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Leitura: “O engano das ilusões – Os sete pecados capitais entre espiritualidade e psicologia”

«Quem deseja empreender uma experiência sincera de ser cristão, que consiste em deixar-se alcançar por Deus e unir-se a Ele, é fundamental começar precisamente por si próprio, ou, se preferirmos, regressar a si próprio. Com efeito, não existe outro lugar para o encontro com Deus a não ser o próprio mundo interior.»

Esta é uma das principais convicções sobre a qual se fundamenta o livro “O engano das ilusões – Os sete pecados capitais entre espiritualidade e psicologia” –, organizado por Paolo Scquizzato e com textos de seis psicólogas e psicoterapeutas, que a Paulinas Editora lançou recentemente.

Soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e acédia são analisados a partir do convencimento de que não se pode percorrer o caminho de Deus sem antes se ter «percorrido o difícil caminho do conhecimento de si, do encontro com as próprias zonas de sombra». Trata-se de uma proposta de itinerário espiritual oportuna para este tempo de Quaresma, especialmente marcado pelo apelo à conversão.

Apresentamos o texto de abertura do volume, que não se detém sobre qualquer um dos pecados, mas explica as premissas da obra e propõe uma introdução aos sete vícios capitais.

 

Em busca de nós mesmos como arte de viver
Paolo Scquizzato
In “O engano das ilusões – Os sete pecados capitais entre espiritualidade e psicologia”

Um percurso sério de vida espiritual deveria conhecer, essencialmente, dois momentos diferentes, mas, ao mesmo tempo, profundamente interligados: um caminho de conhecimento de si, que consiste essencialmente numa descida para «baixo», a parte mais oculta de si próprio, ou, para usar as palavras de Santa Teresa a Grande, «uma descida para o alto», e a resposta à pergunta fundamental: «Onde habita Deus?»

Tentaremos explicar em seguida a razão pela qual esses dois momentos estão e devem estar intimamente ligados.

«O Reino de Deus está entre vós», afirma Jesus no Evangelho de Lucas (17,21); ora, sendo que a palavra originalmente usada, neste versículo, é “entòs”, ou seja, «dentro», a tradução deveria ser a seguinte: «O Reino de Deus está dentro de vós.»

Sim, Deus habita em nós; o meu céu é habitado pelo Céu de Deus. Santo Agostinho lembra que «Deus é-me mais íntimo do que eu próprio», e uma sura do Alcorão reza: «Deus está mais próximo do homem do que a sua veia jugular.» Contudo, bastariam as seguintes palavras do iluminado filósofo russo Pavel Florensky para definir claramente aquilo que pretendemos afirmar:

«O Reino dos Céus é a parte divina da alma humana. Encontrá-la em si mesmos e nos outros, convencer-se, com os próprios olhos, da santidade da criatura de Deus, da bondade e do amor das pessoas, nisso reside a eterna bem-aventurança e a vida eterna. Quem a tiver saboreado uma vez está preparado para trocar por ela todos os bens pessoais: “O Reino do Céu é também semelhante a um negociante que busca boas pérolas. Tendo encontrado uma pérola de grande valor, vende tudo quanto possui e compra a pérola” (Mt 13,45-46). A pérola que o negociante procura não está longe, o homem leva-a consigo por toda a parte, só que não o sabe. E cada um de nós anda angustiado pelo mundo, embora tendo um tesouro dentro de si e julgando, com frequência, que uma pérola assim estará nalgum lugar distante. Bem-aventurado aquele que vê o seu tesouro! Mas quem é capaz de o ver? Quem vê a sua pérola? [...] Basta apenas purificar o próprio coração! E assim, portadores de Cristo, mal o coração se ilumina um bocadinho, no seu interior, iluminada pelo lume divino, começa a brilhar e a resplandecer, como o ouro, a imagem de Deus» (Florensky, 1999).



Não é a parte «espiritual», entendida como separada da componente corporal, que se liga ao divino... Essa forma de pensar está marcada por um erro que continuamos a perpetuar, devido a uma interpretação antropológica de origem grega errada



Deus é, realmente, a minha carne, o meu sangue, o meu espírito, a minha alma, o meu tudo. Deus habita-me, inabita-me. Ora, quem deseja empreender uma experiência sincera de ser cristão, que consiste em deixar-se alcançar por Deus e unir-se a Ele, é fundamental começar precisamente por si próprio, ou, se preferirmos, regressar a si próprio. Com efeito, não existe outro lugar para o encontro com Deus a não ser o próprio mundo interior.

