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Leitura: “Os verbos de Deus”

“Criar”, “prometer”, “libertar”, “ordenar”, “providenciar”, “amar”: são seis “Os verbos de Deus” que o cardeal italiano Carlo Maria Martini (1927-2012) propõe numa nova publicação da Paulus Editora.

O volume recolhe as meditações proferidas pelo prelado durante um curso de exercícios espirituais a sacerdotes da diocese de Milão, em abril de 2007, em Kiryat Yearim, Israel.

«Os verbos de Deus e os milagres de Jesus representam o sonho de Deus; o sonho de um outro mundo, do Reino de Deus, de um outro modo de ser no qual nós vivamos a dimensão do e não a do ainda não. Há, portanto, um sonho de Deus que deveremos ter presente mediante os verbos que tomaremos em consideração e os milagres de Jesus», escreveu o autor na abertura da meditação do primeiro verbo.

 

Deus providencia
Card. Carlo Mara Martini
In “Os verbos de Deus”

«O Senhor é o meu pastor»

Os dois termos a quo e ad quem, que aqui definem a ação de Deus, são a saída do Egito e a chegada à Terra Prometida. Depois da libertação e do mandamento, há o momento do “cuidar”, que dura até à entrada no país, até à chegada ao monte Sião, e depois continuará indefinidamente.

E, neste período, como depois em todos os períodos da história de Israel, Deus põe à prova (Deuteronómio 8, v. 9) – o verbo hebraico é nassah –, para ver se, na verdade, Israel confia, se se entrega. Deus chega também a humilhá-lo (v. 3), para fazê-lo compreender quanto é pobre, quão pouco pode fazer sozinho.

A humilhação é, no entanto, compensada por uma grande atenção e assistência, que chega não só a saciar a fome, mas a dar também a saciedade completa. É o que encontramos em Êxodo 16,18, onde é descrito o milagre do maná: «Quando mediram as quantias, não sobrava para quem havia apanhado mais, nem faltava a quem havia apanhado menos. Cada um tinha apanhado o que podia comer.» E no mesmo capítulo, no versículo 8, lê-se: «Moisés disse ainda: “Esta tarde o Senhor vos dará carne para comerdes e, pela manhã, pão com fartura”…»



Deus podia ter abandonado o seu povo depois da Criação, podia não Se ter comprometido com a sua história, podia tê-lo libertado e, depois, tê-lo deixado caminhar por sua conta. Pelo contrário, segue-o passo a passo, e segue-o no deserto até à Terra Prometida



No texto de Deuteronómio 8, e também aqui, o verbo é saba‘, ser saciado, com as formas verbais e vocábulos que daí derivam.

Poder-se-ia discutir sobre qual fosse o fundamento histórico destas imagens, mas interessa-nos apenas considerar esta grandeza de Deus e o testemunho que Israel dá dela: Deus cuida de nós.

Vêm-nos à mente as palavras do ancião Pedro, o qual, quase a concluir a sua primeira carta com a própria experiência pessoal, escreve:

«Humilhai-vos diante da poderosa mão de Deus, a fim de que no momento certo Ele vos levante. Colocai nas mãos de Deus qualquer preocupação, pois é Ele que cuida [mélei] de vós.» (1Pd 5,6-7)

Significativamente, é o mesmo verbo grego, mélein, tomar a peito, que encontramos em MC 4,38, no texto da tempestade acalmada. Quando o barco está para se afundar e os Apóstolos interpelam Jesus: «Mestre, não te importa que morramos?»

Portanto, Deus leva a peito a nossa sorte e é isto que Israel quer dizer, é isto que proclama, isto é o seu testemunho. No texto de Deuteronómio 8, encontram-se os principais verbos indicadores da certeza que Israel tem da condução e do cuidar de Deus. Como já dissemos, Deus podia ter abandonado o seu povo depois da Criação, podia não Se ter comprometido com a sua história, podia tê-lo libertado e, depois, tê-lo deixado caminhar por sua conta. Pelo contrário, segue-o passo a passo, e segue-o no deserto até à Terra Prometida.



Deus, porque nos ama, leva-nos àquele ponto em que já não podemos recuar, com as nossas forças, nem andar em frente, com as nossas forças, mas devemos confiar n’Ele. É isto que acontece na existência humana e é aquilo que o Senhor nos ensina, com diversos acontecimentos



É relembrado também na longa oração que se lê em Neemias 9.

