uma decisão, um esforço de vontade. Na verdade, as distrações agradam-nos, o ruído interior faz-nos companhia, a presença de outras vozes e imagens envolve-nos e protege-nos de nós próprios, daquilo que somos em verdade. «Torna-te aquilo que és!», exortava Píndaro, mas nós resistimos a este chamamento profundo que nos habita.
Se há verdadeira solidão, há também o silêncio, que não deve entender-se como mutismo, mas como distanciamento das vozes, como possibilidade de uma escuta outra, escuta daquilo que não é ruído, barulho, voz alta, daquilo que não se impõe e, todavia, fala: sim, porque também o silêncio é eloquente, fala e pode ser escutado. A vida interior precisa de um tempo de silêncio, que permita aos nossos sentidos funcionar de maneira simples e natural, sem serem solicitados artificialmente; precisa de um espaço “à parte”, de uma vontade não de fuga mas de recolhimento. Na linguagem corrente diz-se que é preciso encontrar-nos a nós próprios – expressão curiosa –, indicando que a pessoa pode estar perdida…
Silêncio e solidão permitem também o florescimento da liberdade pessoal, através de um trabalho de humanização progressiva, de crescimento da capacidade crítica capaz de julgar e discernir todas as ofertas, de assunção da subjetividade. É preciso saber dizer «eu» na vida interior, melhor, aprender a dizê-lo, para poder dizer também «nós» de maneira autêntica. Seja dito perentoriamente: para poder viver um caminho espiritual é preciso absolutamente a liberdade, uma liberdade submetida à prova mas sempre a agarrar e a confirmar para poder avançar. Ser livre desencadeia o medo, sobretudo no espaço interior, onde a força da inércia, as tentações do bem-estar, sonolências são sempre eficazes e ativas. Cada pessoa é chamada a escrever ela própria a sua história: não há fado nem necessidade e nada está predeterminado. A criação, o fazer da sua vida uma obra de arte precisam absolutamente da liberdade; e não há liberdade nem libertação possível sem a liberdade interior.
7. Um itinerário para todos
Até aqui coloquei a vida interior e espiritual como experiência e itinerário possível a cada pessoa. Estou convicto de que a vida interior é uma maneira de se ser humano, não é monopólio dos crentes, das pessoas religiosas. Por isso evitei toda a referência a Deus e à fé cristã que me habita, move, faz viver. A referência ao espírito não deve por isso ser entendido como invocação do Espírito divino ou do Espírito Santo, mas simplesmente como uma componente do ser humano: espírito com “e” minúsculo que está em cada pessoa e que, juntamente com o corpo, a define; qualquer pessoa pode falar de alma humana.
Recapitulando, podemos dizer que empreender a viagem da sua vida interior significa procurar responder às perguntas respeitantes ao sentido da vida. Sim, porque em cada vida há um início e um fim, a morte, e o horizonte da morte deve estar presente, para que não se viva de ilusões, de irrealidades ou de eternidade; além disso, o horizonte da morte induz-nos a uma interpretação que pode não diminuir a confiança na vida, o amor que habita cada ser humano. No entanto, hoje eliminamos a morte, somos incapazes de refletir sobre a morte; no máximo, pensamos na morte apenas como algo que diz respeito aos outros…
Não só a morte, mas também o outro, os outros, são uma presença que para nós é limite, mas também possibilidade, dom, mas também responsabilidade. A alteridade está diante de nós, escapa-nos, frustra o nosso desejo, e no entanto impõe-se, e não podemos ignorá-la. É por isso que é importante na vida espiritual sermos honestos com a realidade, lê-la bem e não eliminá-la, sermos fiéis à realidade, sobretudo a esta terra, a este mundo a que viemos, em que vivemos e o qual deixaremos, compreender cada vez mais a realidade. A vida espiritual é caminho de humanização para viver neste mundo, numa comunidade cada vez mais humanizada.
É preciso, por isso, aderir à realidade, fugindo da imaginação, que é húmus de idolatria, substituição da realidade pela imagem; é preciso aceitar-se a si próprio com as obscuridades específicas, os limites particulares, as deficiências singulares que nos habitam; é precisa uma forte vontade de preparar tudo, a fim de que seja possível a interiorização que se opõe à vida exterior, dissipada, superficial, desordenada e confusa até ao não-sentido. Cada pessoa encontrará obstáculos a este caminho, hoje como ontem, e nenhuma época é mais propícia do que as outras para a vida espiritual, porque a remoção da interioridade é sempre possível para crentes e não crentes. O narcisismo como expressão paradoxal do “eu”, efervescência do emocional que tende a não ter em conta a racionalidade; o individualismo como comportamento social que não permite a busca de sentido e ofusca a evidência dos laços: estes e outros riscos estão sempre à espreita na sociedade e na vida de cada ser humano.