Na relação com Deus, na nossa aventura cristã, está sempre subjacente uma perniciosa tentação, ou seja, a de desertar-saltar de nós mesmos, na esperança de conseguir mergulhar de imediato no mundo imenso de Deus. Tentamos dar esse «salto» abissal servindo-nos dos atos religiosos, que pretendem precisamente ligar (religio) o mundo humano ao mundo divino; por isso se multiplicam atos, por si só também «santos», mas inexoravelmente destinados ao fracasso: «Não depende daquele que quer nem daquele que se esforça por alcançá-lo, mas de Deus que é misericordioso» (Rm 9,16).

Não há uma parte de nós destinada ao encontro com Deus; não é a parte «espiritual», entendida como separada da componente corporal, que se liga ao divino... Essa forma de pensar está marcada por um erro que continuamos a perpetuar, devido a uma interpretação antropológica de origem grega errada, que considerava o homem dividido essencialmente em alma e corpo.

O homem que deseja entrar em relação com Deus é o homem na sua unitotalidade, aquele conjunto inseparável de carne, espírito e alma que o constitui, e que nós aprendemos a denominar corpo.

Eis o que se entende sobretudo, na vida espiritual, pelo termo bíblico de conversão (“teshuvah”): um regresso à verdade de si, uma viagem ao centro de nós mesmos a fim de lançar luz sobre essa parte mais profunda do nosso próprio ser, da qual até de nos aproximarmos temos medo, e que por isso, muitas vezes, mantemos relegada no abismo. Contudo, se conseguirmos chegar ao fundo, descobriremos aí a inabitação de Deus.



Só aceitando todo o mundo interior que nos inabita, só quando aprendermos a olhá-lo no rosto, e isso já não nos meter medo, seremos finalmente livres de ser aquilo que somos objetivamente



Compreendemos, portanto, como a via que conduz a Deus tem o seu início no conhecimento de nós mesmos. Sou eu, com tudo aquilo que trago dentro de mim, que sou chamado à união. Não se pode percorrer o caminho de Deus sem antes termos percorrido o difícil caminho do conhecimento de si, do encontro com as próprias zonas de sombra. Seríamos como Ícaro que, com asas de cera, se eleva ao céu, precipitando-se desastrosamente sobre a terra, por se ter aproximado demais do sol. Ninguém se pode desembaraçar da própria humanidade, feita de sexualidade, agressividade, angústia e maldade, utilizando a meditação, os «belos pensamentos espirituais»...

Outra tentação consiste em considerar a vida espiritual como a parte de nós relegada para fora do corpo, para «cima dos telhados»... se assim fosse, porém, seríamos seres desencarnados, meros sonhos, mas nunca verdadeiramente nós próprios.

Na vida espiritual «sobe-se até Deus» na medida em que se desce ao próprio inferno interior. E essa descida, que conduz à verdade de si, na tradição espiritual de sempre, é chamada humildade. São Bento entende precisamente assim a palavra de Jesus: «Quem se humilhar será exaltado» (Mt 23,12). Só descendo à nossa interioridade entraremos em contacto com o Céu, seremos exaltados até ao Deus de Jesus Cristo, que deseja unir-se a nós.

Quem empreende essa humilde viagem chegará finalmente à verdade de si e, portanto, à liberdade, porque «a verdade vos tornará livres» (Jo 8,32). Só aceitando todo o mundo interior que nos inabita, só quando aprendermos a olhá-lo no rosto, e isso já não nos meter medo, seremos finalmente livres de ser aquilo que somos objetivamente; deixaremos de nos mostrar, aos homens que nos rodeiam e ao próprio Deus, como pensamos que eles nos querem ver, já não tendo necessidade de representar papéis que não nos competem, para sermos amados e aceites por Deus e pelos outros. A verdade de nós mesmos, embora marcada pelo mal, basta para superar o mal que nos inabita, o mal que temos cometido.