«Fizeram um bezerro de metal e disseram: «Este é o teu Deus que te tirou do Egito!» Cometeram uma ofensa terrível. Tu, porém, com grande compaixão, não os abandonaste no deserto. Não se afastou deles a coluna de nuvem, que os guiava de dia pelo caminho, nem a coluna de fogo, que de noite lhes iluminava o caminho que deviam percorrer.» (Ne 9,18-19)

É um facto um pouco lendário, que, no entanto, exprime muito concretamente uma intenção profunda: Deus nunca abandona, nem de dia nem de noite, mas encontra sempre maneira de acompanhar aqueles que ama.

«Deste-lhes o teu bom espírito para os tornar prudentes. Não lhes tiraste da boca o maná, e, na sede, deste-lhes água. Durante quarenta anos Tu os sustentaste no deserto e de nada sentiram falta. As suas roupas não se gastaram e os seus pés não ficaram inchados.» (Ne 9,20-21)

Neemias 9 reporta-se ao Livro do Deuteronómio e oferece-nos esta síntese completa do caminho no deserto.

Uma síntese que encontramos em muitas outras páginas da Escritura: por exemplo, quando é descrito, no Livro do Êxodo, o milagre do mar. Quando o povo e o próprio Moisés desesperam porque são perseguidos pelos egípcios, o Senhor diz a Moisés:

«Porque clamas por Mim? Diz aos filhos de Israel que avancem. Quanto a ti, ergue a tua vara, estende a tua mão sobre o mar e divide-o ao meio para que os filhos de Israel possam atravessá-lo a pé enxuto. Eu endureci o coração dos egípcios, para que vos persigam. Assim mostrarei a minha honra, derrotando o Faraó e o seu exército, com os seus carros e os seus cavaleiros, os egípcios ficarão a saber que Eu sou o Senhor.» O anjo de Deus, que ia à frente do exército de Israel, retirou-se para ficar na retaguarda. A coluna de nuvem também se retirou da frente deles e colocou-se atrás, ficando entre o acampamento dos egípcios e o acampamento de Israel. A nuvem escureceu-se, e durante toda a noite a escuridão impediu que os exércitos se aproximassem um do outro.» (Ex 14,15-20)



Deus faz com Israel, no deserto, aquilo que fez, a nível geral, com a Criação, e aquilo que quer fazer com cada um de nós



Aqui surge epicamente aumentada a narrativa, de propósito, para fazer realçar o cuidado de Deus.

É interessante comparar esta ação de Deus, que acalma e tranquiliza, com a situação em que se encontram os Judeus e o próprio Moisés, um pouco antes:

«Quando o Faraó se aproximou, os filhos de Israel levantaram os olhos e viram que os egípcios avançavam atrás deles. Cheios de medo, clamaram ao Senhor e disseram a Moisés: “Será que não havia sepulturas lá no Egito? Trouxeste-nos para o deserto para morrermos! Que foi que nos fizeste, tirando-nos do Egito? Não te dizíamos lá no Egito: ‘Deixa-nos em paz, para servirmos os egípcios?’ O que é melhor para nós? Servirmos os egípcios ou morrer no deserto?” Moisés respondeu ao povo: “Não tenhais receio de nada. Permanecei firmes e vereis o que o Senhor vai fazer hoje para vos salvar. Os egípcios que hoje vedes nunca mais voltareis a vê-los. O Senhor combaterá por vós. Podeis ficar tranquilos.» (EX 14,10-14)

Desta exaltação épica, em particular dos versículos 11-12, podemos também extrair assunto para refletir sobre uma profunda e dramática verdade (a mesma que um grande autor como Dostoiévski representará admiravelmente em Os Irmãos Karamazov, um romance que tem como protagonista «o grande Inquisidor)»: o homem tem medo da liberdade. Os Judeus teriam preferido ficar a servir no Egito a arriscar o caminho no deserto; tiveram quase de ser forçados, “ser lançados” no deserto. Porque queremos sempre fazer aquilo que é mais fácil, o que é mais cómodo, aquilo que sempre se fez. Mas o Senhor arrisca com quem arrisca. Tudo anotações significativas para mostrar quem é o Deus de Israel.

