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Não podemos desistir da beleza

Se pensarmos no cânone do Ocidente, na história europeia, se pensarmos na história da nossa Região – é impossível pensar a cultura sem a chave cristã. Porque o grande património herdado dos séculos e durante séculos construído é, de facto, pela expressão do culto, pela expressão da Bíblia, uma verdadeira expressão da fé dos crentes, uma expressão dessa procura de sentido, de verdade e de beleza, que tem Deus como destinatário final.

Mas, na contemporaneidade, muito a partir da fratura moderna, a partir dos séculos XVIII e XIX, as relações foram-se alterando, modificando, tornando-se tensas, conflituais, foram-se reinventando (…).

Hoje, num discurso muito cru, quando se fala da relação da arte com o cristianismo, muitas vezes a palavra que se ouve é divórcio. Divórcio porque parece que a Igreja, que durante séculos teve um papel fundamental, que era a grande “encomendadora”, a grande produtora, a grande protetora das práticas artísticas hoje, de certa forma, acabou com isso (nós depois vamos tentar perceber por que é que isso acabou e porque já não é da mesma maneira).

Mas, de facto, da parte da Igreja há hoje uma atitude diferente, que até pode ser interpretada como uma espécie de rutura com aquilo que era uma tradição passada, onde os artistas viviam numa proximidade muito grande com a Igreja, as exposições, as grandes obras: isso hoje, de facto, não é assim.



Um dos problemas da arte contemporânea é muito, também, o drama da sua autorreferencialidade: ela perde-se num labirinto de si mesma, em que acaba por ser uma prática fechada, que só interessa realmente ao mundo do criador, em que deixou de fazer corpo com a sociedade e deixou, no fundo, muitas vezes, de ultrapassar o puro nível da imanência, para procurar uma transcendência



E quando nós visitamos as igrejas que hoje estão abertas, para lá daquelas que conservam património passado até ao século XVIII, o que encontramos muitas vezes dificilmente se pode considerar arte, porque as imagens, o tipo de representação que hoje se leva para o interior de muitas igrejas, do ponto de vista artístico são projetos muito débeis, quando não de puro kitsch, em relação aquilo que nós poderíamos pensar como autenticidade artística.

Mas da outra parte, da parte dos meios artísticos, da produção de pensamento estético, nós também podemos ver um certo esfriamento, um certo distanciamento em relação àquilo que é o cristianismo, àquilo que são as igrejas e que é a Igreja católica. E, hoje, um dos problemas da arte contemporânea é muito, também, o drama da sua autorreferencialidade: ela perde-se num labirinto de si mesma, em que acaba por ser uma prática fechada, que só interessa realmente ao mundo do criador, em que deixou de fazer corpo com a sociedade e deixou, no fundo, muitas vezes, de ultrapassar o puro nível da imanência, para procurar uma transcendência, para buscar uma espiritualidade. No fundo, um certo inverno que hoje ainda atravessamos no que à arte diz respeito.

Temos dois interlocutores: o catolicismo e a arte contemporânea, mas penso que há problemas de parte a parte. Há problemas na parte do catolicismo: entender, por exemplo, qual é a função da arte e da arte contemporânea. Mas a arte contemporânea também entra num labirinto, em que a reflexão da sua própria identidade e referencialidade acaba por devorá-la, acabando ela por ser um exercício muitas vezes banal e sem a capacidade de ressoar mais fundo.

Contudo, quando se faz um diagnóstico, é importante perceber que as coisas são sempre mais complexas do que aquilo que parece. Os simplismos não ajudam. E, de facto, nos últimos anos, nas últimas décadas, tem havido por parte da Igreja (…) esforços, iniciativas, documentos muito importantes para fundamentar um outro olhar sobre aquilo que a arte representa, sobre qual o seu lugar específico e também sobre como nos pode ajudar a construir uma experiência espiritual.