Agrada-nos pensar que, para Jesus, o mais importante era isto: tirar as sete máscaras que cobrem o rosto do homem, para que este possa ficar nu diante dele, na sua verdade, por muita dificuldade que tenha em aceitá-la



Jesus desejava ter pessoas verdadeiras à sua frente, homens e mulheres que deixassem de representar, para se manterem a flutuar no teatro da existência: pessoas que deixassem de se angustiar pelo mal cometido, pessoas que pudessem finalmente libertar-se do peso do mal pelo simples ato de reconhecê-lo. Porque reconhecer o mal praticado já é o início da ressurreição. Porque o mal trazido à luz e colocado perante a misericórdia é a “conditio sine qua non” para que Ele, a misericórdia do Pai, possa perdoar, possa curar e sanar.

«Perguntas-me como é que eu me tornei louco. Sucedeu assim: certo dia, muito antes de muitos deuses terem sido gerados, despertei de um sono profundo e apercebi-me que me tinham sido roubadas todas as minhas máscaras – as sete máscaras que eu tinha forjado e usado ao longo de sete vidas –, e, sem máscara, corri pelas ruas apinhadas de gente, gritando: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões.” Riam de mim homens e mulheres, e alguns precipitaram-se para dentro de casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um jovem gritou do telhado de uma casa: “É um louco.” Ergui os olhos para olhá-lo: pela primeira vez, o sol beijou-me o rosto, o meu rosto nu. O sol beijava pela primeira vez o meu rosto descoberto, e a minha alma inflamava-se de amor pelo sol, e eu já não lamentava a perda das minhas máscaras. E, como que em transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram as máscaras.” Foi assim que enlouqueci. E encontrei na loucura a liberdade e a salvação: liberdade da solidão e salvação da compreensão, porque aqueles que nos compreendem subjugam sempre alguma coisa em nós» (Gibran, 1988).

Agrada-nos pensar que, para Jesus, o mais importante era isto: tirar as sete máscaras que cobrem o rosto do homem, para que este possa ficar nu diante dele, na sua verdade, por muita dificuldade que tenha em aceitá-la. E que deixasse de uma vez por todas de se mutilar, fazendo mal a si próprio, querendo a todo o custo destruir a fera má que o inabita. Cristo Jesus é o menino preconizado por Isaías 11. Chegou a época messiânica em que o lobo e o cordeiro, que trazemos dentro, poderão coexistir, na condição de que o pequeno Cristo os apascente. A pergunta já não será, portanto: «Porquê este inferno interior dentro de mim?», mas antes: «O que me quererá dizer Deus através deste meu mundo interior tão comprometido, através da minha ira, deste meu aguilhão na carne que me atormenta há tanto tempo? O que é que está por trás destas minhas atitudes, desta minha paixão, deste meu limite, desta minha queda?»



Na vida espiritual é fácil viajar num mundo paralelo, formado por imagens ideais: gostava de ser assim, deveria ser assim, se tu fosses assim, se falasses assim... Deste modo nunca se daria início a um sério trabalho sobre nós mesmos



Porventura este meu limite, esta minha culpa reiterada, este meu pecado, não se poderá tornar o «lugar» da manifestação de Deus? Este meu drama interior, tantas vezes combatido, do qual tenho desejado desfazer-me, porventura não se poderá revelar lugar teofânico, lugar do encontro com Deus?

«Onde estiver o meu maior problema, aí também está a maior oportunidade de salvação» (Anselm Grün). Quem sabe se o objetivo da vida espiritual não será precisamente chegar a travar amizade com o próprio mundo interior, com a própria interioridade tão débil e obscura que mete medo, para finalmente chegar a viver a bela definição do livro do Sirácide: «Quem encontrou um amigo descobriu um tesouro» (Sir 6,14).

Na vida espiritual é fácil viajar num mundo paralelo, formado por imagens ideais: gostava de ser assim, deveria ser assim, se tu fosses assim, se falasses assim... Deste modo nunca se daria início a um sério trabalho sobre nós mesmos e, o que é ainda pior, Deus nunca disporia de «material» existencial sobre o qual realizar a sua obra de salvação. A vida não é um sonho. E Deus não atua nos sonhos, mas na realidade. Na minha realidade.

«Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas, sim, os doentes» (Mt 9,12). Se eu me movo sempre num mundo irreal, e me olho de modo irreal, torno vã a obra de Cristo, torno vã a cruz de Cristo.



