1. A vida interior, experiência humana
A vida interior é uma experiência que pertence a cada ser humano. Não é monopólio dos crentes ou dos cristãos: cada pessoa vive uma dimensão interior, vive – podemos dizer - «espiritualmente», isto é, vive com um conhecimento, uma consciência, um pensar, uma busca que lhe são próprios e transcendem a natureza animal. A vida interior ou espiritual é uma dimensão da experiência humana enquanto tal, na qual se decide e se busca o sentido da vida. Cada um de nós sabe que veio ao mundo, cresceu, humanizou-se interrogando, colocando a quem já estava no mundo interrogações, “porquês”, e depois colocando essas mesmas interrogações a si próprio, ao longo do seu crescimento. Cada um de nós, como se possuísse uma confiança original na vida, cresceu em busca, constituiu-se a si próprio também através da colocação de perguntas. É colocando e colocando-se perguntas, desde a infância, que um ser humano vem ao mundo, coloca-se no mundo e encontra referências para saber aquilo que é e quer ser. Assim nasceu em cada um de nós a vida interior, que podemos desenvolver conscientemente ou deixar numa dimensão mínima, sem a proteger, expulsada daquela «homologação do íntimo a que tendem as sociedades conformistas» (Umberto Galimberti), fenómeno social que contamina a atmosfera em que vivemos.
Há vida interior quando não se deixa de viver, quando não se permite aos outros que decidam e pensem por nós, quando não nos contentamos com certezas já confecionadas, mas é-se capaz de abertura às interrogações colocadas pela vida, à interrogação de sentido, e está-se disposto, mesmo com dificuldade, a tentar dar uma resposta pessoal. Uma verdadeira vida humana deve acontecer na comunicação com os outros, mas não deve ser devedora de soluções que os outros encontram por nós: não, cada um é chamado a encontrar em si, num caminho de vida interior, a fonte do sentido.
Por fim, deve afirmar-se com clareza que a vida interior não é uma vida contraposta à nossa vida material, à nossa existência diária; antes, é uma vida vivida no corpo, na História, na humanidade, sem possíveis evasões ou isenções: é uma maneira de pensar, de sentir e de agir concreta, com os outros e entre os outros. Em síntese, sem a vida interior não se dá qualquer caminho de humanização: só proporcionalmente ao desenvolvimento da vida interior há a possibilidade de construir a própria personalidade, encontrar sentido e significado na vida, chegar a uma subjetividade responsável e autónoma.
2. Uma viagem, um caminho
Todos aqueles que fizeram uma experiência espiritual séria, profunda e duradoura, e como tal todos os mestres de espiritualidade, descrevem a vida interior como um itinerário, uma viagem, um caminho, uma peregrinação. Esta simbólica adapta-se bem à vida interior e espiritual, porque nela há inícios, há êxodos, há um deixar certas situações vividas e conhecidas para ir rumo a novas metas, novas experiências. Falou-se por vezes de um tender para o alto, de uma escada a subir; outras vezes, mais raramente, de descida ou de travessia de desertos em que se encontram diversas dificuldades, que desencorajam ou convidam a voltar para trás. Heraclito disse com lapidar inteligência: «A escada que desce e que sobe é sempre a mesma».
O ser humano sente dentro se si, no seu coração, um convite, uma voz segredada que o chama a deixar, a abandonar o que está a viver, pare empreender um caminho: há uma nova estrada a percorrer. «Vai rumo a ti mesmo!» (Génesis 12, 1) é a voz escutada por Abraão quando empreendeu a sua viagem de crente: a viagem geográfica que o levaria de Ur dos Caldeus até à terra prometida realizou-se antes de tudo na sua vida interior, através de uma descida às profundidades do seu coração. Neste sentido, é significativo que os padres orientais, em particular Gregório de Nissa, leiam o caminho da vida interior, simbolizado na experiência de Abraão, como um “ékstasis”, uma saída de si.
