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O tempo dos três P

O excerto evangélico de Quarta-feira de Cinzas (Mateus 6, 1-6 e 16-18) é como o diapasão que dá a nota musical para que a Quaresma tenha ressonância na nossa existência concreta. O evangelista coloca diante dos nossos olhos, em sequência, os ensinamentos de Jesus sobre os três pilares da piedade judaica: a esmola (o Pão a dar ao pobre), a oração (a Palavra de Deus a observar) e o jejum (a Penitência a viver). Os três ensinamentos estão claramente dispostos em paralelo, apresentando a mesma construção literária: o exemplo de um comportamento a evitar que se revela autorreferencial; a enunciação do verdadeiro sentido da obra de piedade; a certeza na recompensa da parte do Pai.

O versículo 1 constitui uma espécie de chapéu introdutório relativamente às três obras de justiça. Jesus adverte para a exibição exterior na sua execução. Podemos interrogar-nos em que relação se coloca aquela recomendação com uma outra frase do discurso da montanha: «Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e deem graças ao vosso Pai que está nos Céus» (5, 16). As obras, então, devem permanecer ocultas ou devem ser conhecidas. A relação entre 6,1 e 5,16 não é, efetivamente, simples de articular, quanto à materialidade da ação. Certamente, entre os dois passos há uma diferença de perspetiva: em 5, 13-16 Jesus evidenciava as consequências positivas do comportamento segundo as bem-aventuranças, quando se torna um estilo de vida comunitário; em 6, 1-18, por seu lado, a atenção é colocada sobre a interioridade, isto é, sobre a intencionalidade com que cada crente realiza as obras de justiça. Por isso, para Jesus a boa obra não deve ser realizada para segundas intenções, estranhas ao bem que a própria obra traz consigo.



O propósito das três obras de justiça, apartadas daquilo que poderia constituir aparência e vanglória, resulta ser a conservação da relação com Deus; uma relação não genérica, funcional ou servil, mas caracterizada pela experiência da paternidade



A polémica de Jesus é deliberadamente irónica: não está atestada, em algum texto antigo, o uso de tocar a trompa no momento de dar a esmola. A imagem, deliberadamente exagerada, é funcional para colocar em evidência a intenção do coração. Tornar público um ato de caridade demonstra que o coração não se saciou com o ato em si, que por isso se revela instrumentalizado para obter uma gratificação posterior, que resulta ser o verdadeiro propósito da boa obra realizada. Se o ato de caridade não é o objetivo, deixa de ser sincero, pelo que aquele que o está a realizar está a fazer um papel. A isso alude o termo “hypokrités”, de que deriva o nosso “hipócrita”, mas que na origem indicava o ator de teatro. À hipérbole da trompa corresponde a imagem das duas mãos: a esmola dever ser de tal maneira reservada, que nem a mão esquerda deve saber que a mão direita a realizou.

O segundo quadro concentra-se na atitude interior no momento da oração. Como dito antes, em relação à evidenciação com que se realiza a obra, Jesus não renega a oração comunitária, que, de resto, está implicitamente contida no texto do Pai-nosso, em que as petições se expressam no plural. Aqui, todavia, com uma outra imagem deliberadamente exagerada, preocupa-se em mostrar os riscos da ausência de cuidado da própria interioridade. Especificamente, uma oração apenas exterior coloca em risco a relação com o Pai. Jesus mostra, constantemente, com as palavras e com o exemplo, a exigência de uma relação pessoal e estreita com Deus; isto é possível quanto mais sincero e contínuo é o diálogo com Ele. A oração solitária, portanto, não está em oposição com a oração pública e comunitária; antes, torna-se o meio para manter vivo o diálogo com Deus e exprimir, com toda a liberdade, aquilo que se move no próprio coração.



O que acontece quando tudo aquilo que constitui a nossa existência é realizado «para se ser feito admirar», «para se ser considerado justo» sob todos os aspetos? A relação vai inexoravelmente rumo ao fracasso. Deixamos de estar ligados / unidos ao outro, porque o ato que partia de nós para os outros / o Outro regressa a nós



No Antigo Testamento o jejum assume diversos significados: penitência pelos pecados, dor por um luto, esconjuro contra uma desgraça, preparação para receber um dom particular de Deus. A crítica de Jesus também aqui está contida numa hipérbole: como os atores se maquilham de usam máscaras para a sua interpretação, assim também os hipócritas não só mostram os sinais do jejum mas acentuam-nos, chegando a desfigurar-se o a cobrir o rosto, de maneira a fazerem-se notar ainda mais. Jesus convida a assumir a atitude exatamente contrária, mantendo os hábitos comuns, de maneira que só Deus conheça o jejum que se está a praticar. Em toda a perícope, Deus é sempre definido como Pai; isto está certamente em conexão com a presença do Pai-nosso nesta secção do discurso da montanha. O propósito das três obras de justiça, apartadas daquilo que poderia constituir aparência e vanglória, resulta ser a conservação da relação com Deus; uma relação não genérica, funcional ou servil, mas caracterizada pela experiência da paternidade.

Os três “P”, expressões de fé que a Igreja recomenda, designam o campo das relações que nos fazem viver. O Pão a dar em esmola abraça todas as nossas relações com os outros, consideradas como dom de si, sob o timbre da solidariedade. A Penitência, expressa com o jejum, diz respeito às nossas relações com a natureza, de quem recebemos os bens para a nossa subsistência, mas também a relação com o nosso corpo. A Palavra de Deus a escutar em oração reenvia para a nossa relação com Ele, que se vive através das duas anteriores. O que acontece quando tudo aquilo que constitui a nossa existência é realizado «para se ser feito admirar», «para se ser considerado justo» sob todos os aspetos? A relação vai inexoravelmente rumo ao fracasso. Deixamos de estar ligados / unidos ao outro, porque o ato que partia de nós para os outros / o Outro regressa a nós. O círculo fecha-se e não saímos de nós mesmos. A “salvação”, porém, inclusive do ponto de vista simplesmente humano, só pode ser um êxodo do círculo da morte (o pó que retorna ao pó). A solução que nos é proposta é o regresso à fonte da nossa vida, que nós chamamos Deus, e este regresso acontece através de todas as nossas relações, quando são autênticas.


 

Simone Caleffi
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: doidam10/Bigstock.com
Publicado em 08.10.2023

 

 
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