É importante trazer à luz, chamar pelo nome, a escuridão que nos inabita, as feridas, os dramas que trazemos dentro, quem sabe desde quando, para que, se forem mostrados a Cristo médico, a misericórdia possa entrar aí, precisamente graças aos mesmos



Deus pode instruir-nos através do nosso próprio fracasso, mediante a nossa «queda». Deus permite que o aguilhão na nossa carne – que gostaríamos de eliminar a todo o custo (cf. 2Cor 12,7) – continue a agir em nós a fim de que se torne memória da nossa própria finitude, da nossa própria criaturalidade, a fim de compreendermos cada vez mais que «o Senhor da minha vida» é Ele. Devemos ter muito cuidado para não querermos parecer cristãos honestos, «puros», a todo o custo, tentando agradar a Deus e aos homens, ou, pior ainda, pensando ser esse o caminho meritório para a união. Infelizmente, essa tentação, na qual se encerra uma verdadeira heresia chamada pelagianismo, continua a estar carsicamente presente no nosso cristianismo, com todos os danos que daí derivam.

«As “pessoas honestas” não têm defeitos na sua estrutura. Não estão feridas. A pele da sua moral, constantemente intacta, constrói sobre elas uma couraça sem defeitos. Não apresentam a abertura provocada por uma horrível ferida, uma desventura inesquecível, um remorso invencível, um ponto de sutura eternamente mal cosido, uma inquietação mortal, uma secreta amargura, um desabamento sem predissimulado, uma cicatriz eternamente mal sarada. Não apontam o caminho de acesso à graça que é essencialmente o pecado. Como não estão feridas, não são vulneráveis. Como nada lhes falta, não se lhes oferece nada [...]. A própria caridade de Deus não cura de modo algum quem não tem feridas. O Samaritano debruçou-se sobre o homem ferido porque este estava caído por terra. Verónica enxugou o rosto de Jesus porque estava sujo. Porém, quem não caiu não será levantado; e a quem não está sujo, ninguém o limpará» (Péguy, 1987).

Por isso é importante trazer à luz, chamar pelo nome, a escuridão que nos inabita, as feridas, os dramas que trazemos dentro, quem sabe desde quando, para que, se forem mostrados a Cristo médico, a misericórdia possa entrar aí, precisamente graças aos mesmos. O próprio pecado é a janela através da qual Deus pode entrar e visitar o meu ser...

Continua a ser sintomática, a este propósito, a tragédia de “Édipo Rei”, narrada por Sófocles e interpretada em chave filosófica por Paul Ricoeur, o primeiro a romper com uma interpretação psicanalítica de sentido único, oferecida por Freud.

«Na história de Édipo, o que é verdadeiramente trágico não é o facto de ter matado o próprio pai e desposado a própria mãe, sem o ter querido; isso teve lugar em tempos, é o seu destino passado; o trágico [do momento] atual é que o homem que ele amaldiçoou por esse delito é ele próprio, e precisa de reconhecê-lo. A sabedoria consistiria em reconhecer-se e em deixar de se amaldiçoar» (Ricoeur, 1970).



Devemos tornar-nos cada vez mais peritos da vida espiritual, e isso significa conhecer o nosso mundo interior, descer ao próprio abismo interior, chamar o mal e descobrir aí, ao mesmo tempo, Cristo, que já nos precedeu nesse nosso inferno



A par do “Édipo” de Sófocles, deveríamos citar também a obra-prima de Dostoiévski, “Crime e castigo”, em que Raskólnikov, o protagonista, comete um homicídio que o levará pouco a pouco à loucura, e ele só começará a reerguer-se, a ressuscitar, no momento em que, graças ao amor de Sónia, confessará a sua culpa e aceitará cumprir a respetiva pena num campo de trabalho na Sibéria. A admissão da culpa cometida – o crime – e a aceitação do castigo – banhado pelas lágrimas amorosas de Sónia – permitem a Raskólnikov tornar-se mais humilde, mais capaz de escutar a Palavra de Deus (no seu caso específico, a página da Ressurreição de Lázaro, do Evangelho de João) e de amar. O mais grave não será, por isso, ter cometido o mal, mas negar tê-lo feito, não o denunciar, não o afirmar. A possibilidade de pagar a culpa pelo mal cometido é o início da ressurreição. Não basta remover a culpa, não falar dela, porque o mal, as feras malignas, já não estão dentro de nós; recuperá-las e confessá-las (ainda não em sentido sacramental): desse modo, a culpa abre-se a uma possibilidade de expiação e reconciliação que, ao contrário da culpa negada, constituem autênticas modalidades de regresso à vida:

«A verdadeira punição é aquela que dá felicidade, restabelecendo a ordem; a verdadeira punição tem por resultado a felicidade; é o sentido do verdadeiro paradoxo do Górgia [de Platão]: “Escapar ao castigo é pior do que sofrê-lo”» (Ricoeur, 1970).