Mas nenhuma ilusão: a viagem, o caminho, nunca está assegurado nem se apresenta como uma avançada direta para a meta, não é «uma imparável subida» (Salmo 49, 19); antes, é um caminho em que se vivem muitas contradições, em que são possíveis avanços inesperados, mas também regressões impensáveis, como acontece também na experiência da vida psicológica e afetiva… É um caminho humano, marcado por pontos de força e por fraquezas que marcam cada ser humano, chamado à liberdade mas tentado por permanecer escravo dos ídolos falsos que, na raiz, são sempre – não o esqueçamos - «um erro antropológico» (Adolphe Gesché), uma contradição ao caminho de humanização que é realizado por cada um de nós. Viagem, portanto, para reentrar em si, para ir ao coração das coisas e compreendê-las a partir de dentro.
3. Nasce com a pergunta
Há alguma coisa que é essencial a uma autêntica vida interior, a um itinerário espiritual que seja verdadeiramente capaz de humanização e seja possível para cada ser humano, religioso ou não, cristão ou não, ateu ou agnóstico? Sim, respondemos: é antes de tudo necessário – como já se acenou – colocar-se perguntas, saber interrogar-se. Todos temos perguntas que nos habitam, vozes que afloram do nosso profundo, mas é preciso escutá-las, deixá-las emergir e, consequentemente, examiná-las e assumi-las. Como não recordar as palavras com que Rainer Maria Rilke convidava um jovem poeta a cuidar das perguntas por elas mesmas? Há perguntas sem resposta fácil, há perguntas que permanecem como tais e devem acolher o enigma, mas é preciso ainda assim fazê-las e escutá-las; por vezes, com efeito, são para nós mais decisivas do que eventuais respostas, que por vezes não são possíveis. A propósito, pense-se somente na pergunta: «Porquê o mal, o sofrimento, a morte?». Quem não faz perguntas vive constantemente à superfície de si próprio: cansaços, emoções, reações, alegrias e sofrimentos, tudo sucede, mas tudo afoga o eu profundo, tudo aparece com pouco sentido…
As perguntas essenciais da vida são bem sintetizadas por Teódoto (metade de II d.C.). Trata-se de perguntas infelizmente não suficientemente transmitidas e recordadas, talvez porque provenientes do mundo gnóstico: «Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? A quem pertenço? De que posso ser salvo?». A atitude interrogativa diz que o sentido não é pressuposto ou está imediatamente disponível. É por isso que a pergunta é o terreno da vida espiritual, abre à procura, precisa de liberdade.
4. Conhece-te a ti próprio
No século V a.C. Sócrates perguntava aos seus discípulos o que estava esculpido no frontal do templo de Apolo, em Delfos: «Homem, conhece-te a ti próprio». O conhecimento de si é indispensável para percorrer o itinerário da vida interior. É verdade, tal conhecimento nunca é pleno: cada um de nós permanece um mistério mesmo para si mesmo, e por vezes pode até aparecer como um enigma com sombras e lados escuros que não gostaria de ver, e que talvez estigmatize nos outros… E, todavia, é absolutamente necessário conhecer-se a si próprio, para saber aquilo de que se é capaz, quais s
ao os seus limites e as suas forças, para se ser responsável. Conhecer-se a si próprio como processo de leitura psicológica de si; conhecer-se a si próprio na pertença a uma porção precisa de humanidade; conhecer-se a si próprio para ter de si um justo juízo.
Neste trabalho de conhecimento de si nem sempre é possível distinguir entre o espiritual e o psicológico. Alguns têm a tendência a confundir estas duas dimensões, reduzindo uma à outra; mas, na verdade, vida espiritual e vida psicológica intercetam-se a tal ponto que nas manifestações exteriores da primeira é impossível realizar uma distinção. Sabemos, por experiência, que erros de espiritualidade podem tornar-se patologias psíquicas (algumas vezes também com resultados somáticos), e que, vive-versa, patologias psíquicas podem influenciar a espiritualidade. O ser humano é mais unido do que aquilo que acreditamos: corpo, psique e espírito têm uma profunda relação recíproca, e as fronteiras entre eles são muito fluídas. E, todavia, não nos esqueçamos que a psicologia trabalha no registo da análise e da interpretação dos fenómenos psicológicos, que estão no espaço das ciências humanas, enquanto a espiritualidade vive d eum outro nível de sentido: a orientação última da vida humana e o seu significado.