O grande desejo do Vaticano II, era estabelecer uma aliança com o mundo da arte. Procurando parceiros, juntando artistas, e nós sabemos que em grande medida isso aconteceu e acontece, porque a transformação da Igreja é uma transformação capilar: não é o todo, mas são pequenas experiências que vão acontecendo



Em 1964, o papa Paulo VI tomou uma iniciativa que muitos consideram inesperada, pouco depois de aprovar a Constituição da Sagrada Liturgia. Nós sabemos que com Paulo VI aconteceu a chamada reforma litúrgica – cuja validade e pertinências hoje muitos criticam –, mas ela foi um gesto fundador da presença da Igreja na contemporaneidade, e penso que precisamos de entender muito bem o pensamento de Paulo VI.

Uma das coisas que sucederam quando o Concílio aprovou a Constituição da Sagrada Liturgia e o Missal do Papa Paulo VI, com o qual hoje nós celebramos a eucaristia, é que ele reuniu os artistas na Capela Sistina e teve um discurso muito interessante, em que lhes dizia mais ou menos isto: da nossa parte, nós Igreja firmamos um grande ato de “nova aliança” com os artistas. A Constituição da Sagrada Liturgia que o Concílio Vaticano II promulgou é precisamente o pacto de reconciliação e de renascimento da Arte Religiosa no seio da Igreja Católica. Repito: o nosso pacto está assinado, esperamos agora a vossa assinatura. No pensamento do papa a reforma litúrgica ia incluir muito mais um diálogo com os artistas e com a arte contemporânea. É interessante que no novo texto para a liturgia, o capítulo VIII da Constituição sobre a Sagrada Liturgia:

«Entre as mais nobres atividades do espírito humano, estão de pleno direito as Belas Artes. (…) A Santa Mãe Igreja amou sempre as Belas Artes. Formou artistas e nunca deixou de procurar o contributo de ambos. (…) A Igreja nunca considerou um estilo como próprio seu, mas aceitou os estilos de todas as épocas».

Este é, de facto, um timbre do cristianismo ao longo dos séculos: é que a Igreja não adotou um único estilo como estilo católico, adotou sempre uma grande amplidão, reconheceu a autenticidade artística onde quer que ela estivesse. Por isso nós temos artistas tão diferentes, como Giotto, como Caravaggio, como Miguel Ângelo, ou Frei Angélico. Artistas tão diferentes na sua contemporaneidade, a trabalharem de modo diferente, precisamente porque a Igreja não se fixa num estilo. Mas cria uma atitude de abertura e de confiança naquilo que a experiência artística é em si mesma.



Nas últimas décadas, em Portugal, temos exemplos extraordinários de encomendas que a Igreja tem feito a arquitetos de qualidade, talento, genialidade, e que enriquecem verdadeiramente não só o património artístico, mas também o património religioso do nosso país



O desejo do Concílio Vaticano II, expresso naquela Constituição, pode ser resumido na frase final do mesmo capítulo: «Por isso, seja cultivada livremente na Igreja a arte do nosso tempo». O grande augúrio, o grande desejo do Vaticano II, era estabelecer uma aliança com o mundo da arte. Procurando parceiros, juntando artistas, e nós sabemos que em grande medida isso aconteceu e acontece, porque a transformação da Igreja é uma transformação capilar: não é o todo, mas são pequenas experiências que vão acontecendo. (…)

O Concílio é um momento muito importante, um momento seminal, de uma atitude nova de diálogo, que a Igreja quer relançar com o mundo artístico. Mas podemos dizer: apesar disso ainda vejo coisas, atitudes de que não gosto… Todavia, temos que perceber que as transformações acontecem no tempo, muitas vezes de forma capilar, e muitas vezes pela força que determinados modelos têm. (…)

Nas últimas décadas, em Portugal, temos exemplos extraordinários de encomendas que a Igreja tem feito a arquitetos de qualidade, talento, genialidade, e que enriquecem verdadeiramente não só o património artístico, mas também o património religioso do nosso país.

É interessante que o Papa Paulo VI, no final do Concílio Vaticano II, voltou ainda a juntar os artistas e disse-lhes: «Hoje, como ontem, a Igreja tem necessidade de vós e volta-se para vós. E diz-vos, pela nossa voz: não permitais que se rompa uma aliança, entre todas, fecunda».

Se há um termo que aparece, no magistério dos últimos papas, para falar da relação do cristianismo com as artes é a palavra aliança. É uma aliança que se percebe que muitas vezes é débil, mas uma aliança que se quer reforçada e na qual se percebe sobretudo a importância e o valor.



