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Pela experiência do outro visitamos e somos visitados pela Trindade divina

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Pela experiência do outro visitamos e somos visitados pela Trindade divina

Deus não é um Senhor celeste solitário [...],
Nem uma força fatal, fria e muda,
que tudo determina e que por nada é tocado,
O Deus trinitário é um Deus comunitário,
rico em relações internas e externas.
Apenas dele podemos dizer: «Deus é amor»,
porque o amor não é solitário,
mas pressupõe o diverso,
une os diversos e distingue os unidos.
(J. Moltmann)

O Outro é tema que continua a inquietar o espírito humano. Exposto mesmo a leituras antagónicas. Ora visto como presença infernal, como no célebre dito de J.-P. Sartre: «o inferno são os outros»; ora, pelo contrário, acolhido como lugar ético, cujo rosto nos devolve a verdade do que somos.

No dizer de E. Levinas, «o Outro, absolutamente Outro - Outrem não limita a liberdade do Mesmo. Chamando-o à responsabilidade, implanta-a e justifica-a». Não poderia ser de modo diferente, porque o outro não é um opcional do nosso viver. Não há experiência de vida isenta de uma tal experiência do outro. A vida é sempre um «con-vívio». A existência é sempre uma «co-existência». A subjetividade é sempre uma «inter-subjetividade». Assim é a lei da vida, que se nos mostra logo quando vimos à vida. Não se nasce da solidão, mas do encontro de dois outros. Não se nasce no isolamento, mas fazendo família com outros. Não se nasce apenas para união consigo, mas ainda para a comunhão (comum-união») com outros. Só assim, nesta coreografia vital entre o eu e o tu, chegamos a ser nós próprios. Porque nós somos «animais políticos», como sabiamente Aristóteles pôs o problema. Não apenas «animais racionais». Somos, neste sentido, urbanos, da pólis, lugar onde o outro é tão evidentemente nosso vizinho. Ou nosso «próximo», como prefere o Evangelho. Onde o «con-domínio» é expressão da mesma humanidade que, como uma casa (domus), «com-partilhamos».

Não se veja nisto uma conceção idílica do nosso ser-com-o-outro. Nesta nossa condição, a graça do dom vem com o alto preço do compromisso da própria liberdade. Porque, «convocado a comparecer diante da instância da consciência, dos outros, da lei, do absoluto, deverei dizer de mim». Há qualquer coisa de verdade na frase atribuída a São João Berchmans (1599-1621): «vita communis est mea maxima poenitentia [a vida comunitária é a minha maior penitência]». Talvez um pouco hiperbólico, mas colocando o dedo na ferida: ser-com-o-outro «com-porta» sempre qualquer coisa de ascético. Nisto a espontaneidade não basta. Requer-se ainda uma liberdade empenhada em converter o ser-com-o-outro num efetivo ser-para-o-outro e ser-a-partir-do-outro. Já aqui, uma trindade em nós e na nossa experiência do outro.

No âmago desta nossa experiência do outro mora um irresolúvel paradoxo. Por um lado, o outro é um semelhante. É um comigo. Faz-nos bem vê-lo como tal, para a descoberta do que sou e para a defesa do que o outro é. Mas, por outro lado, o outro é sempre infinitamente diferente. Há uma irredutibilidade desse outro ao mesmo. Uma resistência, quando não um bloqueio, à tentação de transformar o outro numa projeção ou instrumento do eu. E também nos faz bem esta perceção, igualmente para descoberta do que sou e para a salvaguarda do que o outro é. Dito de modo diferente, esse outro não se deixa objetivar, ou seja, não se deixa reduzir a um objeto à disposição do eu. Não se deixa encaixar naquela atitude fundamental perante o mundo que o filósofo judeu M. Buber descreveu como «Eu-Isso». Pede sim, esse outro tipo de relação também por ele formulada como «Eu-Tu».

A experiência da alteridade, assim aflorada nos seus tópicos mais fundamentais, mostra-se-nos profundamente «teo-lógica». Porque ser-com-o-outro supõe sempre uma certa transcendência. Estar diante do outro pede-me um certo «êx-tase», isto é, pede-me que tenha o ser fora de mim e que esteja dinamicamente voltado para fora de mim. Pede-me uma clara anteposição do altruísmo (o absoluto do outro: alter) sobre o egoísmo (o absoluto do eu: ego). Transcendência que está presente nesse outro que me transcende. Transcendência que está presente nesta nossa relação que pede que eu me transcenda. Porque o outro é para nós um infinito. Digo-o com aquele significado que lhe dá E. Levinas. O «in» que precede «finito» tem aqui o duplo sentido de negação e de relação: é «in-finito» como «não finito»; é «in-finito» como «no finito». O outro não é limitável pelo eu. Mas, ao mesmo tempo, esse outro está, de alguma forma, presente nesse eu. Por isso, «a diferença entre finito e infinito é uma não-in-diferença do infinito relativamente ao finito». Voltamos, de alguma forma, ao mencionado paradoxo da semelhança e da diferença na experiência do outro. Paradoxo que tocamos quando esse outro é alguém como nós. Mas que tocamos sobretudo (ou podemos tocar) quando esse outro leva letra maiúscula, porque é o próprio Deus. Ele sim, radicalmente infinito e com o mesmo duplo sentido: não delimitável pelo que somos e, ao mesmo tempo, presente em nós, no eu e no tu.