 

Introdução aos sete vícios capitais

A que se deve este longo prólogo para nos introduzir aos vícios/pecados capitais, tema central do nosso trabalho? Porque os chamados vícios não são senão esse mal que nos inabita; e os sete pecados capitais são a declinação exteriorizada do mal que trazemos dentro de nós.

Foi dito acima que é necessário conseguir trazer à luz esse mal, para que o Deus de Jesus Cristo o possa curar e recuperar, mas, para poder fazê-lo, é preciso re-conhecê-lo, chamá-lo pelo nome. Só se pode tomar aquilo que se conhece. Por isso devemos tornar-nos cada vez mais peritos da vida espiritual, e isso significa conhecer o nosso mundo interior, descer ao próprio abismo interior, chamar o mal e descobrir aí, ao mesmo tempo, Cristo, que já nos precedeu nesse nosso inferno e que aí nos espera para nos salvar.

Evágrio Pôntico (século IV), homem extraordinário no âmbito da espiritualidade dos primeiros séculos, é um especialista da relação com essas dimensões do coração.

O ensinamento de Evágrio – e da subsequente tradição oriental – reza assim:

«São oito, no total, os pensamentos genéricos que compreendem todos os pensamentos: o primeiro é o da gula, depois, o da fornicação, o terceiro é o da avareza, o quarto, o da tristeza, o quinto, o da cólera, o sexto, o da acédia, o sé timo, o da vanglória, o oitavo, o do orgulho.»

Afirma Evágrio que as três tentações de Jesus no deserto teriam sido, por esta ordem, as da gula, da avareza e da vanglória.



A base antropológica comum para virtudes e vícios, além da liberdade, é a «paixão» que, por si só, é neutra: esta (movimento da sensibilidade) não é boa nem má em si mesma



Esses três “logismoi” («pensamentos», em grego) constituiriam, portanto, o esquema base da lista, e todos os outros derivariam deles. Essa lista entra no Ocidente graças a Cassiano e, depois, a São Gregório Magno, que retoma Cassiano, o qual destacou a soberba como a fonte de todos os males, unificou tristeza e acédia e introduziu a inveja. Deste modo, reduziu a lista a sete termos. Também alterou a ordem, inspirando-se em Sir 10,15 (segundo a versão da Vulgata): «Initium omnis peccati est superbia» («O princípio de todo o pecado é a soberba»).

Mais tarde, vanglória e orgulho serão fundidos e chegar-se-á assim à classificação definitiva dos sete pecados capitais que, a partir do século XIII, se impôs no Ocidente: soberba, avareza, inveja, ira, luxúria, gula, preguiça, também chamada acédia. É por esta ordem que são citados no Catecismo da Igreja Católica, n. 1866.

«O vício e a virtude são parentes, tal como o carvão e os diamantes» (Karl Kraus).

Estas duas realidades humanas fundamentais revelam-se ligadas entre si por uma base comum, mas, ao mesmo tempo, são antitéticas tal como o são, precisamente, o carvão e o diamante.

A base antropológica comum para virtudes e vícios, além da liberdade, é a «paixão» que, por si só, é neutra: esta (movimento da sensibilidade) não é boa nem má em si mesma. É boa quando contribui para uma boa ação, é má, no caso contrário. Pode ser assumida pela virtude ou pervertida em vício. Com efeito, é uma paixão que rege, por exemplo, a tensão para o alimento, realidade indispensável para a subsistência, ou para a relação sexual. Se for governada pela virtude da temperança, essa paixão é correta, honesta e preciosa; se degenerar no excesso da gula ou da luxúria, cai-se na corrupção viciosa. No centro permanece sempre a liberdade, que mantém o leme numa ou noutra direção. Pode-se afirmar, portanto, que:

«Quando o vício é explorado com interesse e inteligência, põe em destaque, por contraposição, precisamente aquele bem que antes perseguia de modo errado; além disso, a própria constatação de se ter caído, de ter falhado o alvo, é importante para retomar o caminho da vida» (Cucci, 2008).