Os artistas dizem o mistério, e dizem o mistério de uma forma em que o mistério permanece mistério, mas com uma força capaz de tocar o coração, capaz verdadeiramente de nos transformar



Outro papa que teve um papel muito significativo foi João Paulo II, que na passagem do milénio escreveu uma Carta aos Artistas. É um texto extraordinário, de uma grande abertura e que faz, ao mesmo tempo, uma reflexão espiritual sobre o que é a vocação artística e o lugar da arte na comunidade, no corpus da Igreja e no corpus que é uma sociedade. E aí ele também fala com palavras muito realistas, dizendo: «Se é verdade que um certo clima levou por vezes a uma separação do mundo da arte e do mundo da fé, é verdade também que até mesmo nas condições de maior separação entre a cultura e a Igreja, é precisamente a arte que continua a construir uma espécie de ponte que leva à experiência religiosa».

E o papa defende isto: mesmo do ponto de vista natural, a arte é uma atividade espiritual. A arte é espiritual. Porque a arte não está apenas interessada na imanência, a arte procura esse limiar invisível, inaudível, da transcendência. E o pintor parte da materialidade para ir buscar outra coisa, que não está ali na própria matéria, mas que esplende da própria matéria: nesse sentido, a vocação artística é na sua natureza uma vocação espiritual.

Um outro papa que deu uma extraordinária atenção ao papel dos artistas foi Bento XVI. Quando se cumpriram 35 anos do primeiro gesto do papa Paulo VI, o papa Bento voltou a congregar os artistas na Capela Sistina, num encontro que tinha este programa marcante: “Expressar e renovar a amizade da Igreja com o mundo da Arte”. (…) A lição de Bento XVI foi, de facto, extraordinária, sobre arte e verdade. Ali estavam todos: grandes pintores, grandes músicos, grandes escritores, grandes arquitetos. Realmente, foi unânime o clima de amizade, de proximidade, de escuta que ali verdadeiramente se viveu. (…)

Como dizia Bento XVI, a arte precisa da Igreja, porque a arte precisa de transcendência. A arte não pode ser só imanência, senão torna-se autorreferencial: deixa de ter esse poder de ressoar. Mas a Igreja também precisa da arte, porque aquilo que um artista pode dizer, pode explicar, pode traduzir, pode interpretar do mistério, só a obra de arte o pode fazer.



A arte contemporânea tem um problema com a beleza, e quando, por exemplo, um teólogo vai falar numa assembleia de artistas, se ele vai fazer o discurso da beleza, parece um bocado ingénuo, porque a arte contemporânea olha com desconfiança em relação à beleza



Aqui, é importante citar um dos maiores teólogos do século XX, Hans von Baltazar: ele dizia que as obras mais extraordinárias para a experiência religiosa, que se construíram no século XX, não foram obras de teólogos, mas foram obras de artistas. Os artistas dizem o mistério, e dizem o mistério de uma forma em que o mistério permanece mistério, mas com uma força capaz de tocar o coração, capaz verdadeiramente de nos transformar. (…)

Hoje sentimos que há uma relação – que é por vezes uma relação difícil, inexistente, ou então um divórcio, ou então um certo gelo –, mas que ao mesmo tempo há tentativas, há esforços, há uma consciência da Igreja, quer nas bases, nos imensos laboratórios eclesiais e experiências que se têm realizado quer ao nível do próprio magistério, do discurso doutrinal da Igreja: há uma grande atenção a esta aliança da arte com a experiência religiosa.

Contudo, a arte está em mudança, e nós estamos a fazer este diálogo entre a arte e a espiritualidade num contexto específico, que é o do nosso século XXI. Por exemplo, um dos termos que a teologia recupera incessantemente é o tópico da beleza. E aí, a teologia recupera os três transcendentais: que é fundamental buscar a Verdade (1º transcendental), o Bem (2º transcendental) e a Beleza (3º transcendental). Mas hoje, a arte contemporânea tem um problema com a beleza, e quando, por exemplo, um teólogo vai falar numa assembleia de artistas, se ele vai fazer o discurso da beleza, parece um bocado ingénuo, porque a arte contemporânea olha com desconfiança em relação à beleza, àquilo que nós representamos como beleza.