8. A vida espiritual cristã
Uma forma da vida interior humana é a vida espiritual cristã, ou seja, a vida interior vivida pelos cristãos em comunhão com Jesus Cristo, que é confessado como Mestre, Profeta, Senhor e Revelador de Deus às pessoas. Os cristãos acreditam que a sua vida espiritual é original, tem uma especificidade, mas com isso não querem afirmar que a vida interior humana é exclusiva da experiência da fé.
Cada ser humano é animado por uma dimensão que transcende o corpo e a psique, por aquela alma ou espírito que lhe permitem transcender-se. Esta abertura é desejo, busca, impulso que se manifesta em todas as espiritualidades, religiões ou humanismos, como tensão para a beleza, o bem, a felicidade, a verdade. No cristianismo, essa abertura é espaço para predispor tudo ao acolhimento do Espírito Santo, da vida de Deus: abertura, desenvolvimento e crescimento da pessoa tornam-se um consentimento a Deus, um reconhecer o amor de Deus sempre preveniente. Por isso a vida espiritual cristã transcende a vida interior humana, porque nela se enxerta a força do Espírito Santo.
A vida espiritual cristã implica um trabalho de discernimento que se configura como atenção, vigilância, escuta de cada presença e manifestação do Espírito, da Palavra de Deus, na vida nas suas multiformes manifestações. É um trabalho de acolhimento do Espírito da parte do nosso espírito, um trabalho no qual se associam memória, inteligência e vontade. Somos, com efeito, habitados pela memória, mas esta precisa de ser despertada, ressuscitada como memória viva através do exercício da inteligência; só desta maneira nos tornaremos capazes de ler em profundidade o nosso passado e esclarecer o nosso presente. E assim sobre o hoje podemos exercer as nossas capacidades de mobilizar energias e forças para o sentir e o agir: este é o trabalho da inteligência, do espírito iluminado pelo Espírito Santo.
A vida espiritual cristã é também uma viagem, mas como resposta a um convite, a um chamamento de Deus, é um itinerário no seguimento de Alguém que abre o caminho e nos precede, é um caminhar deixando-se guiar pelo Espírito. Sim, vida espiritual cristã é «respirar o Espírito Santo» - expressão comum na patrística oriental e utilizada no ocidente por Guilherme de Saint-Thierry –, é viver da vida de Jesus Cristo, é resposta adoradora à Palavra de Deus, que diz a cada um de nós aquilo que disse a Jesus no início do seu caminho: «Tu és meu Filho, meu Filho amado».
9. Um caminho de conversão
Diz-se muitas vezes que ao início da vida espiritual cristã está um acontecimento, uma experiência fundadora, mas na realidade isto nem sempre é verdade. Muitas mulheres e homens que cresceram como cristãos sincronicamente ao seu crescimento humano não conhecem esta brusca mudança interior, mas antes um processo de transformação. Em todo o caso deve haver a consciência de um descentramento de si próprio e de uma abertura para um outro… Por isso, nem para todos os cristãos há um antes e um depois em relação à conversão; todavia, a instância da conversão não só deve estar sempre presente, como ser sentida fortemente. E aquilo que é verdadeiramente decisivo é consciência de que na origem da vida espiritual está a presença do Espírito Santo, condição necessária para todas as conversões e todos os itinerários espirituais.
Queda, pecado, conversão, reerguer-se coexistem na vida cristã, e nada é adquirido definitivamente: Jesus diz que o crente precisa sempre de conversão, pode sempre escutar a voz de Deus que o chama e confiar sempre no Pai misericordioso que está pronto a abraçar quem a Ele regressa. Vida de conversão significa, portanto, escolher «a única coisa necessária», sem preocupar-se com muitas coisas; buscar antes de tudo que sobre nós reine Deus e nenhum outro; renunciar ao mal e escolher o bem. Vida de conversão significa repudiar os ídolos que alienam e acolher a liberdade oferecida por um Deus que se mostra como libertador; significa consciência de uma dissemelhança da imagem de Deus, consciência da possibilidade de ter desfigurado essa imagem e desejo de a restabelecer, porque ela é em nós uma imagem viva. Precisamente porque cada ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus, então é capaz de reconhecer o bem e o mal, e pode confrontar-se com Jesus Cristo, «imagem do Deus invisível». Vida de conversão é a vida cristã do início ao fim, e a exortação de Jesus «convertei-vos e acreditai no Evangelho» é uma palavra que devemos escutar todos os dias como sendo dirigida a nós. A nossa conversão toma aos poucos forma no seio de uma comunidade de crentes, a Igreja, na escuta da Palavra de Deus que ressoa com eficácia, na celebração dos santos sinais do mistério pascal – morte e ressurreição – de Jesus Cristo. Converter-se, renovar a conversão é a condição sem a qual não há vida espiritual, vida sob a orientação do Espírito de Deus.
10. Um caminho de seguimento
Mais do que uma etapa, o seguimento é um compromisso a renovar diariamente. Um cristão lúcido sabe que a sua vida espiritual é aquela de quem começa a ser discípulo até ao fim da sua vida, inclusive perante o dom supremo da vida por Cristo no martírio, como bem exprimia Inácio de Antioquia: «Agora começo a ser discípulo».