A convicção de que Deus é por excelência o nosso Outro é um dos fundamentos da espiritualidade bíblica. A (quase) total impossibilidade de o nomear e representar são expressões religiosas e culturais de uma profunda espiritualidade e teologia. Banalizar o seu nome ou delimitar a sua figura seriam expressões de uma intolerável coisificação do outro que é Deus. Por mais bem-intencionadas que fossem, seriam sempre uma cedência ao maior pecado contra Ele: a idolatria. O Novo Testamento, apesar de toda a novidade que traz, não deixa esquecer este dado: «a Deus nunca ninguém o viu» (Jo 1,18). É por ser sumamente Outro que Deus não pode ser abordado com a atitude do «Eu-Isso». Ele é por excelência um Tu. Sob uma forma desviada, o ateísmo tê-lo-a percebido também. Há, quando visto por este ângulo, uma certa espiritualidade no ateísmo. Porque ele reage negando o que sente ser uma profanação dessa absoluta alteridade; o que sente ser uma violação intolerável da verdade da experiência do outro e do Outro.

Mas Deus é também, para connosco e em-si-mesmo, um não-outro. Uma não alteridade no que se refere a nós, mas sobretudo uma não alteridade em-si-mesmo, isto é, uma não alteridade trinitária entre Pai, Filho e Espírito Santo. Assim o viram, sobretudo, os místicos. A intimidade com Deus por eles experimentada ter-lhes-á possibilitado a perceção de como Ele não nos é indiferente (e, por isso, é um não-outro), sem que tal «con-tacto» implique forçosamente uma diminuição da sua sagrada transcendência (e, por isso, é também um outro). Nicolau de Cusa (1401-1464), por exemplo, dedica à questão da Trindade um escrito intitulado precisamente De non aliud (Acerca do não-outro). Aí afirma que a «Trindade é não-outra senão unidade, e a unidade é não-outra senão a Trindade». E noutro lugar, declara: «Daí que a pluralidade que por mim é vista em ti, Deus meu, é alteridade sem alteridade, porque é uma alteridade que é identidade». No seu registo, Nicolau de Cusa e outros como ele, mesmo expondo-se à suspeita de um certo panteísmo, perceberam bem o paradoxo de um Deus em que «coincidem opostos»: outro e não-outro; alteridade e identidade. Neles a teologia exercitou aquela forma de tocar a verdade de Deus que se compõe de uma dupla e simultânea negação: Deus não é o mesmo e Deus não é o outro. De Deus saberemos sempre dizer melhor o que Ele não é.

Em tudo isto a «teo-logia» encontra um caminho. A nossa experiência do outro mostra-se, pois, um locus theologicus [lugar teológico]. Um lugar onde podemos ver inscrita na lei da vida a lógica de Deus e da relação com Ele. Mas seria ainda pouco e ficaria ainda curto, se não víssemos em tudo isto também um lugar em que algo da lógica da Trindade e da relação trinitária se desvela. Porque que coisa é a Trindade senão um Deus que é em-si-mesmo um «Eu-Tu»? Um Deus que é em-si-mesmo uma tríplice alteridade? Um Deus que é em-si-mesmo esse paradoxo da semelhança e da diferença que experimentamos quando experimentamos o outro?Um Deus que é em-si-mesmo uma «não-in-diferença»? Um Deus que é em-si-mesmo e contemporaneamente «outro (aliud)» e «não outro (non aliud)»? Pelo caminho da experiência do outro atravessamos, portanto, lugares trinitários. Nela também visitamos e somos visitados pela Trindade divina.

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

Alexandre Palma
In "A Trindade é um mistério", ed. Paulinas
Publicado em21.05.2016 | Atualizado em 18.04.2023

 

 
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Esse outro não se deixa objetivar, ou seja, não se deixa reduzir a um objeto à disposição do eu. Não se deixa encaixar naquela atitude fundamental perante o mundo que o filósofo judeu M. Buber descreveu como «Eu-Isso». Pede sim, esse outro tipo de relação também por ele formulada como «Eu-Tu»
A convicção de que Deus é por excelência o nosso Outro é um dos fundamentos da espiritualidade bíblica. A (quase) total impossibilidade de o nomear e representar são expressões religiosas e culturais de uma profunda espiritualidade e teologia. Banalizar o seu nome ou delimitar a sua figura seriam expressões de uma intolerável coisificação do outro que é Deus
A intimidade com Deus experimentada pelos místicos ter-lhes-á possibilitado a perceção de como Ele não nos é indiferente (e, por isso, é um não-outro), sem que tal «con-tacto» implique forçosamente uma diminuição da sua sagrada transcendência
Porque que coisa é a Trindade senão um Deus que é em-si-mesmo um «Eu-Tu»? Um Deus que é em-si-mesmo uma tríplice alteridade? Um Deus que é em-si-mesmo esse paradoxo da semelhança e da diferença que experimentamos quando experimentamos o outro?
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