E, na verdade, hoje quando se olha para a realidade do mundo, muitas vezes é difícil ir além de comentarmos a contradição, a fragmentação, a dispersão e o próprio mal. No centro da sua reflexão, a estética contemporânea colocou uma reflexão sobre o drama e a dilaceração da própria existência. As categorias mudaram.



A luz chega-nos como que filtrada por um bosque, como quando nós o atravessamos e a luz aparece coada pela multidão das copas, das folhas das árvores: assim é a experiência que hoje nós temos, porque, como ele diz, a beleza tornou-se indeterminável



Quando nós pensamos, por exemplo, em S. Tomás de Aquino, ele dizia que há três condições para que se possa falar de beleza: a primeira condição é a integridade – uma obra inacabada, não pode ser bela, uma obra incompleta, não pode ser bela, um fragmento não pode ser belo; porque tem que haver a experiência da integridade para podermos estar diante da beleza. Hoje sabemos que a arte do nosso tempo é a arte do fragmento, é a arte que aceita a ferida da incompletude e acha a integridade uma ilusão ou uma pretensão perigosa.

Outra noção de Tomás de Aquino: a arte é harmonia. Hoje, nós olhamos para as obras artísticas e percebemos que elas não são a harmonia, que elas são o triunfo da ambiguidade, do diverso, do disforme, do brutalista, e é através dessas características que elas tentam produzir significado, produzir sentido.

E, por fim, S. Tomás de Aquino dizia: a arte é claritas, isto é, tem que ter uma evidência, tem que ter uma claridade, tem que ter uma transparência. Ora, a arte contemporânea é muito mais a arte que explora o absurdo, que explora a opacidade, que tenta perceber aquilo que a escuridão esconde: mais do que propriamente esta procura da claritas. (…)

Então, a arte contemporânea obriga-nos também a deslocar o nosso olhar e, se calhar, a colher muito mais interrogações, saindo mais do nosso território de conforto. Quando olhamos para a imagem do Ciclo dos Mistérios de Maria, que Paula Rego pintou para a capela do Palácio de Belém, e aqui temos uma Anunciação, [em confronto] com a Anunciação que é aqui residente no nosso Museu de Arte Sacra (Imagem 4), apercebemo-nos de que ainda somos os mesmos, porque ainda somos capazes de gostar, de amar uma Anunciação do século XVI e somos capazes de amar e perceber uma Anunciação do século XXI. Mas, claramente, são coisas diferentes, são realidades diferentes, que obrigam a pensar o que é a representação estética, também com outras categorias que no fundo são também categorias do Homem contemporâneo. (…)



A arte ganhou um lado de efémero e um lado de pensamento a que não estamos habituados. Para nós, a arte era como o verso do Keats, que diz que «uma coisa bela é alegria para sempre»



É hoje evidente que nós não podemos pensar o que é o estatuto da arte, sem pensarmos naquilo que Freud veio dizer sobre o mundo subterrâneo dos sonhos e dos desejos que cada um transporta. Nós não podemos pensar o que é a arte contemporânea sem pensarmos que Nietzsche veio proclamar a morte de Deus e que o Homem contemporâneo está radicalmente só; não podemos pensar a arte contemporânea, sem pensar nas duas guerras mundiais, com a primeira tragédia, e depois a segunda, com a Shoah, que dizimou completamente milhões e milhões de seres humanos, num genocídio a uma escala massificada. E nós podemos perguntar: como podemos falar de beleza? Com todas estas feridas, com todos estas cicatrizes, como é que a arte e a espiritualidade se podem juntar num discurso que seja também reparador em relação ao que tem sido de facto a história do mundo moderno e contemporâneo?

Um filósofo que pensou muito a condição da arte foi Martin Heidegger. Ele dizia isto: «A arte, tradicionalmente, era harmonia, regra, simetria e exatidão». Pensou-se sempre a arte como luz. Até ao presente nós pensamos a arte como luz, como epifania, como esplendor de absoluta, inconttestável evidência.

