Antes do fogo, havíamos de escrever somente as pedras que se batem, a fricção e o desiderato como uma centelha, tão lábil quanto efémera. Ainda não como poema, mas tão só como sua intuição, um grito antecipado, que «os gritos correm mais depressa que as palavras. Sem faróis no escuro da garganta» (1). E esses – os gritos – serão porventura como passos largos que segredam a manhã aos obscuros, também estes, viandantes entre trevas para os quais surgiu a Luz, mesmo assim rejeitada (cf. Jo 1, 4-5). Antes do fogo, a poesia é a mão de Deus que bate as pedras, densas de vida, à espera do lume.
1. Para amar a escuridão
Nós somos os que se desassossegam de véspera, às portas da escuridão, do vazio e do informe, temendo o abismo. Os nossos passos são, com efeito, como aqueles do humano «que avança no nevoeiro» (2). Não obstante, diga-se, avançar no desconhecido é ensaiar aquela mesma fé ladrilhada de dúvidas, tão fértil que aprofunda ainda mais as raízes da sua confiança. Quem ousará, diante do abismo, arriscar perder-se a si próprio? Não será, porventura, a escuridão o lugar propício para o amadurecimento da salutar virtude da confiança? Talvez valha a pena, nesse sentido, recuperar aquela belíssima imagem que Sophia nos oferece, no seu conto «A Viagem»:
«Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as raízes se rompessem, não se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si própria. Pois era ela própria o que ela agora ia perder. / Compreendeu que lhe restavam somente alguns momentos. / Então virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou: / – Do outro lado do abismo está com certeza alguém. / E começou a chamar» (3).
Atravessar a escuridão é, além de um ato corajoso, uma das experiências mais belas, pois, se não perdermos de vista a razão maior da nossa esperança, então saberemos que há sempre alguém por quem podemos chamar no outro lado da escuridão. Nas vésperas do fogo, qualquer noite tem a ambição da pergunta, ao que o coração, antecipado, responde que a luz tem um nome: o nome de Deus.
Ora, assim é Deus na obscuridade do mundo, feixe de luz que preenche obscuridades e indiferenças apáticas. Deus é a chama acesa que move e comove o coração da Humanidade. É a sua visita que esperamos vigilantes. É essa a fricção e a chama, a poesia deste Deus que desperta – com os seus olhos-lâmpada – possibilidades sempre novas. Dispomo-nos, assim, como Herberto, a esperar na obscuridade: «Vinde, vós que escutais, vinde / saudar-nos na viagem nocturna» (4). Até porque, afinal, assiste-nos a antiga certeza de que «Deus é luz e n’Ele não há nenhuma espécie de trevas» (1Jo 1,5).
Da escuridão, porém, não mais diremos o negror, mas a planície no acaso do derrame que se descobre imperfeito nas fendas da luz refletida – e já não sendo tão simplesmente a cor, mas a fonte dela, que se aproxima de nós enquanto possibilidade mesma da claridade. É essa a tensão poética que encontramos, por exemplo, no caraterístico ‘chiaroscuro’ de Caravaggio, que Martim Sousa Tavares define como «uma luz incomum que vem do alto, num feixe que fende a treva geral» (5). Pude prová-lo, de facto, quando, por exemplo, entrando na igreja de S. Luís dos Franceses, em Roma, me deparei com a sua desconcertante «Vocação de Mateus». Que intensidade!
Creio que, na verdade, talvez não seja fatal o abismo entre a sombra e a luz, nem sequer intransponível. Escuridão e fogo não se anulam, mas tornam-se antes lugares equidistantes. De facto, como aponta Tolentino Mendonça, «nem sempre a sombra é o contrário da luz, como a árdua fadiga de viver não é o contrário da felicidade. São etapas do mesmo rio que corre» (6).
A escuridão tem também a sua beleza própria, e já o vimos. Porventura, um dos artistas que mais profundamente o percebeu foi Pierre Soulages, pintor francês, que, na sua singular ousadia, alcançou aquela mesma confiança do salmista que confessa: «na escura noite o meu coração me ensina!» (Sl 16, 7).
Soulages procurou, ao longo da sua vida artística, uma forma autêntica de expressão. Encontrou-a na fase a que chamou de “outrenoir”, quando descobriu no negro uma possibilidade intangível que convoca, na sua diversidade, a visitação da luz:
«Estava a pintar luz. Já não estava a pintar negro, não era isso que importava, mas sim a luz refletida – pelo negro, não por outra cor – que me guiava […] já não estava a trabalhar com negro, estava a trabalhar com o reflexo da luz sobre o negro. Foi o que chamei de “luz negra”, e que depois chamei de “outrenoir”» (7).
