Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

"O vos omnes": Concerto meditativo

O lacrymae deliciae spirituales,
super mel videlicet et favum,
atque omni nectare dulciores!

Ó lágrimas, delícias espirituais,
mais doces que o mel e o favo do mel,
mais doces que todo o néctar!

S. Pedro Damião



1. Do rio a desaguar na atenção

Esposende! Esposende! Para se consumar, o rio Cávado desce a teus braços, abertos de margem a margem, ao leito largo, à ponte que reúne, para se consumar ― repito ― no estuário da tua atenção, como se bebe um silêncio.

De desaguar, no fluido encontro das águas, ele sente-se lençol de azuis lavados a dançar ao ritmo pendular das marés, trono deslizante para aves e barcos… nos espelhos da memória, e caminho de alevins e dos peixes maiores.

Há doçura e há sal. Há montanhas descidas e há profundezas ascendentes. Há ventos e há rocios. Há juncos e há ínsuas. Há música de prumas nos pinhais, há vagas a entoar hinos atlânticos à chuva. E dentro, bem dentro de nós, há disponibilidade para acolher o rumor da esperança.

As palmeiras agitam-se ao longo da ciclovia! ― Estará alguém a dar entrada?

Teu ouvido estremecerá de escutar o ósculo dos cânticos, de boca para boca: assim os lábios se banham de tanto silenciar, de tanto inclinar ao coração. Assim é a humildade da noite, em nós acesa na aspereza dos dias, num tempo de fogo. Assim será hoje este concerto meditativo, como rio de primavera adveniente, de um mistério paradoxal a desaguar em nós.

Nele iremos navegar ao vento de palavras, à brisa de sons: em melodias novas e antigas, com todas as letras em latim, iremos avançar pelo mistério adentro, até ao seu fundo, às suas distâncias e seu centro, como pelos braços de um rio que alegra a cidade (cf. Sl 46, 4-5), com o farol da fé a soar, a iluminar a distância.

Abram-se os sonos sem sonhos ao rumor da preparação do mistério pascal. Está próxima a festa da Páscoa! Que os sons iluminem os pés quaresmais, junto à porta, sobre o tapete do deserto.



Imagem Joaquim Félix de Carvalho


2. Tange a língua pelo mistério do corpo

Começamos por ouvir um hino latino «Pange lingua gloriosi corporis mysterium». Foi escrito, no século XIII, pelo ‘Doutor Angélico’, São Tomás de Aquino. Destinava-se ao ofício litúrgico do Corpus Christi, a solenidade do Corpo de Deus.

Em nossos dias, este sublime hino eucarístico é cantado também na liturgia da missa da tarde de Quinta-Feira Santa, na qual se comemora a instituição do sacramento da Eucaristia. De facto, por norma, é o cântico que acompanha a trasladação do vaso eucarístico, com o Pão da Vida, desde o altar até ao sacrário onde é deposto, mesmo na sacristia, para que aí permaneça até ao dia seguinte, Sexta-Feira Santa, a fim de ser distribuído durante a Celebração da Paixão, como ‘dom pré-santificado’.



Imagem Joaquim Félix de Carvalho


Pange, lingua, gloriosi
corporis mysterium,
sanguinisque pretiosi,
quem in mundi pretium
fructus ventris generosi
Rex effudit gentium.

Nobis datus, nobis natus
ex intacta Virgine,
et in mundo conversatus,
sparso verbi semine,
sui moras incolatus
miro clausit ordine.

 

Que acaba de cantar a língua? Por onde se soltou ela? Que ecos permanecem no ouvido do nosso corpo estremecido? Ah! as línguas apascentaram-se, por um céu de boca, em mistério. Na abóbada deste lugar, a língua cantou o glorioso mistério do «corpo e do sangue precioso, derramado pelo mundo». Faz-nos lembrar «a missa sobre o mundo», na expressão do padre Teilhard de Chardin (1) . Sim, sim, fruto do mundo, num «ventre generoso» de «intacta virgem». Ele é o dom por nós nascido, que por nós «espalha a semente da palavra», no «tempo certo», que permanece a germinar num «rito admirável», a eucaristia. Eis porque poderíamos saudá-lo também com a antífona escrita e musicada por Hildegarda de Bingen: «Ó púrpura de sangue, / fluíste de excelsa altura / tocada por Deus / tu és a flor / que o sopro da serpente / jamais lesou» (2) .

