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Pensar a história cultural e social das epidemias

Na história das epidemias, como em toda a História, concorrem e coexistem a continuidade e a rotura. A continuidade é a da natureza humana, embora a natureza das coisas possa ser alterada, e o seja, pela evolução da ciência e da tecnologia.

Nesse sentido, uma História teocêntrica, olhou e olha as pestes – como as guerras, como os desastres naturais – como uma manifestação da vontade de Deus (ou dos deuses); de forças transcendentes cujos desígnios e sentidos são misteriosos. Uma história antropocêntrica, bem pelo contrário, há de vê-los numa perspetiva de racionalização naturalista e científica, ainda que a racionalização naturalista não exclua algum endeusamento de uma natureza que, por linhas tortas, se revela justiceira e castigadora dos pecados (ecológicos) dos homens.

O facto é que a famosa lei dos três estados de Comte – o teológico, o metafísico, o positivo – acabou por não se observar se não tendencialmente. No século XXI além de persistirem comportamentos integráveis em qualquer destes três estados ou mesmo na mistura de todos eles, continuamos a ficar perplexos, amedrontados, ignorantes, vulneráveis, perante fenómenos como a presente pandemia.



Os Bizantinos, cristãos ortodoxos, devotos e escrupulosos até à bizantinice, interrogavam-se acerca das razões de Deus para os punir com maldições, como a Peste de Justiniano. Era um tema muito sério, que acordava e instigava apaixonadas controvérsias teológicas. Também os sacerdotes muçulmanos, quando lhes chegou a vez, se inquietaram com a metafísica da praga



Em Contágios – 2.500 Anos de Pestes procurei interrogar, a partir da história dos flagelos epidémicos que foram caindo sobre a Humanidade, a perceção que as sociedades foram tendo destes fenómenos, sobretudo através das suas manifestações artísticas.

Esta perceção aparece logo nos primeiros escritos conhecidos: na Ilíada, Apolo desfere setas pestíferas sobre o acampamento dos Aqueus; na História da Guerra do Peloponeso, Tucídides descreve com pormenor clínico a tragédia da Peste de Atenas; no Livro dos Reis, vemos Javé castigar o rei David com a peste que levou o seu nome, e no Apocalipse é das taças de sete anjos que a peste se entorna sobre a humanidade nos dias do fim.

Os Bizantinos, cristãos ortodoxos, devotos e escrupulosos até à bizantinice, interrogavam-se acerca das razões de Deus para os punir com maldições, como a Peste de Justiniano. Era um tema muito sério, que acordava e instigava apaixonadas controvérsias teológicas. Também os sacerdotes muçulmanos, quando lhes chegou a vez, se inquietaram com a metafísica da praga.

Mas o choque pestífero na Europa Ocidental veio com a Peste Negra, que aqui chegou nos meados do século XIV, vinda do Extremo-Oriente via Crimeia. Chegou por mar, pelo Mediterrâneo, e atacou na Bota de Itália, estendendo-se rapidamente a toda a Península Transalpina e depois a Paris, a Londres, às cidades das Espanhas e de Portugal.



Já em “Morte em Veneza”, que outro grande criador do século XX, Visconti, traria para o cinema, Mann usara a Cólera como Leitmotiv. Também Albert Camus, em “A Peste”, deixaria uma alegoria célebre da epidemia como praga moral e política



À peste chamou-se bubónica ou negra porque, picados pelas pulgas trazidas pelos ratos, as pessoas desenvolviam bubões nas axilas e pelo corpo todo e escureciam. E os cadáveres negros contaminavam os vivos. Veio como mais um prenúncio do fim do mundo e da chegada do Anti-Cristo nos séculos dos grandes cismas na Igreja, com dois Papas – de Roma e de Avinhão – a excomungarem-se mutuamente e a dividirem os reinos cristãos em ortodoxos e cismáticos. Mas para a Peste procuraram-se também outros bodes expiatórios, como os judeus e os leprosos, chacinados nas cidades suíças e da Baviera e noutros locais civilizados.

A Peste Negra contribuiria para acelerar o fim do Feudalismo: ao morrerem em grande número, os trabalhadores rurais tornaram-se raros e os senhores, para os manterem, tiveram de lhes dar alforria e melhores condições de trabalho e de vida. A partir da realidade da peste em Florença e na Inglaterra, grandes escritores, como Boccaccio e Chaucer, escreveram sátiras sociais famosas, o Decameron e os Canterbury Tales.

Mas a Peste Negra viera para ficar e ao longo de quatro séculos, em surtos sucessivos, foi atacando e matando na Europa: nas cidades italianas – Florença, Nápoles, Veneza, Milão – mas também em Paris e Marselha, em Londres e em Sevilha. Destas pestes e da sua memória ficaram textos célebres, dos diários de Samuel Pepys e do imaginado Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe, aos Promessi Sposi de Manzoni e às telas da Peste de Marselha de 1720, a última grande peste da Europa Ocidental.