Queria o artista ser um pintor obscuro – desejo, de resto, semelhante ao de Herberto Helder, expresso naquela quase-súplica: «Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro» (8). Com efeito, dedicou-se, desde então, a explorar somente a cor negra (na sua textura, luminosidade e movimento).
A obscuridade, quase sempre entendida como negação, privação ou vazio, não é aqui entendida desse modo. Pela recordação de que o negro é anterior à luz, o artista torna-o numa janela aberta à possibilidade diversa da luz. De facto, Pierre Soulages descobriu, no mistério do negrume, a hipótese da «luz pela transparência» (9). Para eficazmente o evidenciar, bastar-nos-á revisitar uma outra criação sua: os vitrais que produzira para as cento e quatro entradas de luz da igreja abacial de Sainte-Foi de Conques, vitrais estes que são como um crivo da tensão entre a luz e as trevas – luz decantada – que recolhe a cor das múltiplas faces da luz do dia.
A obscuridade da obra de Soulages poderá, porventura, fazer notar aparentes imperfeições ou acidentes. Na verdade, é intenção do artista que assim seja, que nas suas telas permaneçam marcas de imperfeição, pois com isto há de conseguir ilustrar uma profissão de fé pessoal: «sabe que só Deus é perfeito, que tudo neste mundo é imperfeito e que as nossas vidas são feitas de acidentes […]. Essa imperfeição conta a beleza e a grandeza, da obra e de Deus, que só Ele é perfeito» (10).
Porém, advirta-se: para sair da escuridão é preciso amá-la. E amá-la significa tomar consciência de que, por inúmeras vezes, é aí mesmo que Deus se revela, sob a forma de visita inesperada, imprevisível e surpreendente: a nova face da cor e da luz.
Ademais, quando se trata de amar a escuridão, torna-se muito sugestivo à memória um brevíssimo trecho do diálogo entre Clara e Georg, dois personagens do conto «Uma história contada à escuridão», de Rainer Maria Rilke:
«– Em que é que está a pensar, Georg?
– Estou a pensar como naquela noite de antigamente. Continua à espera do maravilhoso, espera Deus e sabe que ele virá. E eu apareço por acaso, como testemunha» (11).
Esperamos porque sabemos que vem. Testemunhamos a espera, a maravilha de confiar que o Senhor, como recorda José Augusto Mourão, «autentifica a nossa obscuridade / e interroga a experiência sobre que dormimos/ para saber como é que ela nos abre/ a membrana que nos esconde o céu» (12). De facto, também o céu é uma descoberta, como o foi o fogo. Mas, uma vez descoberto, nada permaneceu como anteriormente. Aquele que descobre a possibilidade do céu e da luz não mais desejará outra coroa que não essa.
2. Fogo de Deus
O instinto de fuga era o bastante à sobrevivência do humano desconhecedor da arte do fogo. Intuição algo aproximada à do ousado Prometeu, no clássico drama grego «Prometeu agrilhoado», de Ésquilo, que o traz à luz. Para Prometeu, a Humanidade sobrevivia na obscura existência de responder somente ao instinto da fuga, reservando-se à escuridão das cavernas e alimentando-se de frutos caídos no chão por temor das feras.
Ora, para que a Humanidade se distinguisse, Prometeu vê-se obrigado a roubar o fogo aos deuses, confessando: «fui eu que no oco de uma cana apanhei e roubei a semente do fogo, que se revelou para os homens a mestra de todas as artes e o seu grande recurso» (13). Interrogue-se: quem ousaria, neste tempo, investir a própria vida para iluminar a Humanidade? Emudecem-se as vontades. E, ainda assim, poderia espantar-nos a pergunta de Eugénio de Andrade: «as fontes regressam / de que incêndio cativas?» (14). Com certeza, já não precisaremos, como Prometeu, de roubar o fogo aos deuses, porque o nosso Deus é o fogo e a Luz que nasce no coração daquelas mesmas perguntas do mundo que só a poesia é capaz de cavar, revolver e aplanar. Deus é fogo revelado e inspirador.
Nas vésperas do fogo, Deus é a poesia; e, nessa medida, a poesia não é uma evasão, não é uma fuga da realidade. Muito pelo contrário, ela torna-se iluminação da realidade, e por isso é que é fogo. Lawrence Ferlinghetti, afirma que «a poesia é uma visão luminosa tornada sombria, uma visão sombria tornada luminosa» (15). A esta tensão, todavia, acrescentaria que a poesia é também o fogo do mundo, enquanto dom profético conferido por Deus aos humanos.