 

In supremae nocte Cenae
recumbens cum fratribus,
observata lege plene
cibis in legalibus,
cibum turbae duodenae
se dat suis manibus.

Verbum caro panem verum
verbo carnem efficit,
fitque sanguis Christi merum,
et, si sensus deficit,
ad firmandum cor sincerum
sola fides sufficit.

 

O hino prossegue focado agora «na noite da última ceia», quando Jesus, rodeado dos Doze, instituiu a sua Páscoa, segundo o programa ritual de uma ceia festiva judaica. Entregou-se em alimento, com palavras acrescidas, que fizeram do Pão, seu Corpo, e do vinho, seu Sangue.

É difícil de entender? Sim, outrora como hoje. Eis porque São Tomás propõe, para superação da dificuldade, a fé: «E como os sentidos falham, / Para firmar um coração sincero / Apenas a fé é eficaz».

A última parte do hino, que tantas vezes usamos na ‘Adoração do Santíssimo’, é dedicada ao «tão sublime sacramento», na atitude corporal da veneração, isto é, inclinados com a mais elevada doxologia: «Por tão nobre realidade / Da divina Eucaristia / À Santíssima Trindade / Dêmos graças cada dia, / Arda a Fé e a caridade / Em pleníssima harmonia» (última estrofe do hino, neste concerto, não cantada).

 

Tantum ergo sacramentum
veneremur cernui,
et antiquum documentum
novo cedat ritui;
praestet fides supplementum
sensuum defectui.



Imagem Joaquim Félix de Carvalho


3. Do ajoelhar aos vexilos avançantes

 

Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi,
quia per crucem tuam redemisti mundum.

 

Acabámos de ouvir a antífona "Adoramus Te" e preparamo-nos para o hino latino "Vexilla Regis", atribuído ao poeta Venâncio Fortunato. Na antífona, lembramo-nos da nossa adoração da Cruz, ao início de cada estação da ‘Via Sacra’, e que faremos, também, na liturgia vespertina de Sexta-Feira Santa.

Porque ajoelhamos? Como ajoelhar à cruz? Romano Guardini, em «Sinais Sagrados», sugere-nos o modo: «Quando dobrares o joelho, não o faças apressadamente e de forma descuidada. Dá alma ao teu acto! E que a alma do teu ajoelhar consista em inclinar também o coração diante de Deus, em profunda reverência» (3).

É nessa atitude na ‘rótula fletida’ que iremos, de seguida, escutar o hino «Vexilla Regis», seguramente, uma das maiores gemas da poesia da Igreja latina. Que, de tão acutilante para os sentimentos, faz rebentar os ouvintes em espiritual comoção. Pura, sim, sem sentimentalismos.

Foi cantado pela primeira vez a 19 de novembro do ano de 569, numa procissão na qual se transportava uma relíquia da Santa Cruz, supostamente a verdadeira, que tinha sido enviada pelo Imperador Justino II do Oriente; procissão esta feita entre Tours e o mosteiro de Saint-Croix, em Poitiers, onde residia Santa Radegunda, que fora quem a solicitara.

Atualmente, o Missal Romano prevê que se possa cantá-lo, na Sexta-Feira Santa, durante o percurso que se faz com a píxide da Eucaristia, desde o local onde tinha sido colocada na Quinta-Feira Santa e o altar. Na Liturgia das Horas, este hino pode cantar-se «desde as Vésperas I do Domingo de Ramos até à Noa da Quinta-Feira Santa inclusive» (4), e nas Vésperas das festas da Santa Cruz.

Traduzo só a primeira estrofe para despertar o desejo e a comoção: «Do Rei avançam estandartes / Fulge o mistério da cruz / onde a vida padece a morte / e na morte a vida produz».

 

Vexilla Regis prodeunt,
fulget crucis mysterium,
quo carne carnis conditor
suspensus est patibulo.

Quo, vulneratus insuper
mucrone diro lanceae,
ut nos lavaret crimine,
manavit unda et sanguine.

Impleta sunt quae concinit
David fideli carmine,
dicens: In nationibus
regnavit a ligno Deus.