Hoje somos muito sensíveis ao tema do seguimento, palavra até há poucos anos ausente do nosso vocabulário: falava-se da imitação de Jesus, de conformidade a Ele, ou de ascese como disciplina necessária para nos tornarmos semelhantes a Cristo. Seguir Jesus é linguagem simbólica para dizer que se quer ser sempre seus discípulos, que se quer aderir a Ele e ir para onde quer que Ele vá, que se seguem os seus passos, que se corre para agarrar Cristo, tendo sido por Ele agarrados. É um caminho complexo que se mostra simples, ainda que difícil, quando se tem o olhar fixo em Jesus, seguindo-plenamente com atenção e vigilância, plenamente envolvidos na sua vida. É também um caminho que requer ter fé nas realidades invisíveis, aquelas que são eternas e não passam, sem se satisfazer com as visíveis: o cristão, como Moisés, consegue permanecer firme se discerne as realidades invisíveis que estão diante de si como promessa.
Mas neste esboço de vida espiritual parece-me bom elencar quatro concretizações do seguimento de Jesus, ou melhor, quatro atitudes de Jesus Cristo que devem absolutamente ser vividas pelo cristão na sua vida:
- Jesus vivia da fé, na escuta da Palavra de Deus;
- Jesus viveu comprometendo-se na luta contra as tentações, portanto contra Satanás, o demónio;
- Jesus passou no meio de nós «fazendo o bem» como servo do Senhor e servo dos seus irmãos;
- Jesus entrou na paixão e na morte por causa do seu amor por Deus e pelos seres humanos.
Conclusão: vida espiritual, arte do viver, arte do amar
A concluir este convite à vida espiritual, permanece a pergunta: é um caminho de ascensão ou de descida? Ascensão para o Alto ou descida às profundidades do ser humano? Creio que se trata simultaneamente de uma ascensão e de uma descida: subir para o que está para além de nós próprios, aproximar-se cada vez mais de Deus, que é o totalmente Outro, Santo que nós dizemos que está «nos Céus», «no alto dos Céus»; descer degraus cada vez mais profundos, que mergulham nas nossas profundidades humanas. Não é por acaso que quando S. Bento, na sua “Regra”, propõe os vários «degraus» da vida espiritual, coloca no último lugar, como última etapa, a identificação com o publicano, pecador manifesto do Evangelho que, ao fundo do templo, diz: «Ó Deus, tem misericórdia de mim».<
Em qualquer caso, este caminho é autêntico, e portanto fecundo, se faz crescer no coração o amor: só se ordena, faz crescer, purifica o amor, é um caminho de vida interior e espiritual. Porque o amor está no coração de cada ser humano como uma força que deve ser libertada: o ser humano é criado à imagem de Deus, e restabelecer a imagem em nós significa praticar a arte do amor. O amor basta ao amor, o amor que é a finalidade de todo o pensamento e de toda a ação humana, o amor que nunca acaba porque, pela sua natureza, tende para a eternidade, rumo ao “para sempre”…
Estou convencido e extraio da minha experiência que cada pessoa, crente ou não, cristã ou não, se responde ao desejo profundo que a habita sente que deve praticar a arte do amor; depois talvez não o consiga, encontra contradições em si própria, nos outros e nos acontecimentos da vida, mas sabe que a felicidade, o sucesso, o “salvar a vida” depende do amor dado e recebido.
A arte do amor é difícil para todos: o cristão, que conhece que «Deus é amor», segundo a definição última e inultrapassável do Novo Testamento, sabe que a busca de Deus é uma busca do amor, e que um amor sempre preveniente o busca e o define «amado», sempre amado, mesmo antes de vir ao mundo. E quando alguém na fé faz esta experiência de amor passivo sobre si, quando se sente amado por Deus – e mesmo quando não foi amado bem pelos seus pais –, então sente-se habilitado a tornar-se uma pessoa que ama, e portanto ama o outro, os outros. Quem ama conheceu o amor de Deus sobre si, conheceu que Deus é amor, e por isso, segundo as palavras do apóstolo João, «acredita no amor». Cultivar a vida interior significa radicar-se cada vez mais no amor, aprender a amar, conhecer o amor.
Os crentes, depois, conhecem Deus como um Deus «misericordioso e compassivo», um Deus que tem com-paixão, que “con-sofre” com os seres humanos, que perdoa na sua grande misericórdia. Há pessoas que percorreram o caminho da vida espiritual até poder dizer que mesmo no inferno teriam cantado a misericórdia do Senhor: «As misericórdias do Senhor eternamente cantarei». Amor, respiração de Deus, sopro de Deus, e portanto respiração e sopro do ser humano.
Por isso, seja reiterada a declaração de João: «A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer»; para os não cristãos., se se amam reciprocamente, se vivem o amor autêntico, então Deus habita neles e o amor Deles realiza-se também neles (cf. 1 João 4, 12).