

«Breve e inacabada como está, transmite tal força doutrinal e literária, que se tornou insubstituível. João da Cruz teve a experiência e analisou-a, revelando o seu sentido e a sua estrutura. É uma obra que contém algo de enigmático e atraente. Os crentes acolhem-na com emoção, porque, sendo uma obra fundamentalmente mística, sentem uma rara afinidade espiritual com a experiência nela relatada.»
É nestes termos que as Edições Carmelo apresentam a “Noite escura”, de S. João da Cruz, «obra clássica» que vai ser publicada nos próximos dias, na qual se narra e aponta para «uma experiência humana primordial»: o ser humano caminha «à base de conquistas e renúncias permanentes, e a sua fidelidade a uma vocação obriga-o a dar continuamente passos no desconhecido».
O escrito ajuda «a compreender a necessidade da noite no caminho espiritual e a ação decisiva de Deus durante esse período», assinala, na introdução, Federico Ruiz, considerado o maior especialista em S. João da Cruz (1542-1591).
«A noite, além de ser uma dimensão permanente da vida humana e cristã, é a fase na qual se decide o destino da vida espiritual, o momento decisivo da santidade e da união com Deus. O símbolo noite diz-nos algo, ou tudo, sobre o caminho espiritual. É preciso deixar que a “noite” fale de si mesma como obscuridade, solidão, medo, mistério, imobilidade, descanso, paz, silêncio, sonhos, lua, aventura, estrelas, frescura, intimidade, romantismo, clarividência», assinala.
O santo espanhol «apresenta a estrutura fundamental, os elementos essenciais da experiência noturna», que «pode adquirir várias formas possíveis de realização, consoante a intensidade, o ritmo, a duração, “pois não acontece em todos da mesma maneira nem têm todos as mesmas tentações”».
A veemência da travessia mede-se, segundo o autor, «pela vontade de Deus consoante à maior ou menor imperfeição que cada um tem para purificar; de igual modo, também será humilhada mais ou menos intensamente, durante mais ou menos tempo, conforme o grau de amor de união a que Deus a queira elevar».
São múltiplas as tentações propostas como oportunidades de sublimação psicológica e espiritual, analisadas não no plano das ideias, mas como testemunho em primeira pessoa de um itinerário sofrido, mas feliz.
Com efeito, «S. João da Cruz, que contemplou com admirável profundidade de fé, e desde a sua própria experiência de purificação na fé, o mistério de Cristo Crucificado até ao vértice do seu desamparo na cruz, sofreu provações interiores de tipo contemplativo».
As suas «duas experiências mais dolorosas deram-se, não na oração, mas na caridade fraterna, na relação com os irmãos da mesma Ordem: a prisão de Toledo, aos 35 anos, – “descida ao inferno durante a vida” – e a calúnia, aos 49 anos, nos últimos meses de vida».
S. João da Cruz está longe de, nos seus escritos, querer impor, ou sequer sugerir, que a sua biografia espiritual é um molde a aplicar num itinerário de conversão e progressiva aproximação a Deus, porque «a vocação ou estado das pessoas, as circunstâncias históricas e pessoais, também são múltiplas». Mas ao longo dos séculos, muitos foram os cristãos que se identificaram com este escrito, e assim continua a ser.
Santa Teresa de Lisieux, por exemplo, «vive a noite escura num contexto de vida contemplativa carmelita, muito parecido ao de S. João da Cruz, com «escuridão da fé, tentações de blasfemar, falta de sentido para a vida», a par do «medo, a suspeita, o pensamento de que não exista Deus, nem haja céu, e tudo seja um sonho».
Não é só no contexto pessoal que se vive o obscurecimento, que se abate igualmente sobre «a Igreja, a cultura», que passam por uma «dolorosa experiência de transformação radical».
«A noite coletiva apresenta os mesmos sintomas que o santo assinalou para a noite pessoal: a obscuridade de não saber quem é Deus, onde encontrá-lo, como governa a história; a aridez ou falta de vontade e perda de entusiasmo coletivo; o vazio e privação de conquistas anteriores, ao que se acrescenta a incerteza do futuro; como consequência, o tormento e a consciência aguda de crise», refere a editora.
A experiência do “doutor místico” pode ser lida e entendida por quem está distante ou fora da fé, porque a sua experiência é também «tipicamente humana», e por isso abrange «crentes e descrentes».
«A nossa época tem vivido momentos dramáticos em que o silêncio ou ausência de Deus, a experiência de calamidades e sofrimentos, como as guerras ou o próprio holocausto de tantos seres inocentes, fizeram compreender melhor esta expressão [noite escura], dando-lhe além disso um carácter de experiência coletiva, aplicada à realidade mesma da vida e não só a uma fase do caminho espiritual», apontou S. João Paulo II.
À “noite escura” de S. João da Cruz sucede sempre a aurora, «na medida em que se produz, nos crentes, uma resposta de fé, amor e esperança».