Arbor decora et fulgida
ornata regis purpura,
electa digno stipite
tam sancta membra tangere!

Beata, cuius brachiis
saecli pependit pretium,
statera facta est corporis
praedam tulitque tártari.

Salve, ara, salve, victima,
de passionais gloria,
qua vita mortem pertulit
et morte vitam réddidit!

O crux ave, spes unica!
hoc passionis tempore
piis adauge gratiam
reisque dele crimina.

Te, fons salutis, Trinitas,
collaudet omnis spiritus;
quos per crucis mysterium
salvas, fove per saecula. Amen.



Imagem Joaquim Félix de Carvalho


4. Mapa de rosto afrescado

«Oh vós todos que passais pela via:/ Vinde e vede se há dor como a minha dor». Este versículo, que aliás deu título ao concerto, pertence ao Livro das Lamentações, de Jeremias (Lam 1,12). Foi transformado em antífona e em responsório (nas Matinas de Sábado Santo).

É conhecido como o «Cântico da Verónica», que continua a ser interpretado nas procissões do Senhor dos Passos, ou dos Santos Passos, e na liturgia de Sexta-Feira Santa. A tradição colocou estas palavras da enlutada Jerusalém, na boca de Verónica, que enxugou o rosto de Jesus a caminho do Calvário, tendo-se impresso no lenço a suor e sangue. Na verdade, não dispomos de fontes bíblicas que refiram este este gesto feminino. Talvez haja uma associação entre o nome e a mulher e o lenço. «Verónica» significa, traduzido do grego e do latim, «vero ícone», «verdadeira imagem». Eis porque, de poética forma, podemos ditá-lo assim: «O nome embebe-se totalmente / do rosto. É a relíquia da sua ternura // Verónica, o teu nome é um ícone / verdadeiro a limpar cuspe e poeira // Cristo é um nome cheio de véu / mapa de rosto afrescado a ouro» (5). Hoje, onde enxugaremos este Rosto? Sim, é isso mesmo: Em todos os sofredores que atravessam cidades e aldeias, como Jesus pelas ruas de Jerusalém.

Após o «Canto da Verónica», iremos escutar a nossa atitude suplicante, na semelhança do que sucede nos «Impropérios» (6), na Sexta-Feira Santa. À primeira pergunta de Deus ― «Meu povo, que mal te fiz eu? Em que te contristei? Responde-me.» ―, como a todas as outras perguntas, que poderíamos nós responder? Neste concerto, iremos escutar a resposta no hino «Attende Domine» e no motete «O Bone Jesu», nos quais se suplica misericórdia e escuta atenta para quem eleva os olhos em lágrimas. A fazer lembrar o pedido do Dom das Lágrimas, nesta oração: «Vacilas por ternura Deus omnipotente / da pedra fonte da água viva rompeste / a um povo sedento / retira da nossa dureza a compunção das lágrimas / longo pranto por nossos olhos concede / pois vendo-nos assim te compadeces / e obtemos remissão» (7).

 

O vos omnes qui transitis per viam:
attendite et videte si est dolor sicut dolor meus.

 

Attende Domine, et miserere, quia peccavimus tibi

 

Ad te Rex summe, omnium Redemptor,
oculos nostros sublevamus flentes:
exaudi, Christe, supplicantum preces.

Dextera Patris, lapis angularis,
via salutis, ianua caelestis,
ablue nostri maculas delicti.

Rogamus, Deus, tuam maiestatem:
auribus sacris gemitus exaudi:
crimina nostra placidus indulge.

Tibi fatemur crimina admissa:
contrito corde pandimus occulta:
tua, Redemptor, pietas ignoscat.

Innocens captus, nec repugnans ductus;
testibus falsis pro impiis damnatus
quos redemisti, tu conserva, Christe.

 

O bone Jesu, exaudi me
Et ne permittas me separari a te
Ab hoste maligno defende me
In hora mortis meae
Voca me et pone me juxta te
Ut cum angelis et sanctis tuis
Laudem te, Dominum, Salvatorem meum
In saecula saeculorum. Amen.

 

Locus iste a Deo factus est inaestimabile sacramentum,
irreprehensibilis est (8).