Podemos citar também outras passagens, como esta do Livro do Êxodo:

«Quando o Faraó deixou partir o povo, Deus não o guiou pelo caminho da Palestina, que é o mais curto, porque Deus achou que, diante dos ataques, o povo se arrependeria e voltaria para o Egito. Então Deus fez com que o povo desse uma volta pelo deserto até ao mar Vermelho. Os filhos de Israel saíram do Egito bem armados.» (Ex 13,17-18)



A Eucaristia é o modo pelo qual Deus nos mostra de forma visível e tangível o seu próprio cuidado, proximidade, presença, atenção ao nutrir-nos. E é também o modo pelo qual Deus torna também, já de uma maneira presente, como antecipação, o banquete celeste



Vemos que a condução de Deus se preocupa com o medo daquela gente e quer forçá-la a arriscar, a avançar, a confiar totalmente n’Ele.

Esta observação é certamente de grande importância: Deus, porque nos ama, leva-nos àquele ponto em que já não podemos recuar, com as nossas forças, nem andar em frente, com as nossas forças, mas devemos confiar n’Ele. É isto que acontece na existência humana e é aquilo que o Senhor nos ensina, com diversos acontecimentos, nem sempre tão dramáticos. Mas sempre emerge uma verdade em nós próprios: podemos andar em frente, apenas confiando totalmente n’Ele.

Tudo é expresso poeticamente no Salmo 23, que resume, de várias maneiras, tudo o que dissemos até agora e onde aparecem os verbos-chaves que indicámos, nahal, naha, nihem, «conduzir», «repousar», «confortar».

Leiamo-lo, para compará-lo com a realidade que vimos.

«O Senhor é o meu pastor. Nada me falta. Em verdes pastagens me faz repousar; para fontes tranquilas me conduz, e restaura as minhas forças. Ele me guia por bons caminhos, por causa do seu nome. Embora eu caminhe por um vale tenebroso, nenhum mal temerei, pois estás junto a mim; o teu bastão e o teu cajado deixam-me tranquilo. Diante de mim preparas a mesa, à frente dos meus opressores; unges a minha cabeça com óleo, e a minha taça transborda. Sim, a felicidade e o amor me acompanham todos os dias da minha vida. A minha morada é a casa do Senhor, por dias sem fim.» (Sl 23)



Os Judeus teriam preferido ficar a servir no Egito a arriscar o caminho no deserto; tiveram quase de ser forçados, “ser lançados” no deserto. Porque queremos sempre fazer aquilo que é mais fácil, o que é mais cómodo, aquilo que sempre se fez



Como vedes, o salmo utiliza duas séries de imagens: as imagens pastorais (o rebanho é guiado, é seguido e conduzido pelos pastores) e as imagens hospitaleiras (senta-nos à mesa e oferece-nos uma mesa segura, na qual a pessoa se encontra à sua vontade, derrama óleo sobre a cabeça).

É com uma grande riqueza de imagens que é apresentado o amor de Deus pelo seu povo e o cuidado que Ele tem com cada um daqueles que se Lhe dirigem com confiança. Por outras palavras, é como se o Senhor dissesse: Eu estou aqui contigo, estou próximo de ti, estou do teu lado, faço força por ti, tem confiança em Mim!

E em Números 11 encontramos até uma outra metáfora:

«[Moisés] disse ao Senhor: «Porque tratas tão mal o teu servo? Porque gozo tão pouco do teu favor, a ponto de me impores o peso de todo este povo? Porventura fui eu que concebi ou dei à luz este povo, para que me digas: “Toma este povo nos braços, tal como a ama leva a criança ao colo, e leva-o para a terra que Eu jurei dar aos seus pais?”» (Nm 11,11-12)

Num momento de desconforto, Moisés repreende Deus, recordando-Lhe que foi Ele que concebeu o povo, foi Ele que o gerou. A par da metáfora do pastor e da do hóspede, eis a da mãe.

Com várias metáforas, portanto, a Escritura procura fazer-nos compreender a confiança que devemos ter em Deus e a forma de nos abandonarmos a Ele. Deus faz com Israel, no deserto, aquilo que fez, a nível geral, com a Criação, e aquilo que quer fazer com cada um de nós.

 

A Eucaristia, contínua proximidade de Deus

Faço uma breve menção ao Novo Testamento, para que possais meditar prosseguindo esta linha do cuidado de Deus, que Jesus retoma e continua.

Fundamental é o episódio da multiplicação dos pães, que recorda o milagre do maná. Leio os versículos mais significativos. Eles seguiram o Mestre, veio a noite, os discípulos disseram-Lhe: manda-os embora para que encontrem de comer.