O pecado, na Bíblia, é definido como um falhar o alvo. O alvo é, precisamente, a felicidade, a vida em plenitude. O vício/pecado será, então, um tender, um olhar com paixão para a felicidade, para um bem considerado como tal, até dar consigo frustrado e caído por terra precisamente por não ter nada nas mãos



Tenhamos presente um aspeto importante: todos os vícios são pecados, mas nem todos os pecados são vícios. Estes últimos brotam no interior da pessoa livre e consciente através de um transgressão; para se tornar vício, porém, esse ato deve transformar-se num hábito acolhido e cultivado. É como um desvio pelo qual a pessoa se deixa transportar passivamente, já sem oferecer resistência. É um pecado «aceite», ou antes, até desejado e cultivado. Por isso não é correto identificar o vício com o pecado em sentido estrito: este último é uma má ação singular com as suas conotações próprias; o outro é um costume adquirido, uma disposição habitual gerada pelo pecado inicial e que, por sua vez, gera pecados de modo constante e contínuo.

Hoje em dia já não se fala de vícios/pecados capitais, inclusive em ambiente cristão. Isso não se deve ao facto de já não existirem, mas simplesmente à mudança de nomenclatura. Na cultura hodierna, prefere-se definir essas paixões como «virtudes». Ultrapassando uma ironia fácil, podemos afirmar que aquilo que hoje deve ser mudado é o ponto de observação.

«Os sete vícios estão diretamente ligados a uma série de problemas abordados pela psicologia clínica e social. Baixa autoestima, agressividade, animosidade racial, ansiedade económica, stress, obesidade, disfunções sexuais, depressões e suicídio estão entre os principais problemas diretamente ligados aos sete vícios capitais. [...] Ao princípio, podemos não reconhecer a ligação entre um vício capital e os seus efeitos indiretos, mas uma análise mais profunda, muitas vezes, revelá-la-á. A anedonia, por exemplo, o desespero por encontrar significado e sentido para a vida, pode ser atribuída, em parte, ao materialismo próprio da gula, à apatia espiritual da acédia e ao narcisismo da Soberba» (Schimmel, 1997).

Para uma reflexão séria sobre o vício/pecado capital é necessário ter sempre presente que este tem que ver, em última análise, com a felicidade. O pecado, na Bíblia, é definido como um falhar o alvo. O alvo é, precisamente, a felicidade, a vida em plenitude. O vício/pecado será, então, um tender, um olhar com paixão para a felicidade, para um bem considerado como tal, até dar consigo frustrado e caído por terra precisamente por não ter nada nas mãos. Podemos dizer que o pecado, e, em particular, o conjunto dos sete [pecados capitais], é uma espécie de sirene que grita grandes promessas, mas que no fim se revela mentirosa, por não ser capaz de manter aquilo que prometeu. Daí a infelicidade, o sofrimento do homem. Daí a constante insatisfação do coração e o tédio.

«O vício é a busca de alguma coisa boa em si mesma, mas conduzida de modo desordenado, atribuindo ao bem procurado um lugar e uma importância superiores àqueles que deveriam ter, em detrimento de outros bens fundamentais para a vida humana. Uma característica do viciado é ter feito de um elemento singular o centro da própria vida, o próprio ídolo, consagrando ao mesmo todas as suas energias e investimentos a nível físico, afetivo e imaginativo. E a primeira consequência imediata de tudo isso é a perda da liberdade: no vício, ao contrário da virtude, é muito fácil começar, mas torna-se cada vez mais difícil deixá-lo, embora já não se encontre o prazer e o fascínio de outrora, pelo contrário, experimentando um desgosto e uma repugnância cada vez maiores. [...] É importante reconhecer o valor simbólico do vício, porque é uma procura doentia de absoluto, e pode ser vencido por aquilo que constitui verdadeiramente o absoluto da vida: só um coração resignado e contente pode encontrar forças para dizer não ao vício» (Cucci, 2008).