Imagem Joaquim Félix de Carvalho


5. Rosto orvalhado como um lírio (9)

A dançarina Martha Graham desenvolveu uma longa carreira, por mais de setenta anos, tendo falecido a 1 de abril de 1991, aos 97 anos. Sensível à beleza do corpo, nas suas articulações com o divino, saltou os cânones clássicos da dança, através da invenção de inéditas linguagens do movimento, para revelar os sentimentos mais profundos da experiência humana: paixão, raiva, êxtase, dor. Sentimentos que ela experimentou, ao longo da sua vida.

Decorria o ano de 1930, quando Martha apresentou, em Brooklyn, a dança Lamentação. Ainda não a tinha dançado muitas vezes. Segundo ela, era uma dança de tempos imemoriais, antiquíssima, portanto, tal como o tema; era «a tragédia que obsidia o corpo»11. Esse obsidiar, em cerco total do corpo, depreendia-se imediatamente no desenho do seu vestido, que ela qualifica como um ‘tubo’. Dentro desse ‘tubo’, violáceo, o corpo debatia-se, como alguém que «estivesse esticando-se dentro da própria pele».

No final dessa apresentação em Brooklyn, uma jovem procurou-a, para lhe dizer: «A senhora nunca saberá o que, esta noite, fez por mim. Obrigada». E, depois destas palavras, saiu. Martha precisava de mais informação para entender o agradecimento. Na sua memória ficou impresso o seu rosto; segundo ela, calmo, mas duma serenidade que sucede no rasto das lágrimas. Interessada, procurou saber algo mais sobre aquela jovem. Disseram-lhe, entretanto, que ela teria visto o seu filho morrer à sua frente, atropelado por um camião. Todavia, perante a dramaticidade do infortúnio, ela não conseguiu chorar. O choque terá sido tal, que se lhe fechara o próprio corpo. Fizeram esforços para que ela chorasse, mas em vão; definitivamente, não vertera uma lágrima.

Este tipo de comportamento não pode ser lido na perspetiva da ‘insensibilidade’; para mais, de uma mãe. A psicologia consegue identificar possíveis causas de tais reações, aparentemente ‘incomuns’. E pode, como é desejável, ajudar as pessoas a superar tais experiências traumáticas. Sucedeu que, no caso desta jovem mãe, foi a dança Lamentação que ‘desbloqueou’ o seu choro. Martha Graham acabaria por revelar a sua confidência: «Mas quando viu Lamentação, ela disse que a dor era digna de honra e que era universal. E que ela não precisava de ter vergonha de chorar pelo seu filho». Naquela dança, ela experimentara o corpo cercado a debater-se, a estremecer à vibração das cordas do piano à força de martelos. Corpo que, às vezes, era todo cálice levantado, poço onde se cai profundamente, súplica e grito em vastos ecos, carícia de mão para mão, rosto derrubado até ao chão e sob a máscara da dor…, vinculado e suportado por um largo banco. E, então, ela chorou.

Há danças e cânticos que rebentam os diques do corpo. Não temos de ter vergonha de chorar. Nem perante a morte dos outros, multiplicada neste tempo de guerras e violências, nem mesmo no escuro silêncio de um filme. José Tolentino Mendonça, na introdução ao livro O dom das lágrimas, chama a atenção para a vergonha que nos pode atingir: «Talvez a nossa civilização repita incessantemente o gesto de Ulisses, que preferiu cobrir a face, com um largo manto de púrpura, quando, ao escutar o canto do aedo, se envergonhava que lágrimas lhe caíssem dos olhos» (11). Mais do que ao toque da lira, numa viagem de regresso definitivo, também nos são oferecidas as lágrimas, como um dom. Não o recusemos nem o escondamos. A vergonha não pode tornar-se máscara de nossos flumíneos rebentamentos. Como recorda José Tolentino, as lágrimas tornaram-se a ‘marca flúmen’ de outros navegadores do espírito (nos Padres e Madres do deserto e da Igreja, nos místicos, etc.), bem expressa na tradição cristã, que se hidrata na tradição bíblica, desde logo nas lágrimas de Cristo.