Heidegger diz que ainda é assim, a arte ainda é luz, mas agora a luz já não nos chega numa forma direta. A luz chega-nos como que filtrada por um bosque, como quando nós o atravessamos e a luz aparece coada pela multidão das copas, das folhas das árvores: assim é a experiência que hoje nós temos, porque, como ele diz, a beleza tornou-se indeterminável. Isto é, nós hoje não sabemos o que é beleza. Possivelmente, nisso nós somos a primeira geração humana, até mais do que os que primeiros que pintavam as cavernas e consideravam [isso] a beleza, ou as tribos indígenas: pintar-se bem para a guerra ou preparar-se bem para os ritos, isso era arte. Nós possivelmente somos as primeiras gerações que não sabem o que é a beleza. É que em relação à beleza discutimos muito, porque a beleza tornou-se indeterminável. Indeterminável por todas estas feridas, esta espécie de desmantelamento do humano, que nos faz perder a inocência em relação a determinados discursos de beleza. E quando hoje, por exemplo, visitamos um museu de arte contemporânea, possivelmente para muitos dos que estão aqui presentes, de uma geração mais avançada, é um choque imenso – há sempre aquelas histórias, da senhora da limpeza que não percebe que está perante uma obra artística e que a destrói, ou que a varre. A arte ganhou um lado de efémero e um lado de pensamento a que não estamos habituados. Para nós, a arte era como o verso do Keats, que diz que «uma coisa bela é alegria para sempre».



A vida humana é extática, isto é, a nossa vida precisa de êxtase, ela só se redime, ela só ganha aquela profundidade, só se sente cumprida, quando atinge esta capacidade de saída de si, quando se une a alguma coisa que é do domínio do transcendente, quando é habitada por um espanto, por um assombro, por alguma coisa de outra ordem e que é capaz de a tocar profundamente



A arte era eternidade. E hoje a arte não é assim, hoje a arte é uma luzinha, um fósforo acesso sobre o instante, sobre o momento. E percebermos que o mundo que nós vivemos é um mundo complexo, deste ponto de vista da compreensão daquilo que é beleza.

Mas uma coisa é certa: nós não podemos desistir de procurar a beleza, porque nós somos, como humanos, seres famintos, sedentos da própria beleza. Porque a vida humana não é simplesmente estática: a vida humana é extática, isto é, a nossa vida precisa de êxtase, ela só se redime, ela só ganha aquela profundidade, só se sente cumprida, quando atinge esta capacidade de saída de si, quando se une a alguma coisa que é do domínio do transcendente, quando é habitada por um espanto, por um assombro, por alguma coisa de outra ordem e que é capaz de a tocar profundamente.

Sem êxtase, nós somos apenas animais que estão a ser conduzidos para o matadouro. Porque é o êxtase que nos abre a outros tipos de experiências: a experiência do amor, a experiência religiosa, a experiência do sentido, a experiência estética. A beleza é, portanto, uma experiência da ordem do êxtase, e essas dimensões precisam de ser protegidas, porque são elas que nos ajudam a definir também o que é o destino humano.

Como dizia um grande poeta, Carlos Quevedo, «nós podemos ser poeira, mas somos poeira enamorada», isto é, nós somos aqueles para quem isto não nos basta, para quem isto não nos chega. Precisamos de outra coisa. E a arte é isso, faz-nos dialogar com outra coisa. A arte é um acelerador da nossa própria viagem, esta viagem interior que estamos sempre a realizar e, nesse sentido, a arte é tão importante por causa do êxtase, da vocação extática que tem a pessoa humana, porque a estética não está só interessada nos sentidos – os sentidos são muito importantes, são grandes portas, grandes aberturas para a construção da nossa experiência humana. Mas os sentidos não são apenas os naturais, os sentidos naturais conduzem aos sobrenaturais. E o nosso olhar torna-se um olhar outro, torna-se um olhar que espera outra coisa da experiência humana. E uma coisa que não é simplesmente da ordem do visível, uma coisa que não é simplesmente deste mundo.


 

P. (D.) José Tolentino Mendonça
In As Conferências do Museu 2018, Funchal
Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 13.03.2019 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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