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O humor como fórmula espiritual

1. Das muitas formas de narrar o Natal (a encarnação/nascimento do Filho de Deus), Santo António de Lisboa usa uma metáfora provocadora num dos seus sermões natalícios sobre a figura de Maria: «Deus fê-la hoje riso, porque dela nasceu o nosso riso: “Anuncio-vos uma grande alegria, porque nasceu o riso, nasceu Cristo.” (…) Riamo-nos, portanto, (…) porque Deus nos deu o riso, isto é, a causa de nos rirmos e de nos alegrarmos com Ele». E daqui uma pergunta inicial: cristianismo e humor podem habitar na mesma frase?

 

2. O provérbio popular sentencia: “graças a Deus, muitas; graças com Deus, nenhuma!”. E o humorista Ricardo Araújo Pereira, após participar num encontro mundial de humoristas com o Santo Padre (14 junho 2024), desabafava num posterior artigo sobre a estranheza deste convite: «Se nos convidassem há 500 anos atrás seria para nos cortar a cabeça, mas hoje não sei o que vimos aqui fazer. Talvez estejam já a acender a fogueira para nos queimar».

Se é verdade que, ao longo da história, cristianismo e humor foram duas palavras “antónimas”, a nova cultura humorística tornou-as mais próximas. A razão da cisão inicial era evidente: nos Evangelhos Jesus nunca ri expressamente (pelo contrário, riem-se d’Ele: Mc 5,40; Lc 23,36) e os Padres da Igreja (salvo algumas exceções) viam o divertimento provocado pelo humor como um atentado atómico à seriedade da vida espiritual.



O Papa Francisco fala do riso quotidiano de Deus: sempre que fazemos sorrir uma pessoa, devolvendo-lhe um pouco de esperança no meio das suas tristezas, acabamos por fazer sorrir o próprio Deus.



3. Para (re)pensarmos a relação entre cristianismo e humor, convém definir o que é o humor. Proveniente da semântica medicinal grega, expressando um estado de saúde equilibrado (G. Minois), o humor prossegue a sua evolução conceptual, descrevendo-se atualmente por três elementos genéricos: capacidade de improviso e genialidade; criatividade de colocar em relação dialética elementos a priori diversos entre si; uma finalidade hilariante, que visa fazer rir/sorrir uma outra pessoa (G. Cucci). E deste efeito emerge a diferença (nem sempre consensual) entre riso e sorriso: se o riso (ridere) é uma reação mais instantânea e inconsciente, o sorriso (sub-ridere) é uma reação mais controlada e racional.

O humor, pela via da ironia/sarcasmo/malícia/sátira…, pode-se declinar ainda numa vertente mais subjetiva de teor negativo (mau humor: ridicularizar uma pessoa para a ofender) ou objetiva de teor mais positivo (bom humor: ridicularizar uma situação arbitrária). Mas o humor serve apenas para nos divertir ou pode ter uma outra finalidade? Elencamos apenas duas.

Nas palavras do filósofo Henri Bergson (1859-1941), o humor dispõe de uma fundamental função política: ele permite-nos questionar o estado das coisas, ver a realidade de um ângulo inédito, denunciar abusos de poder ou dizer as verdades mais inconvenientes. Esta função (muitas vezes exclusiva do humor) torna-se útil para a sociedade porque é um «meio de correção»: ao denunciar o que está mal, o humor desafia a sociedade a aperfeiçoar-se, a corrigir-se, a superar-se continuamente. Para não ferir suscetibilidades contemporâneas, citamos como exemplo a obra Auto da Barca do Inferno do vimaranense Gil Vicente (1465-1536), pai do teatro português. Além desta, uma função medicinal: em estudos recentes, admite-se que o humor poder ser uma das vias para se curar a depressão (L. Larivera). Posto isto, uma pergunta teológica: Deus ri?