Na sequência da expressão «pelas minhas lágrimas, conto uma história», de Roland Barthes, José Tolentino apresenta-as assim: «As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e o modo como o fazemos revela não só a temperatura dos sentimentos, mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos, mas choramos sempre para um outro ver. As lágrimas emprestam um realismo único, irresistível à dramática expressão de nós próprios. São um traço tão pessoal como o olhar ou o mover-se ou o amar»13. E, no final da introdução, após a colação de registos patrísticos, acrescenta: «as lágrimas são uma fala estimada, uma chuva de ouro, um alagado lençol de piedade que dança sobre o mundo. Elas soletram, à imensa escuta de Deus, o segredo da compunção. E a compunção é o ordálio da alma, um trânsito que nos reconcilia com a inapagável saudade de Deus» (13).

De seguida, vamos escutar a sequência Stabat Mater, atribuída ao franciscano Jacopone da Todi, que a terá escrito durante o seu cativeiro, no século XIII, depois de ter criticado publicamente o Papa Bonifácio VIII. Em vinte estrofes, o texto da sequência descreve o sofrimento de Maria, Senhora de Dores, e abre-se em súplicas, primeiro a Jesus e, depois, a sua mãe. Vamos ouvir essas súplicas cantadas. Porém, poderíamos acrescentar mais esta, a partir das palavras de José Augusto Mourão: «Senhora das nossas dores / que não conhece o mundo, amargas, // Senhora das sete espadas / cobrindo a eira toda // que vês os fogos varrer os montes / e estremecer as bouças, // sê nosso transporte / para a fala livre, emancipada / a água que regue os votos semeados, // Senhora das muitas dores / do Cristo sofrente, / dos amores magoados, // que o Pai nos socorra / e console o Espírito / nesta hora e sempre» (14).

Em Maria, que estava de pé, junto de Jesus crucificado, podemos dizê-lo com a penúltima estrofe do (Stabat Mater) ditado pelo poeta José Bento: «Tudo nela ruiu, os seus escombros / são o mais intenso túmulo, / sem ter onde vá sorver a força/ para sumir-se no apagamento/ de si mesma e de tudo, / até da manhã que a saudou a anunciar-lhe/ o fruto que a sua flor tinha alcançado.» (15)

Que o nosso rosto seja, no escuro desta noite, semelhante ao de Maria: um lírio «todo orvalhado de pranto» (da sequência Stabat Mater, estrofe 14).



Imagem Joaquim Félix de Carvalho


Stabat mater dolorosa
Juxta crucem lacrimosa
Dum pendebat filius
Cuius animam gementem
Contristantam et dolentem
Pertransivit gladius

O quam tristis et afflicta
Fuit illa benedicta Mater unigeniti
Quae maerebat et dolebat
Et tremebat, cum videbat
Nati poenas incliti Quis est homo qui non fleret
Matrem christi si videret
In tanto supplicio?
Quis non posset contristari
Piam matrem contemplari
Dolentem cum filio?

Pro peccatis suae gentis
Jesum vidit in tormentis
Et flagellis subditum
Vidit suum dulcem natum
Morientem desolatum Dum emisit spiritum

Eja mater fons amoris
Me sentire vim doloris
Fac ut tecum lugeam
Fac ut ardeat cor meum
In amando christum deum
Ut sibi complaceam

Sancta mater, istud agas
Crucifixi fige plagas
Cordi meo valide
Tui nati vulnerati
Tam dignati pro me pati
Poenas mecum divide!

Fac me vere tecum flere
Crucifixo condolere
Donec ego vixero
Juxta crucem tecum stare
Te libenter sociare
In planctu desidero

Virgo virginum praeclara
Mihi jam non sis amara
Fac me tecum plangere
Fac ut portem christi mortem
Passionis eius sortem
Et plagas recolere

Fac me plagis vulnerari
Cruce hac inebriari
Ob amorem filii Inflammatus et accensus
Per te virgo sim defensus
In die judicii

Fac me cruce custodiri
Morte christi praemuniri
Confoveri gratia
Quando corpus morietur
Fac ut animae donetur
Paradisi gloria
Amen

 

Beati omnes qui timent Dominum,
Beati omnes, qui ambulant in viis ejus (16).