Numa das mais recorrentes invocações ao Espírito Santo, suplicamos: «Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do vosso amor». Talvez não se deva a um mero acaso o facto de se insistir neste pedido. Pedimos o fogo e não a apatia. Acendei o fogo! Isto é, insuflai de inquietude e ardência o nosso coração, desinstalai-nos, abalai as nossas comodidades e as certezas que mutilam caminhos, fazei-nos agir e reagir. Enchei-nos de pulsões!
É preciso acreditar no fogo! Sim, é urgente que acreditemos, sobretudo enquanto houver homens e mulheres presos à sua escuridão e nela desorientados. É urgente a fricção das pedras – dirão a poesia –, a força bruta da palavra em punho e combustão. É preciso acreditar na inutilidade dos versos, dos mais breves e frugais aos mais densos e vastos, e acreditar que nessa aparente inutilidade está a inefável força que cura e salva, porque só Deus é o poema que nos confere o fogo, a pulsão, a paixão, o alento… enfim, a vida! É este o fogo que Ele mesmo anuncia, quando, no Evangelho segundo São Lucas, garante: «Eu vim lançar o fogo sobre a terra; e como gostaria que ele já se tivesse ateado» (Lc 12, 49).
Luz que edifica e reconstrói da ruína, densa de tempo e ainda lenta. Soubéssemos, pois, também nós viandantes, cantar a nossa fé em Deus-lumieira com aquela mesma sensibilidade do poeta Daniel Faria:
«[…]
Equilibra a existência desmoronada e inteira.
Tu és o que edifica
Tu constróis mil vezes.
Porque o raio tem o seu tempo.
És o clarão, a lâmpada, a estrela
Somas luz à luz.
Não és a luz, és mais que a luz
Porque a noite tem o seu tempo» (16).
És para nós um Deus-fogo, sarça ardente, poema luminoso, promessa de que a noite tem o seu tempo. «Deus de Deus, Luz da Luz» (17). De Niceia ao coração, perpassando recônditos serôdios, eis que surges como a primordial pergunta, à qual respondem as sucessivas auroras. Não precisamos de novos credos, mas de renovada fé na Luz que é novidade desde sempre. Precisamos do fogo de Deus que abrasa o coração da humanidade, muito embora persista a noite (18). Só assim concluiremos, como Elis Regina, naquele clássico da música brasileira, «Ressurreição»: «a chama que se apaga, sempre mata a esperança; mas a minha chama de esperar-te não se cansa». Não nos cansemos, portanto, porque a lâmpada de Deus não se apagou (cf. 1 Sm 3, 3).
(1) Rosa Alice Branco, Gado do Senhor (Lisboa: & etc, 2011), 12.
(2) Milan Kundera, Os testamentos traídos (Lisboa: D. Quixote, 2018), 224.
(3) Sophia de Mello Breyner Andresen, «A Viagem», em Contos Exemplares (Porto: Figueirinhas, 2006), 108.
(4) Herberto Helder, Bebedor Nocturno (Porto: Porto Editora, 2015), 173.
(5) Martim Sousa Tavares, Falar Piano e Tocar Francês. Arte, cultura e humanismo na era dos memes (Lisboa: Zigurate, 2024), 36.
(6) José Tolentino Mendonça, A Vida em Nós. Aforismos (Lisboa: Quetzal, 2024), 71.
(7) Stéphane Berthomieux, «Soulages, Master of Black and Light» (RTP, 2017), 22:29-22:43, acedido a 22 de janeiro de 2025, https://www.rtp.pt/play/p6495/e444091/soulages-master-of-black-and-light.
(8) Herberto Helder, Os Passos em Volta (Porto: Porto Editora, 2015), 164.
(9) Berthomieux, «Soulages, Master of Black and Light», 1:27:21-1:27:33.
(10) Berthomieux, «Soulages, Master of Black and Light», 1:36:23-1:37:43.
(11) Rainer Maria Rilke, Histórias do Bom Deus e outros contos (Porto: Livros do Brasil, 2017), 115.
(12) José Augusto Mourão, O nome e a forma (Lisboa: Pedra Angular, 2009), 252.
(13) Ésquilo, Prometeu Agrilhoado. Clássicos do Teatro Grego (Alfragide: Ediclube, 1997), 14.
(14) Eugénio de Andrade, Vésperas da Água (Porto: Assírio & Alvim, 2014), 33.
(15) Lawrence Ferlinghetti, A Poesia como Arte Insurgente (Lisboa: Relógio d’água, 2016), 57.
(16) Daniel Faria, Poesia (Porto: Assírio & Alvim, 2019), 186.
(17) Credo Nicenoconstantinopolitano, Missal Romano, 500.
(18) Cf. São João da Cruz, «Escritos Breves», em Obras Completas (Marco de Canaveses: Edições Carmelo, 2005), 68.