Ao deflagrar num lugar e num tempo de conservadorismo político-social – a América de Ronald Reagan – com grupos de risco estigmatizados pela moral e pela opinião popular dominantes, a SIDA transformou-se numa espécie de maldição



Shakespeare, que escapou da gadanha da Morte Negra ao nascer, escreveu algumas das suas peças mais importantes em confinamento, sempre que o número de mortos determinava o fecho do Globe Theatre e dos demais teatros londrinos. De resto, a chave da tragédia de Romeu e Julieta é a peste que deflagra em Verona, obrigando Frei João a isolar-se e impedindo-o de avisar Romeu em Mântua do estratagema da “morte aparente” de Julieta.

Só quando os ratos ficaram imunes às pestilentas pulgas e elas deixaram de passar para os homens é que a Peste Negra deu tréguas. Mas nos séculos XVIII e XIX aparecia a “Peste Branca”, o nome que Charles Dickens deu à Tuberculose. Os heróis e heroínas tuberculosos multiplicam-se na vida, no romance, no teatro, na ópera do século XIX; em Dickens, em Dumas, em Camilo, em Eça, em Verdi, na Traviatta. Cesário Verde, que morreria aos 31 de tuberculose, publica em 1884, quando percebe que está doente, a memória de dois Verões, o de 1856 e o de 1857, em que “a febre e a cólera andaram pela cidade” e a população, “com um terror de lebre” fugia “da capital como da tempestade”.

Um dos grandes romances de temática epidémica, já no século XX, é A Montanha Mágica, de Thomas Mann, que, a partir de um sanatório na montanha de Davos, retrata a Humanidade num dos mais memoráveis monumentos da ficção inspirada em patologias. E já em Morte em Veneza, que outro grande criador do século XX, Visconti, traria para o cinema, Mann usara a Cólera como Leitmotiv. Também Albert Camus, em A Peste, deixaria uma alegoria célebre da epidemia como praga moral e política.



A Covid-19 é a última das pragas. E porque apesar das mudanças tecnológicas a natureza humana muda pouco, sobretudo a natureza humana em situações limite, com a nova peste a história tem vindo a repetir-se



No século XX, no último ano da Grande Guerra, a Influenza, Gripe Espanhola ou Pneumónica, chegou à Europa. Os seus mortos – cerca de 3.200 000 na Europa e nos Estados Unidos – confundiram-se com os mortos da Guerra. Portugal foi muito atingido, com quase 140 mil de vítimas mortais. T.S. Elliot e Virginia Woolf deixaram ecos da peste nos seus escritos, mas entre a guerra, os “loucos anos vinte” e a Grande Depressão a doença quase passou despercebida. Susan Sontag, como Woolf, escreveria sobre a relutância dos escritores em falar da doença.

E já nos finais do século XX chega outra grande pandemia que, na América, parecia ter por alvo dois grupos de risco: os homossexuais e os toxicodependentes. Ao deflagrar num lugar e num tempo de conservadorismo político-social – a América de Ronald Reagan – com grupos de risco estigmatizados pela moral e pela opinião popular dominantes, a SIDA transformou-se numa espécie de maldição.

No entanto, a Administração Reagan, através da FDA – Federal Drug Administration –, aplicou-se a fundo numa solução para o problema e, ultrapassando protocolos, acelerou a procura de tratamentos. Peças como Anjos na América e filmes como Philadelphia contribuíram para alertar e sensibilizar a opinião pública para o estigma do grupo mais atingido. Mas já antes, obras como as peças de Tennessee Williams – algumas adaptadas ao cinema com realizadores e atores famosos – tinham vindo a sedimentar, por entre os códigos severos de Hollywood, um espaço de maior compreensão e tolerância para uma minoria tradicionalmente marginalizada.



Por mais abrangente, precisa e inabalável que seja a lógica, ou as lógicas, o mistério e a nossa perplexidade perante o mistério teimam em subsistir



O HIV, que a partir dos antirretrovirais, em meados da década de 90, se tornou uma doença crónica e tratável na Europa e nos Estados Unidos, continua a assolar outras regiões do mundo, sobretudo África, onde estão 70% dos 40 milhões de infetados. Ali, o maior grupo de risco são as mulheres jovens, infetadas pelos parceiros, que por práticas e razões culturais recusam o sexo protegido.

A Covid-19 é a última das pragas. E porque apesar das mudanças tecnológicas a natureza humana muda pouco, sobretudo a natureza humana em situações limite, com a nova peste a história tem vindo a repetir-se: surpresa, medo, descrença, desnorte, culpabilização; apocalípticos e negacionistas; crédulos e céticos quanto às ciências, comunidade científica dividida, políticos tentando encontrar na opinião pública e no conselho de técnicos um passa-culpas para as suas decisões.

Num mundo aparentemente sem mistério, o que outrora se esperava de Deus Omnipotente, nos seus insondáveis desígnios, e da Sua Justiça ou Misericórdia, espera-se agora da Ciência e das decisões de cientistas e políticos perante a lógica de causa e efeito de uma Natureza ressentida com a má conduta dos homens. Mas por mais abrangente, precisa e inabalável que seja a lógica, ou as lógicas, o mistério e a nossa perplexidade perante o mistério teimam em subsistir.


 

Jaime Nogueira Pinto
Politólogo, escritor
In Observatório da Cultura, n. 26 (novembro 2020)
Publicado em 19.11.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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