Cada um de nós existe porque foi gerado, por isso os pais precedem-nos; cada um de nós existe num tempo e lugar particulares, portanto veio e vem a cada dia ao mundo agora e aqui; cada um de nós está no meio dos outros, portanto está em relação com outros. Conhecer-se a si próprio significa, por isso, antes de tudo aderir à realidade, conhecer a sua relação com a História, os outros, o mundo, porque é assim que cada um de nós existe e está envolvido. Muitos caminhos espirituais aparecem por vezes estéreis, quando não negativos e desumanizantes, porque lhes falta a adesão à realidade. É extremamente perigoso iniciar o caminho interior ou espiritual sem sentir-se como os outros, no meio dos outros, necessitado dos outros, e nunca sem os outros. Quantas derivas na vida interior e espiritual da parte das pessoas que se isolam, que deixaram de escutar, que vivem só das suas certezas e das suas descobertas…
Conhecer-se a si próprio é, portanto, uma tarefa, uma dificuldade, um exercício quotidiano, e exige olhar, perscrutar, examinar o seu sentir, falar e agir. Hoje temos a graça das ciências humanas que prestam à experiência espiritual uma grande ajuda e um grande serviço: podemos, com efeito, guiar a pessoa a um justo conhecimento de si e podemos ser veículos de sabedoria e instrumentos de libertação. Sem um certo conhecimento de si é quase impossível o desenvolvimento da vida interior, porque eu sou aquilo que sou, isto é, também tudo aquilo que me fez, que contribuiu para a formação do meu eu.
Sim, o exercitar-se no conhecimento de si próprio é já percorrer a viagem interior.
5. Uma busca de sentido… nunca sem o outro
Na vida espiritual – como se disse – há uma busca de sentido, e este dado continua a ser inegável, mesmo se hoje há quem assevere que na sociedade da técnica se pode prescindir dessa busca. Certamente, a busca de sentido está ameaçada na sociedade marcada por um comportamento social e uma cultura individualistas, porque o sentido não é dado em si, mas na interseção das relações entre o sujeito e os outros, entre o sujeito e a realidade, entre o sujeito e um fim entrevisto. Para que emerja o sentido é necessário que haja laços, relações, afetos, objetivos e fins, porque só assim pode haver orientações, só assim a pessoa se pode situar. O sentido nasce das relações, nasce – ousarei dizer – da comunhão, da comunicação, enquanto o individualismo significa não-laços, não-lugares, desorientação, autorreferencialidade: o individualismo compromete a busca de sentido.
Por isso a vida espiritual está ao serviço da pessoa, não de um individualismo centrado em si próprio. Cada homem, cada mulher é um sujeito singular, único, mas sempre um sujeito de relações no meio aos outros e com os outros. Cada um de nós é pessoa, isto é, um sujeito que ressoa – segundo a sugestiva etimologia que faz derivar este termo do verbo “per-sonare” –, e cada um de nós pode atingir o seu desenvolvimento e a realizar o seu crescimento na relação com os outros: pais, irmãos e irmãs, amigos, educadores, companheiros, filhos… Não há, portanto, espiritualidade autêntica fundada apenas na preocupação de si, no cuidado de si, porque o outro, os outros devem encontrar espaço, colocação e relação na minha vida. Cada um de nós precisa do outro, e o outro é sempre o que me falta: nunca sem o outro, porque do outro preciso para ser eu próprio. «É a reciprocidade instaurada», diz Paul Ricoeur, «que institui o outro como meu semelhante e institui-me a mim mesmo como semelhante do outro».
Por isso, busca de sentido, busca do bem, busca da felicidade sempre presentes em cada itinerário espiritual não podem consistir somente no cuidado e na realização de si próprio: uma vida espiritual vivida individualmente, de maneira intimista, não pode contribuir para a humanização. Só quem se sente em relação com os outros, que busca a comunhão com os outros, que não se envergonha de chamar a todos irmãos, é capaz de percorrer com fecundidade o caminho espiritual, que é sempre um caminho humano, isto é, de uma pessoa pertencente à humanidade, de uma pessoa que é sempre irmã de outra pessoa. Se alguém quisesse fazer um caminho espiritual fugindo aos outros, ou até desprezando os outros, estaria condenado a um autismo psicológico no qual não há espaço nem para a criatividade nem para um verdadeiro crescimento humano.
«Nenhum homem é uma ilha»: esta lapidar afirmação de John Donne foi significativamente usada por um monge solitário como Thomas Merton como título para as suas reflexões autobiográficas.
Continua.