«Conhece aquela frase do “Diário” de Søren Kierkegaard? “O navio está nas mãos do cozinheiro de bordo. E o que transmite o megafone do comandante já não é a rota mas aquilo que vamos comer amanhã”…»
O cardeal Gianfranco Ravasi, biblista e também “ministro” da Cultura do Vaticano está convencido de que no Ocidente os católicos, e em geral os crentes, devem estar conscientes de que são uma «minoria», não obstante haver quem discorde.
«Muitos eclesiásticos refutam-no, quando lhes dizem isto interrompem o interlocutor. Vivem como se ainda estivéssemos naquelas regiões onde ao domingo de manhã tocavam os sinos e as pessoas acorriam à missa.»
Em vez disso, hoje «prevalece a indiferença, a irrelevância do fenómeno religioso. É o problema do secularismo, ou da secularização. Não é uma rejeição do sagrado ou do transcendente, uma recusa agressiva: os ateus declarados são muito poucos. É antes uma forma de apatia religiosa. Que Deus exista ou não, é o mesmo. E isto comporta a queda de um sistema ético: os valores são autoproduzidos».
Neste sentido, há uma filósofa americana, Sandra Harding, para quem o conceito de verdade e de moral é como o comportamento da aranha que elabora a teia: obtém-na de si mesmo. A aranha vizinha faz outra. É o efeito do secularismo, que é distinto da secularidade.
Com efeito, a secularidade «é um valor tipicamente cristão, a César e a Deus… Noutras culturas há teocracias e hierocracias, mas não é a visão cristã», porque os católicos não querem que «cada praça seja uma praça de S. Pedro». A «secularidade é o reconhecimento da distinção entre fé e polis, não da separação. A Igreja tem direito de intervir sobre as leis, não de modo direto, mas se violarem a liberdade e a dignidade da pessoa, a solidariedade. A reação secularista nega inclusive isto».
Perante a realidade, aos católicos abrem-se duas «estradas fundamentais». «A primeira é reduzir-se a dizer o mínimo absoluto, religioso e moral. Reconhecer a tendência para o subjetivismo e conceder quase tudo, como fazem muitas igrejas protestantes: é melhor o mínimo que o vazio. Não estou de acordo. A presença dos crentes, ainda que mínima, deve ser um grito, não um sussurro.»
O segundo itinerário consiste em «conservar o núcleo, o “kerygma” da fé, as grandes palavras últimas: o Decálogo, o Discurso da Montanha, a verdade, a vida e a morte. Fazer como S. Paulo no areópago de Atenas, mesmo sabendo que é possível o fracasso. A derrota e a recusa são parte da dinâmica do anúncio».
Para «fazer compreender a força, a radicalidade evangélica das bem-aventuranças, não basta limitar-se a lê-las: tenho de as explicar numa linguagem que as atualize. S. Paulo tinha-o percebido, tomou o núcleo cristão, o “kerygma”, e transcreveu-o numa linguagem que já era a judaica de Jesus: o grego de S. Paulo era o inglês, o digital de então».
Um exemplo desta atitude está no papa Francisco e nos três elementos que «usa espontaneamente». «Um é a parataxe, a frase breve. Se queres fazer-te entender, depois, tens de recorrer ao símbolo, como faz Jesus, as parábolas, a narrativa: as periferias, o odor das ovelhas. Por fim, num mundo dominado pelo virtual, voltar ao corpo, à presença: o tema da misericórdia para declinar a categoria do amor».
Ainda que estejamos numa época que em certos domínios é «dramática» e «desencorajadora», fechar-se «num oásis protegido não é cristão, não é monástico». Diz Jesus: «O que escutais ao ouvido, proclamai-o sobre os terraços». «O monaquismo salvou e elaborou a cultura clássica, geriu a economia, construiu cidades.»