«Muitos admiram Jesus: falou bem, amou e perdoou, o seu exemplo mudou a História… e assim por diante. Admiram-no, mas a sua vida não muda»: a paralisia espiritual, a resistência à conversão, as expetativas inabaláveis, a incapacidade do espanto, que marcaram o acolhimento do Messias nas ruas de Jerusalém poucos dias antes da sua crucificação, subsistem hoje, inclusive entre os crentes, tornando-os impermeáveis à surpresa, à inovação, à desordem que Ele continua a trazer ao mundo.
O papa presidiu hoje, no Vaticano, à missa do Domingo de Ramos, que marca a entrada na “Semana Maior” dos cristãos, na qual se assinala com particular realce a morte de Jesus, na Sexta-feira Santa, e a sua passagem para a vida sem fim, evocada com especial relevo na na Vigília Pascal e no Domingo de Páscoa.
À entrada da “Cidade Santa”, Jesus parece ser recebido por uma multidão de cegos: olham-no, mas não o veem, divisam o seu rosto mas desconhecem o seu coração: «A sua gente espera para a Páscoa o libertador poderoso, mas Jesus vem para realizar a Páscoa com o seu sacrifício. A sua gente espera celebrar a vitória sobre os romanos com a espada, mas Jesus bem celebrar a vitória de Deus com a cruz», afirmou Francisco.
O que inquieta não é só este engano, que não obstante terem passado dois mil anos, continua a desdobrar-se em ilusórias expetativas dos cristãos sobre quem é Jesus, mas também a brusca mudança de opinião: «Que acontece àquela gente, que em poucos dias passou de dar hossanas a Jesus a gritar “crucifica-o”? O que aconteceu?».
«Aquelas pessoas seguiam mais uma imagem de Messias, que não o Messias. Admiravam Jesus, mas não estavam prontas a deixar-se espantar por Ele. O espanto é diferente da admiração. A admiração pode ser mundana, porque busca os próprios gostos e as próprias expetativas; o espanto, pelo contrário, permanece aberto ao outro, à sua novidade.»
Para que neste ano de 2021 a atitude dos cristãos seja outra, é preciso um coração novo: «Porque admirar Jesus não basta. É preciso segui-lo no seu caminho, deixar-se colocar em discussão por Ele: passar da admiração ao espanto».
Como é difícil que o assombro de Jesus expulse o entorpecimento e o marasmo, na vida pessoal e na vida da Igreja; e como ele é tão urgente: «A vida cristã, sem espanto, torna-se cinzenta. Como se pode testemunhar a alegria de se ter encontrado Jesus se não nos deixamos espantar a cada dia pelo seu amor surpreendente, que nos perdoa e faz recomeçar?».
«Se a fé perde o espanto, torna-se surda: deixa de sentir a maravilha da Graça, deixa de sentir o gosto do Pão da vida e da Palavra, deixa de perceber a beleza dos irmãos e o dom da criação. E não há outro caminho a não ser o de refugiar-se nos legalismos, nos clericalismos e em todas estas coisas que Jesus condena no capítulo 23 de Mateus.»
Será esta mais uma Semana Santa incapaz de sacudir a vida? Ou, com as palavras do papa, «conseguiremos ainda deixar-nos comover pelo amor de Deus? Porque deixámos de saber espantar-nos diante dele? Porquê?».
«Talvez porque a nossa fé tenha sido desgastada pela habituação. Talvez porque permaneçamos fechados nas nossas lamentações e nos deixemos paralisar pelas nossas insatisfações. Talvez porque tenhamos perdido a confiança em tudo e nos creiamos até errados. Mas por trás destes “talvez” há o facto de não estarmos abertos ao dom do Espírito, que é aquele que nos dá a graça do espanto.»
Francisco fala de espanto, e por isso é natural questionar sobre o que «mais espanta no Senhor e na sua Páscoa? O facto de Ele chegar à glória pela via da humilhação. Ele triunfa ao acolher a dor e a morte, que nós, escravos da admiração e do sucesso, evitamos».
Em que consistiu a humilhação que continua a desconfigurar o que muitos esperam de Deus? «Ver o Todo-poderoso reduzido a nada. Vê-lo, a Palavra que sabe tudo, ensinar-nos em silêncio na cátedra da cruz. Ver o rei dos reis que tem por trono um patíbulo. Ver o Deus do universo despojado de tudo. Vê-lo coroado de espinhos em vez de glória. Vê-lo, a bondade em pessoa, insultado e pisado.»
A interpelação é inevitável, então como hoje, e seguramente para sempre: «Porquê toda esta humilhação? Porquê, Senhor, deixaste que te fizessem tudo isto?». «Fê-lo por nós, para tocar até ao fundo a nossa realidade humana, para atravessar toda a nossa existência, todo o nosso mal. Para aproximar-se de nós e não nos deixar sós na dor e na morte. Para recuperar-nos, para salvar-nos.»
«Jesus sobre à cruz para descer ao nosso sofrimento. Prova os nossos piores estados de alma: o fracasso, a rejeição de todos, a traição de quem lhe quer bem e até o abandono de Deus. Experimenta na sua carne as nossas contradições mais lacerantes, e assim redime-as, transforma-os. O seu amor aproxima-se das nossas fragilidades, chega aonde nos mais envergonhamos.»
Por isso, quem acredita em Deus sabe que nunca está só: «Deus está connosco, em cada ferida, em cada medo; nenhum mal, nenhum pecado tem a última palavra. Deus vence, mas a palma da vitória passa pelo madeira da cruz. Porque as palmas e a cruz estão juntas».
É também «a graça do espanto» que permite compreender que amar Jesus passa por «acolher quem é descartado, aproximar-se de quem é humilhado pela vida», porque «Ele está nos últimos, nos rejeitados, naqueles que a nossa cultura farisaica condena» - e entre estes não se pode deixar de pensar nas pessoas atingidas pelas muitas “condenações” proclamadas pela Igreja, desde a sua origem aos nossos dias.
A reflexão de Francisco começou pela alusão às expetativas desajustadas dos crentes em relação a Jesus, e foi com elas que concluiu a homilia: a ideia «de um Deus a adorar e a temer enquanto poderoso e terrível» não tem cabimento no cristianismo e é imune aos mal-entendidos, porque Ele «desvelou-se e reina apenas com a força desarmada e desarmante do amor».
Na oração do Angelus, que se seguiu à missa, Francisco pediu orações «por todas as vítimas da violência, em particular pelas do atentado ocorrido hoje na Indonédia, diante da catedral de Makassar».