É Jesus quem o garante: «bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir». Obviamente que Deus também não ignora as nossas lágrimas, partilhando-as, mas é da certeza deste sorriso escatológico que advém a esperança das lágrimas enxugadas



4. Várias são as passagens que nos falam de um riso/sorriso em Deus (ex.: Sl 2,4; Pr 3,34; Job 9,23) ou do riso como tema teológico (ex.: Gn 18,10-15; 21,1-7), ao ponto da reflexão mais especulativa (K. Rahner) sustentar dois tipos de risos (hipotéticos) de Deus: riso de alegria, enquanto satisfação por ter criado um mundo bom (Gn 1,31) para as suas criaturas habitarem (riso protológico); riso de confiança, pois, estando solidário com as dificuldades do humano, Deus sabe que o seu riso será o último (Sl 37,13), o riso da vitória final do bem sobre o mal (riso escatológico). E como diz a gíria popular: quem ri por último, ri melhor.

Por sua vez, o Papa Francisco acrescenta um outro tipo: riso quotidiano de Deus. E explica-o nesse mesmo encontro com os humoristas: sempre que fazemos sorrir uma pessoa, devolvendo-lhe um pouco de esperança no meio das suas tristezas, acabamos por fazer sorrir o próprio Deus.

Ora, se Deus ri/sorri, então podemos presumir que a eternidade será um tempo de alegria e sorrisos com Deus… No fim da vida, talvez Deus não nos espere com um martelo (de juiz) na mão, mas com um sorriso nos lábios! Com base nesta convicção, isso muda o ângulo de visão sobre a nossa vida terrena: não tanto como se fosse um teste de avaliação para o julgamento final, mas como um ensaio geral para essa eternidade que nos espera (J. Martin). É Jesus quem o garante: «bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir» (Lc 6,21). Obviamente que Deus também não ignora as nossas lágrimas, partilhando-as (B. Claraval), mas é da certeza deste sorriso escatológico que advém a esperança das lágrimas enxugadas (Ap 21,4).



Transportamos um evangelho de alegria. É certo que a alegria não se reduz ao humorismo, mas o bom humorismo num cristão é sinal de que essa alegria habita nele



5. Passamos a uma última pergunta: o humor é útil ou não para a espiritualidade? Obviamente que sim. O bom humor (não o mau humor!) revela em si várias caraterísticas espirituais, das quais: a humildade, pois saber rir-se de si mesmo e dos seus próprios erros/defeitos é a prova de uma pessoa que se aceita como é (Sr 21,20); a confiança, pois, diante das adversidades preocupantes, uma dose certa de bom-humor é a forma de se relativizar esse drama, fazendo-nos ver outros valores e verdades escondidos naquela situação (Sr 30,21-25). Recordemos daquele que é, para mim, um dos ofícios mais paradoxais no mundo: um comediante que, num hospital de oncologia infantil, consegue... fazer sorrir uma criança portadora de cancro. Ficamos por aqui.

Cristo (Filho de Deus) é a “encarnação do riso” porque veio-nos comunicar esta alegria: não somos seres destinados à morte, mas à eternidade! Só Ele nos pode fazer sorrir no meio da adversidade! E se o caro leitor está à procura de novas orações, o Papa Francisco sugere esta de Tomás More (1478-1535): «Dai-me, Senhor, o sentido do humor. Dai-me a graça de entender as piadas, para que conheça na vida um pouco de alegria e possa comunicá-la aos outros» (GE 126).

 

6. O humorismo de um cristão não é tanto a “arte de fazer rir os outros”, mas uma virtude: um modo alegre de encarar a própria vida, cuja alegria marca a nossa diferença cristã na trama do mundo (EG 6). Transportamos um evangelho de alegria (Mt 5,12; 1Pe 1,13). É certo que a alegria não se reduz ao humorismo, mas o bom humorismo num cristão é sinal de que essa alegria habita nele. E como diz um provérbio napolitano: «é melhor morar numa cabana onde se ri, do que num castelo onde se chora». Só por curiosidade: Jesus nasceu numa espécie de castelo ou de uma cabana?



 

P. José Miguel Cardoso
Dicastério para a Cultura e Educação
In "O Conquistador", 29.11.2024 | Publicado com autorização do Autor
Imagem: joseh51/Bigstock.com
Publicado em 13.12.2024

 

 
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