«Mas Jesus disse-lhes: “Eles não precisam de se ir embora. Dai-lhes vós de comer.” Os discípulos responderam: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes.” Jesus disse: “Trazei-mos cá.” Jesus mandou que as multidões se sentassem na relva. Depois tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu os pães e deu-os aos discípulos; os discípulos distribuíram-nos às multidões. Todos comeram, ficaram satisfeitos, e ainda recolheram doze cestos cheios de pedaços que sobraram.» (MT 14,16-20)

Todos ficaram saciados, como no deserto. Jesus entra na dinâmica da condução e da alimentação, toma esta herança da tradição de Israel e nesta passagem é muito visível como Ele a condensa na Eucaristia. O facto de tomar os pães, benzê-los e distribuí-los é, certamente, um facto eucarístico.

Podemos então dizer que a Eucaristia é o modo pelo qual Deus nos mostra de forma visível e tangível o seu próprio cuidado, proximidade, presença, atenção ao nutrir-nos. E é também o modo pelo qual Deus torna também, já de uma maneira presente, como antecipação, o banquete celeste, ou seja, a plenitude da vida eterna, aquela que Ele nos promete.



Todos os verbos nos levam a reconhecer o rosto de um Deus que não está nem fora nem longe do mundo, mas que Se compromete concretamente connosco. Toda a espiritualidade judaica, que depois se torna na espiritualidade cristã, é uma espiritualidade do compromisso, da aliança; e por isso, também, da resposta afetuosa e sincera a esta atenção de Deus para connosco



Concluindo, podemos dizer: o Deus que guia, que nutre e que põe à prova quando é necessário é Aquele que pode transformar qualquer circunstância de abandono, de depressão, de ameaça num lugar de disciplina, ordem, alimento e vida. Os verbos que exprimem como Deus segue o seu povo e o nutre indicam a sua recusa de aceitar as circunstâncias de maldição e de humilhação que trazem a morte e, pelo contrário, o seu desejo de tornar efetiva a possibilidade de uma vida boa também em situações difíceis. É este o “sonho de Deus”.

E aqui devemos então deter-nos e refletir sobre como este “sonho de Deus” se pode manifestar em nós.

Certamente, como dizíamos já falando dos verbos de ordem, é algo que diz, antes de mais, respeito à sociedade, que deve realizar a igualdade e a justiça ou, pelo menos, a equidade. Diz depois respeito à ajuda que nós possamos dar àqueles que nos estão próximos e que conhecemos. Diz respeito ao nosso cuidado com uma comunidade concreta, para que nela haja aquela igualdade, aquela harmonia, aquela serenidade que é exatamente o sinal do cuidado de Deus.

E diz respeito também a cada um de nós, porque cada um de nós é objeto do cuidado de Deus. Diz respeito, por isso, à nossa capacidade de nos entregarmos a Deus e de agirmos com serenidade e tranquilidade, não nos deixando tomar pelo pânico, pelo susto, pelo temor e pela agitação ou até pelo terror por aquilo que nos espera, porque estamos nas mãos de um Pai bom. Como dizia Santo Ambrósio: «Não tenho temor de viver, porque não me parece ter-me comportado mal, mas também não tenho medo de morrer porque temos um Pai e um Juiz bom.»

Esta parece-me poder ser a síntese de quanto dissemos sobre alguns verbos da ação divina. Que, naturalmente, não são senão a introdução a muitos verbos análogos, porque os verbos que indicam o agir divino são muitíssimos. Todos, no entanto, nos levam a reconhecer o rosto de um Deus que não está nem fora nem longe do mundo, mas que Se compromete concretamente connosco. Toda a espiritualidade judaica, que depois se torna na espiritualidade cristã, é uma espiritualidade do compromisso, da aliança; e por isso, também, da resposta afetuosa e sincera a esta atenção de Deus para connosco.

Sobre isto podemos examinarmo-nos, porque é muito importante para dar à nossa vida aquele toque de verdade, de graça, de familiaridade; importante para que possamos viver verdadeiramente a vida de Deus e proclamar a sua glória nesta realidade, que também é marcada por tanto sofrimento e tanta escuridão.



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Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 17.01.2019 | Atualizado em 20.04.2023

 

Título: Os verbos de Deus
Autor: Carlo Maria Martini
Editora: Paulus
Páginas: 112
Preço: 10,00 €
ISBN: 9789723020762

 

 
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