Quer de um ponto de vista de tipo religioso, em que mundo e humanidade nele são produtos de atos de criação de origem transcendente, quer de um ponto de vista de tipo não-religioso, em que mundo e humanidade são produtos puramente imanentes, restringidos à inultrapassável materialidade universal, a humanidade não é uma necessidade, quer dizer, não tem de ser.
Pode não ser.
Tal significa que a humanidade, tem sido, desde que surgiu – por ‘ato divino’ ou por casualidade natural –, está sendo, enquanto durar; todavia, pode deixar de ser, pode, assim, em absoluto, não ser.
Tal significa, ainda, que a humanidade tem de saber se quer continuar a ser.
Como é evidente, o que acabou de ser escrito é uma prosopopeia: não há, na realidade concreta, factual, que constitui isto que é o mundo em seu sentido mais lato, algo como uma entidade chamada «humanidade» que tenha atos como o ato de vontade de querer continuar a ser. Tomar a sério tal prosopopeia, não é ‘abstração’, é estultícia.
No entanto, a humanidade – nome coletivo – merece tal nome porque agrega em si um conjunto, sempre móvel, sempre em renovação – por meio de nascimentos e de mortes –, de indivíduos humanos, de pessoas humanas.
Ora, a questão que não fazia sentido ser posta em termos de prosopopeia, faz todo o sentido se for posta em termos que impliquem, necessariamente, todos e cada um dos indivíduos que compõem tal agregado, a humanidade.
Então, todos os indivíduos humanos com capacidade de optar, com irredutível capacidade de optar, têm de decidir se querem continuar a ser. Esta é a primeiríssima e fundamentalíssima questão que tem de ser respondida.
Ora, ao longo do que se conhece da história humana, há manifestações de vontade de não existência por parte de seres humanos. Em grande parte das vezes, tal vontade recai sobre a não-existência do outro, levando – porque se trata de vontade, que é o que desencadeia os atos, e não de desejo, que pode permanecer inativo – ao assassinato, de muitos modos, do outro, dos outros, bastando, para tal, elegê-los como objeto de tal vontade de não-existência.
O outro modo possível de vontade de não-ser tem como objeto o ser do próprio que se constitui como tal ato de vontade, e tem como corolário, que é necessário, pois trata-se de vontade, operativa, o suicídio.
Olhando para o que se sabe da história humana, percebe-se que há, sempre, esta vontade de eliminação do ser, quer do ser do alheio quer do ser do próprio.
O fruto de tal vontade, de tais vontades incarnadas – não se trata de ‘anjos volitivos’, mas de pessoas com vontade de eliminação do ser alheio ou próprio – é a guerra.
Pode não se perceber tal, mas o cumprimento, a realização total, da vontade de não-ser, da guerra em ato, coincide com a eliminação de toda a humanidade, pois, mesmo que, no antefim de tal triunfo da aniquilação – da morte –, ainda sobreviva um só ser humano (note-se como o género, nisto, é insignificante), o triunfo da guerra só se dá quando este último contra si próprio agir em modo de guerra e se aniquilar.
É este o horizonte de possibilidade da guerra. Não há outro. Não o perceber não é ter uma ‘opinião’ diferente, é ser estulto.
Pense-se nas consequências últimas de tal excelente conclusão da guerra, segundo o ‘ponto de vista desta’. Num ambiente cultural do tipo do cristão – simplificando –, após este triunfo aniquilador da guerra, todos os seres humanos, já mortos, transitam, assim se pensa, ou para o inferno ou para o purgatório ou para o céu. Não há propriamente aniquilações. Todavia, no mundo, já não há seres humanos vivos. Tempos escatológicos, dir-se-á. Todavia, que escatologia é esta a provocada pela guerra? É ‘vontade de Deus’? E que ‘deus’ é este, que assim promove ou permite tal escatologia? Vale mesmo a pena haver tal ‘deus’ e tal ‘escatologia’? Cada um que responda, a caminho da vida ou da morte.
Com tal ‘deus’ em perspetiva, talvez seja melhor ‘não haver deus algum’, ser ateu. No caso do ateísmo, qual é o cenário ‘escatológico’ próprio promovido pela vontade de não-ser e pela sua sucedânea guerra? Um mundo totalmente sem seres humanos, e esses que foram os seres humanos havidos aniquilados. Neste cenário, literalmente escatológico, mas em aniquilação, que sentido faz ter havido humanidade?
Ora, neste cenário, a questão posta é simplesmente absurda, pois, nada há que possa pôr tal questão. O sentido da humanidade, visto a partir de aqui e agora – dado que ‘depois’, nada há que o possa fazer – é nenhum.
Então, em sentido aproximadamente pascaliano – da sua aposta –, talvez pensar sobre a maravilha de possibilidade que se começa a revelar no Natal valha a pena, como abertura da inteligência, não como revelação de qualquer certeza – sempre refúgio de cobardes –, para a possibilidade de tudo não ser um caminho para uma total ausência de sentido.
Ora, tal só pode acontecer se se intuir em cada coisa, em cada ato, o absoluto de ser que nele e com ele se manifesta, numa fenomenologia do anti-nada que, em cada ato, assim, se revela.
O Menino nascido e sempre nascente em Belém, é o símbolo – em corpo e espírito, em ‘matéria’ e forma – deste absoluto de algo que sempre vai impedindo o nada.
Guerra? Não, nem guerra à guerra.
Todavia, se se quiser mesmo guerra, então, mais cedo ou mais tarde, nem Natal nem coisa alguma.
Escolha-se.
Natal de 2024, com o mundo em guerra, essa amada meretriz de tanto ser humano.