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Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes 2019: Intervenção de José Mattoso

Exmo Senhor Professor José Carlos Seabra Pereira
Caros irmãos e amigos

Sinto-me muito honrado por o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura me ter atribuído o prémio Árvore da Vida. Associa-me assim a um conjunto de personalidades que têm feito da fé cristã o fundamento da sua obra cultural. Em vez de oporem a fé à racionalidade, inspiram-se nela para produzir cultura. Houve tempos e lugares em que esta associação se considerava impossível. A fé opunha-se à ciência, à razão e à cultura. Hoje o diálogo tornou-se pacífico, e a crença é, para muitos, fonte verdadeira de inspiração cultural.

O Secretariado da Pastoral da Cultura, como orgão da Conferência Episcopal Portuguesa, escolheu o nome do Pe. Manuel Antunes como modelo da conciliação da fé com a cultura. Com efeito, foi uma das personalidades que em Portugal contemporâneo mais contribuíram para dissipar a agressividade anti-clerical, e restituir à Igreja um lugar importante na promoção da cultura. O Pe. Manuel Antunes desempenhou esse papel, como professor da Faculdade de Letras de Lisboa, como incansável redactor da revista Brotéria, e como autor de uma vasta obra filosófica onde mostrou a independência do seu pensamento político.

A sua obra permanece ainda hoje como um marco fundamental na história da cultura portuguesa. Foi um criador de cultura na mais vasta acepção do termo. Merece bem ser modelo da promoção da cultura cristã em todos os seus domínios. Nele convergem os nomes dos autores e atores já laureados com o prémio Árvore da Vida que se distinguiram nas artes plásticas, na arquitectura, na ciência, na poesia, nos estudos clássicos, no teatro e no cinema, e ainda na vida social e política. Cada qual com a sua personalidade, todos eles souberam conciliar a inspiração artística ou a competência científica com o vigor da acção social. Este conjunto é bem diferente do que dominou uma época, felizmente já passada, em que a opinião pública corrente contestava a legitimidade de uma fé racional.

Com efeito, nos séculos XIX e XX, a Igreja teve de se defender de violentos ataques racionalistas. Em Portugal acusaram-na de inventar milagres, de manter rituais supersticiosos, de alienar povos ignorantes, mas a Igreja reagiu adoptando uma apologia retórica, e refugiando-se à sombra do poder constituído. Enfraquecida pela perda dos seus bens e pela debilidade do seu pensamento racional, perdeu o sentido da criatividade e do diálogo com a sociedade contemporânea.

Hoje, porém, graças à reflexão teológica, à crítica exegética e ao verdadeiro conhecimento do passado, recuperou o seu lugar no mundo da ciência e da razão. A história crítica da Igreja ajuda-a a reconhecer os seus erros, a explicar as suas decisões, a interpretar indícios significativos da sua acção, a descobrir afinidades com correntes alheias. Não nega nem revela milagres, mas oferece aos pensadores e aos especialistas das ciências humanas os materiais de que eles se servem para formularem as suas interpretações. teológicas ou filosóficas. Faz da História tout court a face visível da História da Salvação.

A historiografia nacionalista considerou o fim da Idade Média europeia como uma época de crise e generalizou a decadência das suas instituições e a corrupção do clero. A narrativa eclesiástica, por sua vez, esqueceu a potencialidade de alguns ensaios inovadores surgidos nessa mesma época. Hoje, porém, sabemos que o fracasso de vários movimentos reformistas legítimos se deve mais ao excesso de zelo e à rigidez das formulações dogmáticas tridentinas do que a efectivos desvios doutrinais. A obsessão uniformizadora do catolicismo quinhentista e seiscentista persistiu durante os séculos seguintes, e levou, por exemplo, a proibir a leitura de Erasmo, a condenar Copérnico, a criar a Inquisição, a legitimar a tortura, a proibir a leitura da Bíblia em língua vulgar, a fazer abortar os primeiros ensaios do Liberalismo Católico.

A História da Igreja foi sempre feita de luz e de sombra. Mesmo nos tempos mais decadentes houve sempre surtos carismáticos, formas de vida inovadoras, críticas justas a pastores indignos, e surgiram movimentos deste género na Itália, Espanha e em Portugal muito antes das críticas luteranas do século XVI. O anti-conciliarismo papal bloqueou algumas das propostas saneadoras formuladas pelos padres dos concílios de Constança, de Basileia e de Pisa. Por isso, a História crítica da Igreja não isenta a Cúria Romana nem muitos outros membros da hierarquia católica das suas responsabilidades na ruptura da unidade eclesial. Em Portugal neutralizou ou enfraqueceu as potencialidades dos movimentos religiosos e assistenciais do século XV, tão importantes, creio eu, para compreender o vigor e o dinamismo da acção e do pensamento religioso do período mais brilhante da nossa História, a época da Expansão e dos primeiros contactos de Portugal com as culturas não europeias.

Por isso mesmo, creio fazer parte da pastoral da cultura incentivar a actual renovação da nossa historiografia eclesiástica. Depois do meritório esforço de Fortunato de Almeida, em plena República, a História da Igreja teve de esperar pelos tímidos ensaios que apareceram a seguir à fundação da revista Lusitânia Sacra nos confins da década de 1950. Desenvolveram-se depois, progressivamente, para a época moderna, graças, entre outros, aos recentes estudos do Professor José Pedro Paiva, da Universidade de Coimbra, do Professor José Adriano Freitas de Carvalho, da Universidade do Porto, e para a época contemporânea, graças aos estudos dos Professores António Matos Ferreira e Paulo Fontes, da Universidade Católica. Há alguns anos, a Universidade Católica confiou a coordenação da investigação historiográfica ao seu Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR). É a ele que se deve a publicação da primeira História Religiosa de Portugal e do Dicionário de História Religiosa de Portugal dirigidos por Dom Carlos Azevedo. No âmbito do Instituto de História Medieval da Universidade Nova, dei também algum contributo para estes estudos explorando a época medieval. Hoje, posso dizer, com muita alegria, que as minhas investigações foram bem recebidas e que tenho o enorme prazer de confiar o meu legado a um pequeno grupo de jovens empreendedores integrados no Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova em colaboração com o CEHR, liderados pelo Doutor João Luís Inglês Fontes.

Espero que todos eles mereçam a confiança do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura e da Conferência Episcopal Portuguesa. Por uma razão muito concreta: depois do concílio Vaticano II, a Igreja tem sido marcada por importantes movimentos reformistas. Dando a este qualificativo um sentido não exclusivo de nenhuma igreja em particular, creio poder dizer que atravessamos hoje, também, uma época de reformas. Creio que temos alguma coisa a aprender com a História, sobretudo com a história da espiritualidade e das ordens religiosas e do laicado. Tal como no século XV, devemos conciliar a pluralidade das iniciativas e experiências, com a necessária firmeza e unidade da Igreja. Creio que só um pluralismo de raiz evangélica, fruto da Palavra única de Jesus Cristo, pode conciliar a imensidade e a multiplicidade das suas incarnações, no tempo e no espaço, com a unidade de Deus Pai, uno e trino, Senhor do Céu e da Terra.

Muito obrigado pela vossa atenção.


 

José Mattoso
Imagem: D.R.
Publicado em 01.06.2019 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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