Imagem Joaquim Félix de Carvalho


6. Em Brooklyn como em Esposende: a gratidão por um ‘não saber’ que faz tanto!

Maria estava de pé, chorando, junto à cruz com seu Filho. Chorou, mas, depois, alegrou-se. Segundo uma tradição, muito difundida por Santo Inácio de Loyola, foi a ela que, em primeiro lugar, terá aparecido Jesus Ressuscitado, na manhã de Páscoa. Por isso, é uma consolação dirigir-lhe esta «Ave Maria» final, antífona musicada por John Trotta. Com ela, sentimo-nos bem-aventurados ― Beati Omnes ―, solidários nas dores e nas alegrias de Maria, e de todos os outros nossos irmãs e irmãs.

Tal como no fim da dança «Lamentação», apresentada em Brooklyn, aquela jovem mãe agradeceu a Martha Graham, agora somos nós que, aqui nesta igreja da Misericórdia de Esposende, dizemos ao Coro Ars Vocalis, à sua maestrina Helena Venda Lima e ao organista Diogo Zão: «Vós nunca sabereis o que, esta noite, fizestes por nós. Obrigado».

 

Ave Maria, gratia plena Dominus tecum
benedicta tu in mulieribus
et benedictus fructus ventris tui, Iesus.
Sancta Maria, Mater Dei,
ora pro nobis peccatoribus
nunc et in hora mortis nostrae.
Amen.



Imagem Joaquim Félix de Carvalho




Este texto corresponde à criação das Meditações e respetiva leitura, pelo padre Joaquim Félix, para o Concerto Meditativo "O vos omnes", realizado com o Grupo Coral Ars Vocalis, na igreja da Misericórdia, Esposende, no dia 25 de março de 2023, integrado na programação cultural das Solenidades da Quaresma e Semana Santa de Esposende.
(1) Pierre Teilhard de Chardin, Hino do Universo. Tradução de Miguel Serras Pereira (Lisboa: Editorial de Notícias, 1997).
(2) Hildegard von Bingen, Flor Brilhante, Introdução e tradução Joaquim Félix de Carvalho, José Tolentino Mendonça (Lisboa: Assírio & Alvim, 2004), 179.
(3) Romano Guardini, Sinais Sagrados (Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2017), 17-18.
(4) Igreja Católica, Liturgia das Horas, vol 2 (Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2009), 375-376.
(5) Joaquim Félix de Carvalho, Poema inédito, a ser usado numa ‘Via Sacra’ na cidade de Braga.
(6) Igreja Romana, Missal Romano (Fátima: Conferência Episcopal Portuguesa, 2022), 301-302.
(7) O dom das lágrimas. Orações da antiga liturgia cristã, introdução e tradução de Joaquim Félix de Carvalho – José Tolentino Mendonça (Lisboa: Assírio & Alvim, 2002), 25.
(8) Este moteto foi composto, a 11 de agosto de 1869, por Anton Bruckner, para a dedicação da capela votiva na nova catedral de Linz, na Áustria. O texto faz parte do Gradual latino, para a celebração da dedicação de uma igreja.
(9) O texto que se segue foi em grande parte ‘repescado’ de um artigo por mim escrito (Joaquim Félix de Carvalho, «Lamentação e lágrimas: Martha Graham e Senhora das Dores», in Cenáculo 217 (2021) 31-33); todavia, na parte final, fiz um desenvolvimento ajustado, neste caso, ao Stabat Mater.
(10) Para esta e outras declarações: https://www.youtube.com/watch?v=xgf3xgbKYko. Acesso: 23 03.2021.
(11) Joaquim Félix de Carvalho, José Tolentino Mendonça (tr.), O dom das lágrimas. Orações da antiga liturgia cristã (Lisboa: Assírio & Alvim, 2002), 11.
(12) Ibidem, 12.
(13) Ibidem, 14.
(14) José Augusto Mourão, O nome e a forma. Poesia reunida (Lisboa: Pedra Angular, 2009), 159.
(15) José Tolentino Mendonça – Pedro Mexia (ed.), Verbo. Deus como interrogação na poesia portuguesa (Porto: Assírio & Alvim, 2014), 115-116.
(16) Do compositor Ivo Antognini, com texto latino extraído dos salmos 127 e 128.




 

Texto e imagens: Joaquim Félix de Carvalho
Publicado em 08.10.2023

 

 
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Impressão digital
Paisagens
Prémio Árvore da Vida
Vídeos