Só é possível escolher entre Deus e a idolatria. Não há outras possibilidades. Com efeito, a faculdade de adoração está em nós e é orientada em qualquer direção, neste mundo ou no outro. Se cremos em Deus ou se adoramos a Deus, ou se adoramos coisas deste mundo, disfarçadas com essa etiqueta



Os pecados capitais, portanto, prometem muito: honras, prazer, o ter... Por isso as pessoas estão dispostas a render-se a eles. Viver com base nesses vícios é como adorar um ídolo, mas o ídolo é uma realidade finita que se faz passar por infinita. E nós sabemos que só o infinito é capaz de preencher o coração. O homem, no fundo, tem duas alternativas de felicidade: adorar a Deus ou os objetos. Isso porque cada ato de adoração é um ato de amor, e o homem, por natureza, não pode deixar de amar e, portanto, não pode deixar de adorar. Escutemos duas importantes passagens da grande pensadora francesa Simone Weil:

«Desligar-se com toda a alma de tudo aquilo que e transitório (Platão). Não cabe ao homem procurar Deus e acreditar nele: deve simplesmente recusar-se a amar aquelas coisas que não são Deus. Tal recusa não pressupõe qualquer tipo de fé. Baseia-se simplesmente na constatação de um facto evidente: que todos os bens da terra, passados, presentes e futuros, reais ou imaginários, são finitos e limitados, radicalmente incapazes de satisfazer aquele desejo de um bem infinito e perfeito que arde perpetuamente dentro de nos. Isto, cada homem o sabe, e muitas vezes na vida, por um instante, teve de reconhecê-lo; todavia, logo a seguir, mente a si próprio, pois apercebe-se de que, se continuasse a sabê-lo, já não poderia viver. A sua sensação é exata: esse conhecimento mata, mas inflige uma morte que nos dá a ressurreição» (Weil, 1979).

«Só é possível escolher entre Deus e a idolatria. Não há outras possibilidades. Com efeito, a faculdade de adoração está em nós e é orientada em qualquer direção, neste mundo ou no outro. Se cremos em Deus ou se adoramos a Deus, ou se adoramos coisas deste mundo, disfarçadas com essa etiqueta. Se negamos a Deus, ou se adoramos a Deus sem disso nos apercebermos, ou se adoramos coisas deste mundo que julgamos considerar apenas como tais, mas as quais atribuímos, embora sem disso nos apercebermos, os atributos da Divindade. [...] Só Deus merece que nos interessemos totalmente por Ele, e por mais nada. O que devemos concluir relativamente à miríade de coisas interessantes que não falam de Deus? Devemos concluir que são truques do demónio? Não, não, não. Devemos concluir que falam de Deus. Hoje é urgente demonstrá-lo» (Weil, 1974).

Para concluir esta breve introdução, há ainda um aspeto sobre o qual vale a pena determo-nos com uma certa atenção, e que podemos definir com uma pergunta: por que razão é mais fácil praticar o mal do que fazer o bem?

Penso que não se lhe pode dar uma simples resposta, sem mais. Certamente tem que ver, em grande parte – mais uma vez –, com a nossa liberdade, e esta é sempre, de certo modo, uma liberdade ontologicamente «doente». Trata-se da liberdade de escolher entre os dois caminhos proverbiais indicados por todas as grandes culturas de cada época. Encontramo-la no Israel bíblico: «Coloco hoje diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal» (Dt 30,15), e, ainda, no Sermão da Montanha de Jesus: «Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta e espaçosa o caminho que conduz à perdição» (Mt 7,13).

Desejo concluir, portanto, com algumas advertências, partindo de Hesíodo (século IV):

«Fácil e cómodo é escolher o mal, um caminho plano, muito acessível. Os deuses impuseram o suor para alcançar a virtude: longa e difícil e a senda que a ela conduz, dura, ao início. Quando, porém, se chega ao cume, torna-se fácil aquilo que antes fora árduo.»



 

Edição: SNPC
Imagem: Capa | D.R.
Publicado em 10.10.2023

 

Título: O engano das ilusões - Os sete pecados capitais entre espiritualidade e psicologia
Organizador: Paolo Scquizzato
Editora: Paulinas
Páginas: 320
Preço: 15,12 €
ISBN: 978-989-673-624-8

 

 
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